CAPÍTULO III
Revelações
Havia apenas o som do vento.
Ana estava em um campo. Grama alta balançando como ondas sob o céu dourado do fim da tarde. Corria descalça, os pés sujos de terra, os cabelos embaraçados dançando atrás de si. O riso de seu pai ecoava atrás dela — um som cheio, caloroso, quase exagerado, como o de alguém que nunca imaginou que poderia desaparecer. Ele a alcançava, erguia-a nos braços como se ela fosse leve demais para pertencer a este mundo.
O tempo se dobrou no horizonte.
O campo sumiu. A casa de infância apareceu em seu lugar — velha, de paredes descascadas e cheiro de café requentado. Era domingo. O rádio tocava baixo na cozinha. A mãe cortava cenouras sem olhar, o olhar perdido num lugar que Ana, ainda pequena, não conseguia alcançar. Na parede, o relógio estava parado: 18h12.
O pai havia saído.
E nunca mais voltou.
As imagens turvaram.
Ana, agora está com treze ou quatorze anos, sentada num banco de praça com os joelhos ralados e os olhos fixos num grupo de adolescentes que riam alto. Ela ria também — por fora. Por dentro, algo se mexia, um vácuo pequeno e gelado que havia nascido no dia do sumiço do pai e que crescia em silêncio desde então. Lívia, sua melhor amiga, contava histórias absurdas sobre professores e assombrações. Rafael, o garoto do skate, fingia não olhar para Ana, mas olhava.
Tudo parecia simples demais. Como se o mundo ainda não tivesse revelado seus dentes.
Os rostos agora se desfizeram como cera derretida. E ela empurrava uma caixa de papelão com os pés num apartamento vazio. O som de madeira rangendo sob seus passos. Carregava livros, um ventilador velho, um rádio quebrado. Júlia apareceu na porta com uma garrafa de champagne e duas taças.
— Primeira noite num lugar novo tem gosto de liberdade, — disse ela, sentando no chão.
Ana sorriu, verdadeira, pela primeira vez em muito tempo. Era confortável estar com Júlia.
Mas o conforto durava pouco.
Agora ela vislumbrava partes de sua vida. Empregos que não duravam. Pessoas entrando e saindo. Portas fechadas. Telefones que não tocavam mais. O olhar da mãe ficando mais vazio a cada visita. A doença. A espera. O hospital com suas paredes bege e silêncio enjoativo. Ana lendo livros em voz alta enquanto a mãe dormia — ou fingia dormir. Os olhos dela rareando como luz de vela em fim de noite.
Por fim, o velório.
O caixão. As flores brancas já murchas. O ar pesado, estagnado. O corpo da mãe repousando entre as almofadas com uma expressão tão tranquila que doía. O mundo ao redor parecia suspenso. Nenhum som. Nenhuma respiração. Ana se inclinou, olhando de perto. Queria ver se era mesmo sua mãe, ou só uma lembrança.
E então, os olhos se abriram.
Não os da mãe. Aquilo… não era mais ela.
O rosto começou a mudar, lentamente. A pele se contraiu, rachou como barro seco. Os dentes se alongaram. Os olhos se tornaram negros como poços sem fundo. O cheiro de flor deu lugar ao cheiro acre de carne podre, mofo e enxofre. O corpo se ergueu meio centímetro, apenas o suficiente para falar.
A voz era de mil vozes juntas, arranhando vidro:
— Você vê.
Ana gritou.
E acordou.
O grito ainda escapava por sua garganta quando os olhos se abriram de verdade. Estava suando, tremendo, com o peito arfando como se tivesse sido tirada de um rio no último segundo antes de afundar.
Estava em um lugar estranho.
Paredes de concreto cru. Um teto baixo. O cheiro de mofo, poeira e ferrugem. Uma lâmpada amarelada pendia do teto, oscilando levemente. Um colchão fino sob seu corpo. Havia vozes abafadas além da parede, sons de metal e murmúrios.
Ela estava viva.
E, aparentemente, não estava mais sozinha.
A dor era real. Densa, latejante, como pregos sendo arrancados da carne. Quando tentou se sentar, uma pontada aguda percorreu suas costelas, fazendo-a gemer. Havia ataduras ao redor de seu ombro, manchas de sangue seco e algo que cheirava vagamente a álcool e urina de rato. Sua cabeça parecia uma embarcação à deriva, girando lenta no mar revolto de pensamentos nebulosos.
Mas estava viva.
Ou algo próximo disso.
Levantou-se com esforço. Os pés tocaram o chão frio como se fossem de outra pessoa. Uma porta metálica se abriu num rangido prolongado. Ana ergueu o rosto, o coração acelerando. Luzes fluorescentes piscavam no teto do corredor, lançando sombras que pareciam se mover sozinhas.
E então vieram os rostos.
— Olha só quem resolveu acordar — disse uma voz feminina, seca, arrastada. — A bela adormecida finalmente deu o ar da graça.
Sílvia.
Ela estava escorada no batente da porta, braços cruzados, um cigarro apagado preso entre os dedos. Olhos escuros, afiando Ana como uma navalha afia a pele antes do corte. Usava uma jaqueta surrada, coturnos gastos e uma expressão de quem sempre sabia mais do que dizia — e dizia o bastante pra incomodar.
Atrás dela, os outros se aproximavam.
— Ana?! — disse uma voz que quebrou o ar como uma prece. Júlia atravessou a porta correndo, os olhos úmidos, e num instante estava ajoelhada ao lado da amiga, abraçando-a com força. — Meu Deus, achei que você não ia... — sua voz falhou, mas o abraço dizia tudo.
Ana ficou paralisada por um segundo. Depois retribuiu, ainda atordoada.
Júlia estava diferente. O rosto mais firme. O olhar endurecido. A ternura ainda existia, mas agora era um campo murado. Algo dentro dela tinha mudado — e não era só o tempo.
— Eu… onde eu estou? — Ana murmurou, olhando em volta.
— Num bunker. — respondeu outra voz, desta vez com um sotaque francês carregado. — Não muito bonito, mas… seguro. Pelo menos por enquanto.
Era Baptiste. Alto, imponente, pele escura e olhos que pareciam ver além das palavras. Ele deu um breve aceno de cabeça. — Você foi quase partida ao meio por um Saliva. Sorte que cheguei a tempo. Mais ou moins.
Atrás dele, uma mulher observava tudo com braços cruzados. Ela não sorria. Seus olhos vasculhavam Ana como quem inspeciona uma ameaça.
— Hellen. — disse, seca. — E antes que você pense qualquer coisa, não estou feliz por você estar aqui.
— Relaxa, ela tá parecendo um zumbi caído do caminhão da mudança. — disse Ricardo, um moreno de cabelos longos presos num coque malfeito. Sorria como quem acha graça até do fim do mundo. — Eu sou Ricardo, o comediante do grupo. Também conhecido como o cara que cozinha, conserta rádio, e se mete onde não deve.
— Eu…. — Ana tentou falar, mas Jorge a interrompeu, sem querer.
— O – o-oi. — disse o rapaz magro com óculos grossos e uma camiseta de banda gótica. A cada palavra tropeçada, ele parecia querer desaparecer. — Júlia f-falou d-de… v-vo-você... você v-v-vi-viu e-el-eles n-né.
— Calma aí, nerdão. Não precisa baixar a taxa de FPS pra conversar. — disse Lúcio, um garoto com um olhar elétrico e uma ansiedade juvenil transbordando pelos ombros. — Você viu um bicho, né? Um dos grandes? Cara, que da hora. Quer dizer, não da hora, mas tipo… da hora. Entende?
— Ah, sim, ótimo. Vamos dar as boas-vindas com um colapso nervoso coletivo. — Hellen revirou os olhos. — Alguém traz um calmante pro mascote antes que ele exploda de empolgação.
— Lúcio! — advertiu Sílvia, com voz baixa.
— O quê? Não posso mais brincar? A recém-despertada já viu os monstros mesmo.
Carlos entrou por último. O mesmo Carlos da cafeteria, só que agora sem avental e sorriso. Tinha os olhos fundos, barba por fazer e um cansaço que parecia vir de dentro dos ossos.
— Oi, Ana. — disse ele, com uma timidez que lembrava outros tempos. — É bom ver você… viva.
O olhar dele desviou rapidamente para Júlia. E ficou lá, por um tempo longo demais. Ana percebeu.
Ricardo assobiou, sarcástico:
— Temos até drama amoroso essa novela tá cada vez melhor.
Rodrigo, um homem de expressão dura encostado na parede, sequer reagiu. Ele apenas observava, calado, como uma estátua prestes a se mover — mas só quando fosse absolutamente necessário.
Ana tentou reunir forças. A respiração ainda doía, e sua mente parecia feita de cacos. Mas aqueles rostos, por mais estranhos, duros ou cínicos que fossem… estavam ali. E ela não estava mais sozinha no pesadelo.
— Então… vocês todos… também veem?
Silêncio.
Depois, Baptiste respondeu com uma solenidade pesada:
— Todos aqui passaram pelo limiar. Todos viram o que está por trás do Véu.
— E agora que você viu… — completou Hellen, o olhar ainda carregado de desconfiança —… Não tem como voltar atrás.
Ana engoliu em seco.
A sensação era clara.
O pesadelo tinha virado realidade. E essa realidade… era pior do que qualquer coisa que ela poderia ter imaginado.
O silêncio que se seguiu à fala de Hellen foi mais pesado que concreto. Ana sentia como se o ar ao redor tivesse engrossado, tornando cada respiração uma batalha.
— O que é isso tudo? — murmurou. — Que porra está acontecendo?
Baptiste se aproximou, os passos lentos, quase respeitosos. Ele agachou para ficar na altura de Ana, o olhar firme, sem rodeios.
— Ce n’est pas facile à entendre... — disse ele. — Mas você merece saber. A verdade… não é o que ensinaram a você.
— A verdade? — Ana riu, sem humor. — Eu vi uma coisa que queria me arrancar em pedaços. Eu vi… o rosto... mudar. Eu estou perdendo a porra da cabeça?
— Não. — respondeu Júlia, com a voz firme, ainda ajoelhada ao lado da amiga. — Você está acordando.
Os olhos de Ana se fixaram nela.
— Você sabia? Você sabia o tempo todo?
Júlia hesitou. Um segundo apenas. Mas foi suficiente para que Ana sentisse a traição escorrer por dentro da pele.
— Júlia… — sua voz se quebrou. — Você sabia… e me deixou sozinha?
— Não era assim! Eu juro! — Júlia segurou os braços de Ana. — Quando aconteceu comigo… eu não tinha como explicar. E quando você acordou... eu pensei em te contar, mas...
— MAS O QUÊ?
— Eu não sabia se você aguentaria. — sussurrou Júlia. — Você estava há seis anos em coma, Ana. Eu... eu achava que talvez você tivesse sorte. Que o Véu ainda estivesse firme ao seu redor. Que talvez... você não precisasse ver o inferno que virou o mundo. E… eu não podia ficar com você por muito tempo.
Ana se afastou, respirando com dificuldade. A dor nas costelas era quase reconfortante diante da que latejava dentro do peito.
— Você devia ter me contado. — disse, com a voz baixa e trêmula. — Você era minha única amiga… e me deixou no escuro.
— Je comprends ta colère... — disse Baptiste. — Mas escute. O que aconteceu com ela… aconteceu conosco também.
Ele ergue a manga da camisa, revelando uma cicatriz larga e antiga, como uma mordida cravada pelo próprio destino.
— Eu era soldado. Em missão. Bomba na estrada. Fragmento no peito. Sangue demais, batimentos de menos. Eu… morri. Ou quase. Quando voltei, via coisas. No começo achei que era trauma. Mas então comecei a entender: eu tinha atravessado o limiar.
— Limiar?
— A fronteira entre o Véu e o que chamamos de Realidade. — respondeu Júlia, agora mais calma. — O mundo que você conheceu, Ana, o mundo como ele é mostrado... é uma mentira. Um escudo criado por Deus antes de ser derrotado. Um último esforço para proteger as almas humanas.
— Deus foi derrotado? — Ana sussurrou, incrédula.
— Sim. — disse Baptiste, a sombra da dor em seu rosto. — O inferno venceu. A Terra… é agora território deles.
Silêncio.
— E os demônios… — continuou Júlia —… Eles se alimentam da alma das pessoas quando elas morrem. É por isso que eles fomentam o caos. Guerras. Doenças. Fome. Pandemias. Tudo isso é obra deles. Não diretamente. Mas com… influência.
— Eles não podem tocar as pessoas enquanto estão dentro do Véu. Mas podem... corromper. Sussurrar. Enlouquecer. — Baptiste completou.
Ana engoliu em seco. Tudo começava a se encaixar… de uma forma horrível.
— Les éveillés incomplets... — disse Baptiste. — Os despertos incompletos. São humanos que veem através do Véu... mas não completamente. Ficam presos entre os dois mundos. São como antenas sem receptor. A mente... quebra. A sociedade os chama de loucos. Mas não é loucura. É excesso de realidade.
— E nós? O que somos?
Sílvia respondeu, com a voz fria e firme:
— A resistência. Os que veem por trás dos olhos. A Terceira Ordem.
— Terceira? — Ana perguntou.
— A Primeira foi destruída. A Segunda… corrompida.
— Nós somos o que sobrou. Os que ainda lutam. — completou Baptiste.
— Lutamos por quê? Se já perdemos?
Júlia respondeu, com lágrimas nos olhos:
— Porque enquanto houver um só humano que ainda possa ser salvo…. vale a pena lutar.
Ana fechou os olhos por um momento. Respirou fundo. O mundo havia acabado. E ela só soube disso agora.
Mas talvez… fosse o início de algo mais.
Talvez, ela pensou, ainda houvesse espaço para resistência.
Mesmo estando no inferno.
6 Comentários
CA-RA-CA! Que episódio MONUMENTAL! Tudo foi bom, tudo foi legal, a escrita, a narrativa, a forma como conduziu tudo, mas cara, as revelações, a forma como tu geriu todas as informações e todas as explicações para os acontecimentos, esse sim me ganharam! Não vou dar spoiler, mas eu sou realmente aficcionado por boas explicações, com coerência, com lógica, como disse aquele dia, dentro da história, a explicação precisa existir, isso deixa tudo muito mais empolgante e fascinante, porque se vê a "lógica" por trás da uma realidade fantasiosa, simplesmente muito bom de acompanhar! A forma como o grupo foi apresentado, a situação de apocalipse impensado, o motivo pelo qual o véu ali está, e as personalidades, ainda abordadas de leve, mas que já cativaram e muito, principalmente os opostos entre o Lúcio e o rapaz do FPS baixo, ficou incrível a diferença entre cada um, e ainda, a ideia de uma resistência contra algo que nem mesmo o Onisciente pode resolver, é sem dúvida instigante e motivador! Cara, muito bom, muito bom mesmo, meus parabéns, essa história está simplesmente fantástica!! \0/
ResponderExcluirObrigado Aldo pelo carinho e obrigado por disponibilizar o teu tempo para acompanhar essa história. Só tenho gratidão em hoje poder estar junto com essa galera fantástica que e o Mindstorm
ExcluirTaporra!
ResponderExcluirTô sem palavras!
As visões de Ana, a descoberta que Deus foi derrotado e o que o inferno está na Terra foi do kct...
Desculpe os termos....
Estou impactado!
A forma como você conduziu o episódio, foi primorosa.
O cenário de caos.
A desepserança...
Cara...
Não sei o que dizer...
Você é um escritor nato!
Que texto!
Opa obrigado pelas palavras e pelo apoio que bom que todos estão gostando
ExcluirCara! Mais um capítulo fenomenal! Você mandou muito bem em mais esse texto!
ResponderExcluirIncrível como, com poucas linhas você consegue descrever muito bem o cenário, um exemplo é quando a Ana desperta e ver os arredores.
e tão incrível é como você também consegue apresentar os novos personagens me trechos curtos e dar vida a eles de imediato.
Isso sem falar em toda a ideia da derrota de Deus e da verdade desse mundo.
Estou embasbacado cara! Esse seu título deveria já estar publicado em forma de livro e sendo vendido nas melhores livrarias.
Meus parabéns!!
Muito obrigado pelos elogios Norberto, mas vamos com calma, ainda tenho um caminho longo a trilhar. Mas agradeço mesmo pelo apoio e pelas palavras.
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