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HORIZONTE DE ESTRELAS - MISSÃO 02


MISSÃO 02

COMPANHEIROS

O tempo em Argo 9 era um conceito abstrato. Não passava, não corria, não escorria. Ele apodrecia.

Ali, ninguém sabia se era manhã, tarde, noite ou o fim dos tempos. As lâmpadas tremeluziam em ciclos aleatórios, o cheiro de ozônio queimado se misturava com gordura rançosa e umidade reciclada de vinte espécies diferentes. Havia algo na estação que fazia o cérebro perder qualquer noção de sequência. As paredes rangiam, o chão vibrava sem motivo, e sons metálicos reverberavam nos corredores como se a própria estação estivesse tossindo seus últimos suspiros.

Mas aquilo não incomodava Lúcia Vega. Nunca incomodou. Na verdade, aquele cheiro de óleo velho, suor seco e promessas quebradas era quase... confortável. Uma lembrança distante de que, por mais fundo que se afunde na lama da galáxia, sempre há um jeito de boiar. Nem que seja de barriga pra cima e com metade do casco rachado.

Nas primeiras horas depois de entregar aquele maldito carregamento — que, para sua humilhação, revelou-se um carregamento de sorvete —, ela fez o que qualquer piloto com mais dívidas que perspectivas faria: enfiou-se no bar mais imundo da doca inferior, jogou o que sobrou dos créditos num copo de vidro rachado e bebeu até esquecer como soletrar a palavra "responsabilidade".

O bar se chamava “O Vácuo Confortável”, uma ironia escancarada em neon roxo, piscando intermitente como uma promessa de curto-circuito. As mesas eram pedaços de carcaça de naves aposentadas, os bancos pareciam ter sido arrancados de cápsulas de fuga e o balcão... bem, ninguém sabia ao certo se aquele balcão já tinha sido uma superfície limpa algum dia.

O álcool queimava a garganta como se tentasse sair pelo mesmo lugar que entrou. Forte, ácido, suspeito. Provavelmente ilegal em mais da metade dos setores da galáxia. Mas fazia o serviço: desligava a parte do cérebro que insiste em lembrar das escolhas ruins.

Quando o pagamento de Joseph pingou — e, para seu espanto, com o bônus que ele prometeu —, ela não fez o que qualquer um sensato faria. Não correu. Não fugiu. Não desapareceu na dobra gravitacional mais próxima.

Ficou.

Porque, no fundo, sabia exatamente o que aquele serviço significava. Joseph Skarlo nunca fazia nada por acaso. Aquilo tinha sido um teste. Uma provocação. Um convite disfarçado de piada de mau gosto.

E, honestamente... ela estava curiosa.

Nos dias que se seguiram, ela se misturou ao caos da estação. Argo 9 era uma colmeia enferrujada de possibilidades duvidosas e negócios quase-legais. Mercados improvisados se espalhavam pelos corredores, cheios de estandes montados com pedaços de casco soldado às pressas e lonas translúcidas manchadas de óleo.

O cheiro era uma mistura absolutamente criminosa de mofo, graxa espacial, fritura velha e algo que lembrava vagamente carne que deveria estar enterrada e não sendo vendida num espeto.

Ali, vendia-se de tudo. Peças roubadas, dados furtados, memórias sintéticas, órgãos — uns frescos, outros nem tanto —, armas, drogas, e até pacotes de férias falsificados para planetas que explodiram há mais de cinquenta anos.

Lúcia caminhava como quem conhece cada sombra, cada olhar enviesado, cada mão escondendo uma lâmina ou um blaster de bolso. Olhar duro, passos firmes, mão sempre a meio caminho do coldre. O velho jogo da sobrevivência. Ela sabia jogar.

Perdeu uma fortuna nas mesas de paiko. Ganhou outra — roubando dos que trapacearam pior que ela. Saiu no lucro. Mais ou menos.

Nas oficinas da seção Gamma, onde a fumaça era densa o bastante pra merecer CEP próprio, esbarrou num pedaço do seu passado.

“Lúcia Vega...” — A voz veio antes da imagem. Seca, meio rouca, mastigada por filtros vocais baratos. — “Viva. Contra todas as estatísticas.”

Ela nem precisou virar pra saber quem era. — “Ryn Talek... Achei que você já tinha sido vendido como peça sobressalente.”

O contrabandista deu um sorriso torto, segurando uma chave de torque maior que a própria coluna. As lentes ópticas vibraram, refletindo os letreiros quebrados acima.

“Tentaram. Mas descobriram que meu fígado vale menos do que custa tirar.”

Ele se aproximou, cruzando os braços. — “E você? Tá contrabandeando o quê agora? Armas? Memórias falsificadas? Plasma negro? Ou... —” ele curvou um sorriso ainda mais malicioso — “...sorvete?”

Ela bufou, cruzando os braços, encarando-o como quem considera seriamente o homicídio.

“A galáxia inteira já tá sabendo?”

“Talvez. E talvez você devesse saber que... tem coisa grande rolando por aqui. Gente sumindo no setor Aegis-13. Sinais que apagam do nada. Dados inteiros desaparecendo dos arquivos da Liga. E sabe quem tá metido no meio?” — ele fez uma pausa, apontando o queixo pra algum ponto imaginário acima. — “Skarlo.”

Lúcia fingiu não reagir. Mas sentiu aquele velho frio subir pela espinha. O tipo de frio que você não sente na pele, mas nos ossos.

Quando Joseph apareceu, ele não trouxe flores. Nem pedidos de desculpa. Nem, muito menos, aquele bônus extra que claramente deveria ter pago.

Simplesmente puxou uma cadeira. Sentou. Jogou as botas em cima da mesa de metal tão enferrujado que rangia só de existir.

“Lulu...”

Ela nem piscou. — “Joseph, você tem exatamente três segundos pra retirar isso. Ou eu enfio sua cabeça no conversor gravitacional da doca.”

Ele sorriu. Aquele sorriso. Tortíssimo. Cínico. Metade charme, metade sentença de morte.

“Relaxa, Vega. Hoje é... negócios.”

Ela largou o que estava bebendo — algo que juravam ser cerveja, mas tinha gosto de solvente — e cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha com a precisão cirúrgica de quem estava a meio segundo de um homicídio.

“Vai. Me surpreende.”

Ele puxou um holo, ativou com um estalo. A projeção se abriu no ar — mapas do setor Aegis-13. Trilhas de navegação riscadas. Pontos vermelhos piscando. Áreas marcadas como “Zona Restrita”, “Sinal Perdido”, “Atividade Criminosa Confirmada” e um particularmente simpático: “Se você está aqui, já está morto.”

Joseph girou o holo, fez zoom num ponto isolado. Uma pequena estação orbital. Sem nome. Sem registros. Só uma coordenada perdida no fim do nada.

“Isso aqui...” — começou, batendo o dedo no holo — “é onde tá a carga. Pequeno. Discreto. Mas trancado que nem o inferno num dia ruim.”

Ele deslizou pra outra imagem. Uma caixa. Grande. Blindagem tripla. Selos de segurança militar. Lacres holográficos girando. E o adorável aviso:

“Classificação Omega. Violação resulta em terminação imediata.”

Ela respirou fundo, puxou a cadeira pra trás, cruzou as pernas.

“Quantos tentaram antes de mim?”

Joseph estalou a língua, olhou pro teto, balançou a cabeça.

“Não é relevante.”

“Isso significa mais de três.”

Ele acenou. — “Talvez mais de cinco.”

Ela esfregou o queixo, olhos semicerrados.

“E quem quer essa carga?”

“Liga Mercante, com certeza. Sindicato Orlok, sem dúvida. Uns caçadores da Varkul apareceram perguntando também. E...” — fez uma pausa, abaixando o tom — “...tem um grupo novo. Ninguém sabe quem são. Nem de onde vieram. Só sei que não são o tipo que deixa rastro. Nem testemunhas.”

Ela olhou pra ele como quem olha pra um mapa de minas terrestres, sabendo que precisa atravessar.

“Ok. E quanto?”

Joseph deslizou o valor no holo.

O número apareceu.

O silêncio se instalou.

Era... imoral.

O tipo de valor que faria qualquer piloto largar a nave no ferro-velho mais próximo e viver numa praia de areia sintética pelos próximos vinte anos.

Ou... morrer tentando.

Ela respirou. Lenta. Longa. O peito subindo e descendo como quem conta mentalmente até dez — ou até cem. Soltou o ar pelo nariz, cruzou os braços sobre a mesa e inclinou o corpo pra frente, diminuindo a distância entre eles até que só restavam centímetros.

“Tá. Agora me diz, Joseph...” — os olhos semicerrados, tom de voz macio, venenoso — “...isso é uma proposta ou uma tentativa muito elaborada de assassinato terceirizado?”

Ele abriu aquele sorriso torto que só ficava entre o charme barato e a confissão de culpa.

“Depende. Tecnicamente... pode ser as duas coisas.”

Ela girou os olhos, empurrou o holo na direção dele como quem empurra uma conta absurda de um restaurante que nunca deveria ter entrado.

“Isso aqui nem é pagamento. É indenização póstuma.”

“Ei, ei...” — Joseph ajeitou-se na cadeira, ajeitando as lapelas da jaqueta cheia de bolsos. — “Você sabe que se fosse fácil, eu não te chamava. E se fosse impossível... bem, também não te chamava. Tá exatamente na linha tênue do ‘provavelmente dá merda, mas talvez não’. É o seu território.”

Ela riu. Seca. Curta. — “Ah, ótimo. Minha reputação virou isso. A mulher que vive na linha do ‘talvez não morra’.”

“Exato.” — Ele estalou os dedos, satisfeito.

“E essa caixa aí...” — Ela tamborilou o dedo na projeção — “...vale tudo isso por quê? Vem com um portal pra outra dimensão? Ou é só um corpo que você esqueceu de enterrar?”

Joseph olhou pros lados, abaixou um pouco mais a voz, como quem não queria que nem os sensores ambientais escutassem.

“Se eu soubesse... não precisaria de você.”

Ela arqueou a sobrancelha. — “Mentira.”

“Verdade parcial.”

“O que significa que você sabe, mas não quer me contar.”

Ele sorriu. — “Você me conhece bem demais, Vega. Isso chega a ser desconfortável.”

Ela empurrou a cadeira pra trás, cruzou as pernas, batendo o pé no ritmo do próprio tédio crescente.

“Ok. Vamos lá. Cenário um: eu aceito, pego a carga, me livro dos babacas da Liga, do Sindicato, dos Varkul e desse grupinho novo sem nome, entrego e fico rica.”

Ela levantou um dedo.

“Cenário dois: eu aceito, pego a carga, morro.” — Levantou outro dedo. — “Cenário três: descubro o que tem na caixa, fico curiosa, abro, e aí...” — fez um gesto amplo com a mão — “...universo colapsa, ou eu viro alvo da metade dele.”

Joseph deu de ombros, como quem aceita todas as alternativas com a mesma naturalidade de quem escolhe entre dois tipos de café ruim.

“Tecnicamente... tá tudo correto.”

“E você quer que eu faça isso por...” — ela apontou pro holo — “...esse valor? Joseph, isso é muito dinheiro. O que significa que, se você tá oferecendo tudo isso, essa coisa não vale muito. Ela vale muito mais.”

Ele inclinou-se, sorriso diminuindo, olhos apertando. — “Agora você começa a entender o jogo, Vega.”

“Não, Joseph. Eu entendo o jogo desde que nasci. Eu só tô decidindo se topo jogar contigo... ou te deixo flutuando no espaço preso num contêiner de lixo biológico.”

O silêncio se instalou. Por alguns segundos, só o zumbido dos estabilizadores da estação, o estalo das luzes defeituosas e uma sirene distante, que ninguém parecia se importar.

Joseph respirou fundo, esticou os braços sobre a mesa.

“Tá. Vamos lá. Três condições.”

Ela arqueou a sobrancelha. — “Se isso for uma tentativa de abaixar meu pagamento, eu te juro...”

Ele levantou as mãos. — “Não. O valor é aquele. Sem choradeira. Mas...” — abaixou a voz — “...primeira: você não pergunta. Não fuça. Não abre.”

“Isso não é uma condição. Isso é um convite.” — respondeu, olhando pra ele como quem observa um prato duvidoso tentando decidir se come ou não.

“Segunda: discrição total. Se alguém perguntar... você tá transportando...” — ele olhou em volta, pensou — “...camas infláveis.”

Ela revirou os olhos. — “Sério?”

“Quer um nome mais convincente?”

Ela pensou por dois segundos.

“Carregamento de geradores quânticos de terceira linha. Ninguém olha pra essa merda.”

Joseph estalou os dedos, animado. — “Perfeito! É por isso que você é a melhor.”

Ela fez uma careta, enfiando o rosto nas mãos. — “Não me elogia. Me paga.”

“E terceira...” — Joseph se ajeitou na cadeira, o sorriso diminuindo, agora mais sério, mais seco — “...dessa vez, você não vai estar sozinha.”

O silêncio que seguiu não era desconfortável. Era denso. Quase sólido. Dava pra ouvir o estalo de um transformador queimando na parede. Dava pra ouvir até os próprios batimentos cardíacos.

Ela puxou o ar, devagar, mordeu o lábio inferior.

“Explica. Antes que eu te mate por esporte.”

Joseph esfregou as mãos, olhando pra qualquer lugar, menos pra ela.

“O contratante quer garantias. Disse que... você é boa. Mas... talvez não boa o suficiente... sozinha.”

Lúcia fechou os olhos, respirou fundo, apertou o punho.

“Eu mato esse cara. E depois mato você. E depois me mato. Não necessariamente nessa ordem.”

Ele levantou as mãos, sorrindo como quem tenta vender uma nave sem motor. — “Calma! Você vai gostar deles. Profissionais. Competentes. Um deles até tem licença de piloto válida...”

Ela socou a mesa. A mesa gemeu. Joseph também.

“Se isso der errado, Skarlo...” — a voz dela saiu tão baixa quanto uma ameaça feita com uma lâmina encostada no pescoço — “...eu volto. E te transformo no maldito recheio de um burrito de proteína sintética.”

Ele sorriu. Tortíssimo. — “Sabia que ia aceitar.”

Ela respirou, massageando as têmporas.

“Não. Eu não aceitei. Eu só ainda não te matei.”

E, enquanto se levantava, ajeitando o coldre na perna, Lúcia percebeu uma coisa. Não era só mais um trabalho.

Era uma armadilha.

E ela... estava andando direto pra dentro.

Mas, fazer o quê. Ela nunca soube dizer não pra encrenca.

O problema das estações espaciais esquecidas pela civilização é que elas nunca sabem quando você já tem problemas demais. Elas sempre oferecem mais um.

Argo 9 gemia. Literalmente. O som vinha de algum lugar nas entranhas da estação, uma mistura entre o ranger de vigas dilatando e o protesto abafado de motores antigos tentando, sem sucesso, seguir funcionando. O ar carregava aquele cheiro permanente de ozônio queimado, óleo hidráulico e fritura — seja lá o que estivessem fritando.

Lúcia Vega caminhava pela doca secundária 4-G com os passos pesados de quem estava prestes a tomar uma decisão daquelas que te definem... ou te enterram.

Joseph havia deixado um recado simples — simples até demais pro gosto dela.

“Doca 4-G. 15:00 horas padrão. Sua equipe te espera. E, Vega... tenta ser simpática, tá? Eles mordem.”

O que, vindo de Joseph, não era metáfora. Ela conhecia bem o tipo de criatura que ele era capaz de chamar de “parceiro de negócios”.

As portas da doca abriram com aquele chiado característico, revelando uma cena que, sinceramente, não surpreendia mais ninguém naquele ponto da vida de Lúcia.

Três figuras esperavam.

Muito diferentes.

Muito erradas.

E, por alguma maldição cósmica, agora eram o que Joseph chamava de “reforços”.

No canto esquerdo, encostada casualmente numa empilhadeira gravitacional, estava Nyx — ou melhor, a Unidade Cibernética de Segurança e Contenção, modelo CXS-9. Dois metros de polímero negro, olhos de plasma azul brilhando e uma postura que fazia qualquer um pensar duas vezes antes de puxar uma arma. A carcaça dela era marcada por impactos, arranhões e uma série de inscrições pintadas à mão, com símbolos que poderiam ser arte... ou ameaças em línguas extintas.

Ela analisou Lúcia dos pés à cabeça. Um som metálico soou dentro do tórax dela. Talvez um processador iniciando. Ou talvez fosse riso.

“Humana detectada. Status: mal-humorada, 78% de chance de sarcasmo iminente.”

Lúcia cruzou os braços. — “Parabéns. Sua IA é mais inteligente que 90% dos idiotas dessa estação.”

No centro, sentado em cima de uma caixa, as pernas balançando, estava Mako Renn. Jaqueta rasgada, botas sujas, cabelo raspado de um lado e tatuagens fosforescentes subindo pelo pescoço. Ele segurava um cigarro eletrônico desligado — provavelmente quebrado, como tudo nele — e sorria como quem já devia dinheiro pra metade da galáxia.

“Olha só... então você é a famosa Lúcia Vega.” — ele assobiou. — “Tô começando a entender porque Joseph falou que você tinha cara de quem resolve problemas...” — ele inclinou a cabeça — “...ou cria eles.”

Ela nem piscou. — “Você é o quê? Piloto, mercenário ou só acidente de laboratório mal-sucedido?”

Mako gargalhou. — “Depende do dia.”

Por fim, meio escondido atrás de um console quebrado, remexendo cabos e soltando pequenos chiados irritados, estava Zurgo, um Skevar baixinho, pele azul, olhos enormes e negros como óleo, e braços longos. Uma mochila cheia de ferramentas, peças e sucata parecia fazer parte dele.

“Aí! Isso aqui tava desligado faz só... três décadas. Ainda funciona! Eu acho. Talvez.”

Quando notou a presença dela, esticou o pescoço, piscando rápido.

“Você é a chefe, é? É, é. Tá com cara de chefe. Olhar de quem mata primeiro e pergunta depois. Gosto disso.” — estendeu a mão, suja de graxa. — “Zurgo. Mecânico. Técnico. Especialista em consertar coisas. E... às vezes... em quebrar elas.”

Lúcia respirou fundo. Bem fundo. O tipo de respiração que vem logo antes de alguém decidir se bate ou se simplesmente aceita o próprio destino.

“De todos os pedaços de lixo flutuante nessa estação...” — ela balançou a cabeça — “...Joseph, você realmente se superou.”

“Considero isso um elogio.” — respondeu Mako, sorrindo.

Nyx inclinou ligeiramente a cabeça, olhos piscando.

“Interpretação: sarcasmo detectado. Sugestão: iniciar protocolo de ajuste comportamental via ameaça física.”

“Relaxa, grandona...” — respondeu Lúcia. — “Você me quebra, e quem pilota essa lata velha que eu chamo de nave?”

Zurgo se intrometeu, saltitando.

“Tecnicamente, a nave tá mais pro lado de ‘cadeia molecular prestes a se desintegrar’. Mas... se ninguém apertar o botão vermelho, ela aguenta.”

“Tem um botão vermelho?” — perguntou Mako, curioso.

“Agora tem.” — respondeu Zurgo, animado.

Lúcia apertou os olhos, levou a mão à têmpora, massageando.

“Perfeito. Maravilhoso. Sensacional. Isso... vai dar muito, muito errado.”

Mas, no fundo, ela sabia. Esse era o tipo de errado que ela entendia.

O tipo de errado que sabia navegar.

O jogo estava em movimento.

E ela... já estava dentro.

O som dos estabilizadores da doca parecia mais alto agora. Ou talvez fosse só a pressão no peito de Lúcia, aquele tipo específico de aperto que surge quando você percebe que tomou uma decisão da qual, com toda certeza, vai se arrepender.

Ali estava ela. Encostada na lateral da Estrela Perdida, encarando aquele trio improvisado de desastres ambulantes que, por alguma ironia cósmica, Joseph agora chamava de “equipe”.

Nyx se destacava por pura presença. Dois metros de androide militar desativado — ou melhor, “descomissionado”, como ela mesma fazia questão de lembrar. Uma torre de polímero reforçado, sensores azuis piscando, com aquele jeito de quem calcula, friamente, quantos ossos orgânicos seriam necessários quebrar pra resolver qualquer problema.

Ao lado, Mako Renn parecia exatamente o oposto. Magro, desleixado, sorriso fácil. Jaqueta rasgada, botas amassadas, tatuagens que pulsavam em tons de azul sob a luz intermitente da doca. Aquela postura relaxada, meio torta, que só quem vive fugindo de dívidas, caçadores de recompensa e talvez uns dois ou três ex-cônjuges consegue manter.

Zurgo, por sua vez, já estava meio enfiado debaixo da fuselagem da nave, balançando as pernas curtas enquanto apertava alguma coisa que, definitivamente, não deveria estar sendo apertada.

“Se isso explodir, a culpa não é minha...” — comentou, em voz alta, como quem apenas constatava o óbvio.

Lúcia revirou os olhos e suspirou.

“Bom... se vocês estão aqui, é porque eu tomei decisões horríveis na vida.”

“Então, vamos deixar uma coisa clara. Essa lata velha é minha. As decisões são minhas. E se alguém tocar num botão sem permissão...” — lançou um olhar particularmente demorado pra Mako e Zurgo — “...eu jogo no compartimento de lixo e abro a escotilha. Entendido?”

Mako ergueu as mãos, sorriso afiado.

“Relaxa, chefe. Eu nem sei quais botões fazem o quê... ainda.”

Nyx processou por alguns segundos, olhos vibrando.

“Confirmação de protocolo: obediência hierárquica aceitável. Porém...” — virou lentamente a cabeça na direção de Lúcia — “...caso sua liderança comprometa a sobrevivência da unidade, tenho autorização para tomar controle tático.”

Lúcia arqueou uma sobrancelha, meio sorriso nos lábios.

“Claro. Você tenta.”

Zurgo estalou algum cabo lá embaixo, soltando uma faísca azulada que fez todos — inclusive Nyx — olharem na direção dele.

“Aí! Isso devia estar solto assim?”

“Definitivamente não.” — respondeu Mako, pulando pra trás uns dois metros.

Lúcia apertou a ponte do nariz.

“Santo motor de dobra...” — murmurou. — “Todo mundo a bordo. Agora. Antes que essa estação perceba que vocês existem e cobre uma taxa por poluir visualmente o ambiente.”

O interior da Estrela Perdida não estava muito melhor que seu exterior. Painéis faltando, fios expostos, telas holográficas piscando de vez em quando — e não necessariamente quando deveriam. O cheiro era uma combinação incômoda de graxa velha, ozônio e café queimado de três viagens atrás.

Zurgo foi direto pro compartimento de manutenção, onde desapareceu sob uma pilha de cabos, tubos e, possivelmente, restos de um dróide de limpeza que já havia desistido da vida.

Nyx caminhava com aquele passo pesado que fazia o chão vibrar, os olhos sempre escaneando, analisando, catalogando. A cada canto da nave, soltava uma avaliação em voz alta.

“Integridade estrutural: 43%. Risco de colapso na seção ventral: moderado. Sistema de suporte de vida: funcional, com 12,4% de chance de falha em ambientes extremos. Conclusão: nave inadequada para operações de risco. Recomendo evacuação.”

Mako largou sua mochila no assento do copiloto, se jogando na cadeira como quem acabava de chegar numa praia paradisíaca — se a praia fosse feita de ferrugem e odor de circuito queimado.

“Cara, essa nave é uma obra de arte.” — disse, admirando as rachaduras no visor frontal. — “Daquelas que você olha e pensa: ‘nunca vai decolar’. E então... decola. E talvez exploda. Mas decola.”

Lúcia apertou alguns botões no painel, ajustando os propulsores laterais — que, como esperado, reclamaram com um chiado agudo.

“É. Bem-vindos à Estrela Perdida. Onde cada viagem é um milagre. E cada pouso, um acidente planejado.”

“Gostei.” — Mako girou no assento. — “Tem seu charme.”

“A gente chama de charme. Os engenheiros chamam de ‘violação de pelo menos sete leis da física e três do código espacial’.”

Nyx tomou posição atrás deles, olhos azuis piscando em ciclos de análise.

“Recomendo: iniciar checklist de salto. Prioridade: sobrevivência.”

Zurgo surgiu do compartimento inferior, escalando um cano meio solto.

“Boa notícia!”

Lúcia virou lentamente, olhando pra ele, já sabendo o que vinha.

“Tem uma má, né?”

Ele sorriu. Aqueles dentes pequenos, meio tortos, que definitivamente não passavam segurança.

“Não exatamente... só que... bom... a estabilização gravitacional da dobra... tá... é... digamos que... instável.”

“O que significa, Zurgo?” — ela apertou os olhos.

“Que... talvez a gente salte inteiro. Ou... talvez... a gente vire purê quântico.”

Mako levantou as mãos. — “Perfeito. Eu tava mesmo precisando de um pouco de emoção na vida.”

Lúcia girou no assento, puxando o cinto.

“Prendam-se. Apertem o que der. E se virem uma luz branca no meio do salto... não andem pra ela.”

Ela puxou as alavancas. As luzes da cabine piscaram. Um zumbido grave percorreu toda a fuselagem. A estrutura da nave gemeu como se alguém tivesse acabado de dar um soco numa lata velha de combustível.

O espaço à frente distorceu. Linhas de luz esticando, dobrando, retorcendo como se o próprio universo puxasse as pontas pra abrir caminho.

“Tá... tá...” — Lúcia murmurou. — “Estabilizando... agora segura...”

O painel acendeu em vermelho.

ALERTA: FLUXO DE DOBRA IRREGULAR — RISCO DE DILACERAÇÃO ESPACIAL

“Ótimo. Maravilhoso.” — ela apertou os dentes.

Zurgo começou a balançar as mãos freneticamente. — “É... talvez... talvez se eu...” — e socou o painel lateral com uma chave de torque.

O zumbido mudou. Um estalo. Faíscas.

“Aí! Foi!”

O túnel de dobra se abriu. A Estrela Perdida sumiu do espaço normal, engolida por um clarão azul violento. Por um instante... só silêncio. Depois, o som baixo. Grave. Quase uma vibração no osso, mais do que no ouvido. E então... tudo ficou negro. No painel, um alerta piscava.

“Falha parcial no núcleo de dobra. Salto incompleto. Anomalia detectada.”

E lá fora, uma sombra enorme começava a tomar forma no vazio do espaço.

Um cruzador. Não. Algo maior. Muito maior.Sem sinal identificável. Sem transponder. Sem registro nos mapas. O tipo de coisa que não deveria estar ali. O tipo de coisa... que nunca é boa notícia.

4 Comentários

  1. Lucia Vega é daquelas personagens que caminham entre o cômico e o deboche ecrachado.

    Uma sobrevivente.espacial.que vai vivendo de rolos para sobreviver em meio ao caos.

    O típico personagem que vende o almoço pra comer a janta, se equilibrando no fio da navalha.

    A construção dela tem sido muito bacana.

    Vejamos se, com esse trio maluco, ela cumprirá a sua missão.

    Parabéns!

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  2. Meu amigo! A cada capítulo a qualidade da escrita só aumenta. Lúcia é uma personagem badass que vai de encontro às péssimas representações de personagens femininas fodonas que tem sido feitas hoje em dia, todas extremamente mal escritas. Tem tem todo um charme a lá Sara Connor e Ripley que é impossível não ser conquistado de cara.
    nesse capítulo também temos uma equipe formada à força que promete muito, cada um chamando a atenção pos características únicas e que, pela periculosidade da missão, é bem capaz de não retornarem todos! E já adianto que se acontecer qq um deles fará falta e você conseguiu fazer com que eu me importasse com eles em apenas um capítulo! Incrível.
    A ambientação continua espetacular, com destaque para mim desse salto espacial que aparentemente deu muito errado.
    Meus parabéns por mais um capítulo impressionante!

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  3. Calma o clima aqui não e tão pesado quanto Por Trás Dos Olhos, por enquanto ainda não pensei em matar qualquer personagem....mas quem sabe...

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