MISSÃO 07
FERRUGEM, DÍVIDAS E MÁS COMPANHIAS
A Estrela Perdida mancava pelo hiperespaço. Sim, mancava. Porque, tecnicamente, uma nave não deveria ser capaz de mancar. Mas aquela era uma exceção muito teimosa às regras da física — cada salto parecia mais um suspiro de uma velhinha que não sabe se termina o cigarro ou simplesmente deita pra morrer. Dentro do cockpit, Zurgo martelava um painel com uma chave de torque do tamanho da própria cabeça.
— “Eu juro... se esse conversor explodir, eu explodo junto. Pelo menos economiza combustível...”
Mako olhava pras luzes piscando no radar, branco como farinha.
— “Sério... quem foi o gênio que projetou esse lixo voador? Isso aqui não é uma nave. É um obituário com motor.”
Lúcia apertava o manche, olhos semicerrados, mandíbula travada.
— “Fica quieto, Mako. A gente tá a poucos minutos de Scylla Prime.”
Zurgo se virou, arregalando os olhos. — “A GENTE VAI PRA
SCYLLA?!!”
— “Aham.”
— “SCYLLA PRIME?!
PLANETA DOS PILANTRAS, TRAFICANTES, DESMONTADORES DE NAVE E LADRÕES DE ÓRGÃOS?!
ESSE SCYLLA PRIME?!”
— “Esse mesmo.”
— respondeu Lúcia, seca.
Mako gemeu, batendo a testa no painel. — “Perfeito. Absolutamente perfeito. A gente sobrevive a monstros alienígenas, quase explode, e agora vai morrer esfaqueado numa briga de bar.”
Lúcia nem piscou. — “Se a gente sobreviver à oficina do Krag, qualquer coisa depois disso é bônus.”
A Estrela Perdida fazia sons que, definitivamente, uma nave não deveria fazer. O painel do cockpit piscava em cores que não estavam no manual. As luzes de diagnóstico alternavam entre vermelho, laranja e um tom de roxo ameaçador que, segundo Zurgo, “nem devia existir fora de uma supernova ou de uma rave muito ruim.” O som dos estabilizadores traseiros rangia como ossos quebrando em loop. O motor lateral chiava, cuspindo gás de escape como se tivesse uma crise asmática interplanetária. No visor frontal, uma única coisa se destacava: um planeta seco, poeirento, manchado de ferrugem, cercado por anéis de sucata e uma nuvem constante de lixo espacial. Scylla Prime. O tipo de lugar onde até o oxigênio era cobrado. E caro.
— “A gente tá MESMO indo pra Scylla...” — Mako resmungou, encarando o visor com o olhar de quem assiste um acidente em câmera lenta.
— “...cê sabe que se a nave não matar a gente, o planeta mata. Ou alguém nele.”
Zurgo bateu no painel, literalmente.
— “Pior... se esse gerador auxiliar travar, a gravidade some. E se a gravidade some, eu... EU... eu desisto. Viro nuvem. Fim.”
Lúcia não respondeu. A mão apertava o manche, firme. O
queixo duro. O olhar, focado.
— “Krag ainda tá
lá. E ele ainda deve me dois reparos e meio. Aquele miserável me deve até os
parafusos que roubou de mim cinco anos atrás.”
— “Krag?!” — Zurgo quase caiu da cadeira. — “O Krag-Desmonta-Até-a-Própria-Mãe?! Você vai botar a nossa nave... nas mãos DELE?!”
Lúcia deu um sorriso fino. — “Ele é o melhor. Ou o menos pior. Depende do ponto de vista.”
O radar apitou. Um satélite quebrado flutuava a poucos
metros da proa, girando lentamente, com pedaços de antenas e carcaças presas
nos cabos. Scylla
Prime não tinha uma estação orbital. Tinha um campo de destroços, onde naves
quebradas, abandonadas ou roubadas se empilhavam no espaço como lixo esquecido
por deuses bêbados. No rádio, uma voz soou. Rota, grossa, cheia
de ruídos e com sotaque de quem fumava sucata no café da manhã.
— “Nave não
identificada... escaneando. Se tiver armas ativas... a gente responde. Se não
tiver... também responde. Bem-vindos a Scylla Prime, seus desgraçados.”
Zurgo se afundou no assento.
— “Perfeito. Incrível. Maravilhoso. A gente escapou da morte pra... isso.”
Lúcia nem piscou.
— “Desativa as armas. Ativa os protocolos de aproximação. Joga esse código velho da última vez que estive aqui, funcionou.”
Nyx processou, conectando-se ao terminal externo.
— “Código aceito. Acesso liberado para plataforma 17-C. Observação: risco de roubo: 96%. Risco de morte por facada: 67%. Risco de assassinato geral: 88%.”
— “Só isso?” — Mako bufou. — “Tava achando que era mais.”
A Estrela Perdida deslizou lentamente pela órbita
baixa, cruzando as nuvens de lixo espacial até atravessar a camada atmosférica
— ou o que Scylla Prime chamava de atmosfera.
O céu era marrom. O chão, vermelho-ferrugem, cheio de crateras, montanhas de
sucata, prédios tortos, plataformas feitas de pedaços de naves recicladas, e
torres com canhões giratórios que apontavam pra qualquer coisa que se mexesse
mais rápido do que devia.
A plataforma 17-C parecia... segura. Quer dizer... não estava pegando fogo. Ainda.
Zurgo olhou pela janela, olhando uma nave estacionada ao lado. Ela estava literalmente segurada por cordas. CORDAS. Com ganchos de carga.
— “Isso não é um planeta... isso é um erro administrativo galáctico.”
Lúcia alinhou a Estrela Perdida, baixou a rampa e desligou os motores — que tossiram, chiaram e gemeram como um animal velho que finalmente ganhou permissão pra morrer.
Ela se levantou, olhou pro grupo.
— “Certo.
Bem-vindos a Scylla. Aqui...” — respirou fundo — “todo mundo quer te
roubar, te enganar ou te matar. Às vezes, nessa ordem. Às vezes, tudo junto.
Fiquem juntos. De olho em tudo. E não... não façam contato visual com ninguém
que tenha mais de dois olhos. Confia em mim.”
Mako bufou. — “Perfeito. Tranquilo. Eu tava mesmo precisando de um banho de tensão e adrenalina. Relaxa que eu já tô quase com úlcera.”
Zurgo segurou o módulo como se fosse um recém-nascido. — “Eu não sei se fico feliz por não ter sido comido vivo na Kronos... ou triste por, aparentemente, estar prestes a ser esfaqueado por um mecânico que cobra até pelo olhar.”
Lúcia puxou a porta do compartimento de armas, conferiu
o blaster, olhou pra eles e deu aquele sorrisinho torto, de quem sabe
exatamente onde tá se metendo.
— “Bem-vindos ao
lado ruim da galáxia.”
A rampa se abriu. O cheiro de ferrugem, ozônio, graxa queimada e
falsidade escancarada invadiu a nave. Scylla Prime. O lugar onde
esperança vinha desmontada, faltando peças, sem manual, e ainda custava caro. O calor bateu primeiro. Um
calor seco, sufocante, carregado de poeira e cheiro de metal queimado. Depois,
veio o barulho — aquele tipo de barulho que não é um som, mas um ataque
sensorial. Martelos pneumáticos, gritos em idiomas incompatíveis,
alarmes, sirenes, geradores falhando, motores cuspindo faíscas, discussões
acaloradas, explosões pequenas — e, de vez em quando, alguma explosão grande o
suficiente pra todo mundo virar a cabeça, dar de ombros e seguir a vida. Scylla
Prime era isso. Uma
cicatriz no mapa da galáxia. Um planeta onde as coisas vinham pra
morrer — ou pra quem queria viver mais um pouco... de jeitos que os tratados
intergalácticos considerariam profundamente imorais. As ruas eram passarelas
metálicas soldadas de qualquer jeito, plataformas flutuantes, corredores de
carga, tubos reaproveitados de naves quebradas e estruturas que pareciam
desabar a qualquer instante, mas nunca desabavam. Pelo menos... não hoje. Vendedores de
sucata brigavam por espaço, oferecendo peças roubadas,
modificadas ou francamente amaldiçoadas. Hologramas tremeluzentes piscavam em
neon sujo:
→
“ARMAS — SEM PERGUNTAS, SEM REEMBOLSO”
→
“IMPLANTES BIOLÓGICOS — QUASE LEGAIS”
→
“OXIGÊNIO PURO — PRIMEIRA HORA GRÁTIS*” (com um asterisco que
nunca levava a lugar nenhum)
Do outro lado, um trio de mercenários Kaeliths
(os insetoides de carapaça dourada) discutia com um Haurak — um mamífero enorme,
peludo, de boca larga e dentes à mostra — que segurava uma caixa de munição e
um bastão elétrico que parecia mais uma árvore podada.
— “TE FALEI, DOZE
MIL!” — urrava o Haurak, saliva voando.
— “É PEÇA DE NAVE
EXPERIMENTAL, SEU TROGLODITA, ISSO VALE VINTE!!!” — clicou o
Kaelith, as mandíbulas tremendo.
BOOM! —
Uma das tendas explodiu, lançando caixas, mercadorias e pelo menos dois corpos
pra fora.
Ninguém sequer olhou.
— “Deve ter sido o
reator de fusão da banca do Lorgan...” — comentou Lúcia, casual,
encolhendo os ombros.
Zurgo segurava o módulo apertado contra o peito,
olhando em volta com aquele clássico olhar de pânico que ele carregava como
assinatura.
— “Eu odeio esse
lugar... odeio, odeio, odeio...” — repetia, quase como um mantra.
Nyx andava à frente, sensores rodando, calculando as
probabilidades de cada esquina ser uma armadilha, um roubo ou uma tentativa de
sequestro.
— “Risco de crime
violento nas próximas duas quadras: 84%. Sugestão: manter formação defensiva.”
— “Aqui, Nyx...” — respondeu Lúcia, olhando pros lados — “...a única formação defensiva que funciona é parecer mais louco do que quem quer te assaltar.”
Eles atravessaram uma praça que, aparentemente, era feita só de containers empilhados, cercados por drones armados e pessoas discutindo o valor de... algo que parecia ser um fígado. Zurgo não quis conferir se era realmente um fígado. Preferiu não saber. Mako chutou uma latinha de metal pelo caminho.
— “Diz uma coisa, Lúcia... quem foi que te apresentou esse paraíso turístico, hein? Sério. Isso aqui tem tudo que um resort de férias oferece: calor, cheiro de morte, e a chance constante de levar um tiro. Sensacional.”
Lúcia respondeu sem olhar, olhos fixos numa plataforma
suspensa, onde três robôs-lutadores quebravam um ao outro enquanto uma multidão
apostava, berrava e jogava garrafas.
— “Fui criada aqui,
quando uma capsúla de fuga onde eu estava caiu nesse planeta... Mas isso é uma
história que prefiro não contar.”
Zurgo bufou. — “Ah, ótimo. Um passado traumático.”
— “Tá. Vamos fingir
que qualquer um de vocês fracassados também não tenham histórias para contar.”
— rebateu Lúcia.
Eles passaram por uma oficina aberta, onde um grupo de Chubats — uma
espécie de tecnomorcegos de braços longos — serrava o casco de uma nave
inteira... com a
tripulação ainda dentro, gritando e batendo nas janelas.
— “Cê acha que eles
vão...” — começou Mako.
— “Não. Não olha.
Não pergunta.” — cortou Lúcia, seca.
O cheiro piorou conforme avançavam. Mais óleo. Mais
ferrugem. Mais... seja lá o que estivesse apodrecendo naquele tanque de
contenção aberto. E então, no fim da plataforma Gama-5, depois de uma sequência
de degraus tortos, fios expostos, poças que ninguém em sã consciência pisaria,
e dois drones de segurança meio desmontados... Ali estava. A oficina de Krag. Letreiro
piscando, pendurado de lado, com letras em neon azul quebrado que diziam:
“KRAG SOLUÇÕES TECNOLÓGICAS – Se Funciona, Tá Novo”
(E alguém, provavelmente um cliente insatisfeito, pichou logo abaixo: “E SE NÃO FUNCIONA, TAMBÉM.”)
O portão da oficina estava meio aberto, e lá dentro já
se ouvia:
— “NÃO! NÃO PISA
AÍ!!! AAAH, DROGA, ERA O GERADOR!!!” — seguido de uma explosão
curta, faíscas, fumaça preta... e silêncio.
Zurgo engoliu em seco.
— “Sabe... a gente ainda pode ir embora. Viver sem dobra não é tão ruim assim. É... é... vintage.”
Lúcia respirou fundo, puxou a jaqueta, conferiu o
blaster no coldre, estalou os ombros e caminhou.
— “Venham. Tá na
hora de cobrar umas dívidas.”
O portão pneumático da oficina estava meio aberto, preso num dos trilhos, rangendo como um animal ferido. De dentro, saía uma fumaça densa, carregada de cheiro de plástico queimado, graxa fervendo e algum tipo de metal derretido que, sinceramente, provavelmente não deveria estar sendo derretido. Zurgo olhou, segurando o módulo apertado contra o peito.
— “Isso... isso é seguro?”
Mako bufou.
— “Se fosse seguro, não seria Scylla.”
De repente, um estrondo.
BOOM!
Uma coluna de faíscas subiu pelos conduítes da parede, seguida de uma voz
rouca, grave, carregada de fúria:
— “NÃO! NÃO PISA
NESSE CABO— AAAARGH!!!”
Mais fumaça. Mais estalos. Mais gritos. Depois,
silêncio. Lúcia respirou fundo e... chutou o portão.
— “Krag! Abre essa
droga! Eu sei que você tá aí!”
Por um segundo, nada. E então... passos. Pesados. Arrastados.
O portão tremeu, rangeu, e subiu, o suficiente pra deixar à mostra... ele. Krag. Quase
dois metros e meio de músculo, gordura, próteses e mau humor. Um humano que já
tinha perdido tanto do corpo original que, tecnicamente, ele era 60% sucata,
30% gordura e 10% dívida ambulante. Um olho biônico girava no soquete, piscando
luz vermelha. O outro era um olho natural — amarelo, irritado, inchado. A
mandíbula esquerda tinha sido substituída por uma placa metálica, com pistões
hidráulicos que rangiam toda vez que ele mastigava... ou xingava. Ele olhou. Viu
Lúcia.
E estalou a língua.
— “...tsc... Olha só quem o lixo espacial trouxe de volta.”
Ela sorriu torto no canto da boca.
— “Saudades também, Krag.”
A oficina... Bom... A oficina parecia uma nave
acidentada que alguém tentou transformar num ferro-velho, mas desistiu no meio
do caminho. Partes de motores estavam penduradas por correntes. Um reator
nuclear desmontado ocupava metade do espaço, cercado por cones laranja — como se aquilo fosse
suficiente pra impedir um vazamento radioativo. No canto, um dróide
sem cabeça soldava algo que definitivamente não deveria estar pegando fogo.
O chão estava tomado por ferramentas, peças, engrenagens, cabos, garrafas
vazias e o que parecia ser... um braço. Um braço biológico. Sanguinolento. Mako
olhou.
— “Isso é...?”
— “Não pergunta.”
— respondeu Lúcia, seca.
Krag andou até uma bancada, pegou um pano sujo que
parecia ter participado de uma guerra civil, e limpou a mão — ou tentou.
— “O que você quer,
Vega?”
Ela deu dois tapinhas no módulo que Zurgo segurava, fazendo ele quase derrubar.
— “Motor de salto. Quebrei um relé de fluxo gravitacional. E... a Estrela tá pedindo arrego.”
Krag bufou.
— “Que novidade. Essa sua lata velha já devia ter sido aposentada há cinco dobras atrás. Onde é que tu arranjou esse módulo? Tá... parece até novo.” — ele se virou, olhando Zurgo de cima a baixo. — “Quem é o gnomo da graxa?”
— “Ei! Eu sou engenheiro mecânico, especializado em manutenção de—”
— “Fala só se eu
perguntar, Smurf de oficina.” — cortou Krag, já pegando o módulo
e virando de um lado pro outro, batendo nele como se testasse se tinha moedas
dentro.
— “Funciona?” — perguntou Lúcia.
Krag girou o módulo, apertou um botão, olhou pra uma
luz que piscou e depois bateu duas vezes com força no painel lateral. O módulo
respondeu com um estalo e um bip fraco.
— “Funciona... mais
ou menos. Vai precisar de alinhamento. E de um condensador novo.”
— “Você tem?”
Krag coçou o queixo metálico, olhou pros lados, assobiou.
— “Talvez. Por coincidência. Se você...” — fez uma pausa dramática, olhando fixamente — “...me pagar aquela dívida.”
Mako explodiu. — “AH, NÃO! ISSO DE NOVO?! ISSO AQUI VAI SER UMA SÉRIE DE CHANTAGENS, NÃO UMA MANUTENÇÃO!”
Zurgo encolheu, segurando a mochila como quem segura a própria vida.
— “Eu não devia estar aqui. Eu devia ter ficado na nave. Eu devia estar em casa. Eu nem devia ter saído do planeta, na real...”
Lúcia respirou, olhou pro teto, cerrou os dentes. — “Krag, se você acha que eu vou pagar aquela droga de dívida, a gente pode encurtar a conversa AGORA.” — A mão já descia pro coldre.
Krag levantou uma mão, como quem diz “calma lá”,
e riu. Aquele tipo de riso que não era exatamente riso.
— “Relaxa, garota.
Não sou eu quem te cobra. Mas sabe como é... Scylla não esquece. Tem uns nomes
na sua ficha que... digamos... tão de olho.”
O silêncio caiu. Pesado. Nyx girou a cabeça devagar,
processando, mas não disse nada.
Mako olhou pra Lúcia, depois pra Krag, e depois pros lados, como quem mede
quantas saídas existem e quão longe ele consegue correr. Krag estalou os dedos,
deu dois tapas no módulo. — “Mas... negócio é negócio. Faço os reparos. Condensador, alinhamento,
ajuste do campo gravitacional e... uns reforços nos estabilizadores. Sua nave
tá mais torta que minha avó bêbada em dia de aniversário.”
— “Preço?” — perguntou Lúcia, já apertando os olhos.
— “Amizade.” — respondeu Krag, sorrindo. — “Mentira. Quatro mil créditos. E se quiser o alinhamento quântico no motor de dobra, são seis, e claro você esquece aquela dívida.”
Lúcia arfou.
— “SEIS MIL?! MAIS ISSO?! ISSO É... ISSO É ROUBO! ISSO É UM ASSALTO!”
Krag apontou um dedo grosso pra ela.
— “ASSALTO é aquele capacitor que você vendeu pra um cargueiro pirata no mês passado. Tá no banco de dados, viu?”
Lúcia empalideceu. — “...como é que você sabe disso...?”
Krag só deu aquele sorriso torto de quem sabe tudo, de
quem ouve tudo, de quem vê tudo... e cobra por isso. Lúcia respirou fundo.
— “Faz. E faz
rápido. A gente não vai ficar nesse buraco mais do que precisa.”
Krag estalou os dedos, girou uma chave de ignição numa
parede cheia de disjuntores...
E uma explosão no
fundo da oficina lançou uma roda girando na direção do grupo, que se abaixou
por reflexo. Krag nem piscou.
— “Normal. Isso
sempre acontece. Bem-vindos à Krag Soluções Tecnológicas. Se Funciona, Tá
Novo.”
Assim que Krag puxou a caixa de ferramentas e começou a xingar uma bobina que, segundo ele, estava “mais torta que promissória de político”, Lúcia virou-se pro grupo.
— “Zurgo, você fica. Krag vai precisar de ajuda... já que o último funcionário dele...” — fez uma pausa, olhando pro canto da oficina, onde uma mancha escura no chão indicava que algo muito, muito errado tinha acontecido ali. — “...parece que teve um pequeno acidente de trabalho.”
Zurgo arregalou os olhos.
— “Mas... e-eu... eu sou engenheiro, não necromante! Eu—”
— “Você vai. E
respira. E sobrevive. Se você não morrer até eu voltar, ganha um bônus.”
— Lúcia deu dois tapinhas no ombro dele.
— “E eu?” — perguntou Mako, desconfiado.
— “Fica. De olho.
Se alguém tentar abrir a nave, arrombar, desmontar... você grita. Corre. E se
der, atira. Nessa ordem.”
— “Ótimo. Perfeito. Melhor dia da minha vida.” — bufou Mako.
Nyx se aproximou, sensores girando, pronta.
Lúcia girou nos calcanhares.
— “Vem, Nyx. Hora de procurar dinheiro. E rápido.”
Sairam.
O
letreiro piscava, torto, meio apagado:
“GUILD CORE — CAÇADORES DE
RECOMPENSAS AUTÔNOMOS – NÓS CAÇAMOS O QUE OS OUTROS NÃO QUEREM”
(E alguém rabiscou embaixo: “Ou não podem. Ou não sobrevivem.”)
O bar era um amontoado de contêineres empilhados,
soldados com placas de nave reciclada, e uma porta de aço oxidado que parecia
mais um cofre velho de banco. O cheiro ali era uma mistura de suor, óleo
hidráulico, pólvora e má decisão. Dentro... o caos. Telões holográficos com
rostos, dossiês, mapas. Sons de sirenes, alertas, comunicações interceptadas.
Caçadores de todo tipo — humanos, androides, reptilianos, anfíbios, até algo
que parecia um polvo cibernético com pernas. No centro, uma cabine blindada com
janelas de vidro trincado.
Atrás dela... ele. Tarkos.
Veterano. Velho demais pra estar ali, teimoso demais pra não
estar. Um humano de meia-idade que parecia ter sido construído com couro, graxa
e café queimado. O rosto cortado de cicatrizes, parte do crânio substituído por
uma placa metálica, uma lente óptica implantada no olho esquerdo que girava
constantemente, rangendo.
Nos braços, tatuagens antigas, desbotadas — “Corpo de Fuzileiros Planetários – 2ª Divisão —
Desmantelada (duas vezes).” Ele mascava um charuto eletrônico que
soltava mais faíscas do que vapor. Quando viu Lúcia... o sorriso torto se
abriu.
— “Ora, ora, ora... olha quem resolveu aparecer nesse canto do universo. Vega. Nunca imaginei te ver por aqui... de novo.”
Lúcia cruzou os braços, aquele meio sorriso cínico no
rosto.
— “Tarkos... você
tá ficando velho. O cheiro de carne queimada continua o mesmo.”
Ele riu. Um som rouco, meio engasgado.
— “E você... ainda
tá devendo meio sistema solar pra alguém, aposto.”
— “Ainda não. E espero continuar assim.” — rebateu, secando. — “Preciso de dinheiro. Rápido. Trabalho pequeno, fácil, e que não envolva vender órgãos.”
Tarkos estalou a língua. — “Pequeno? Fácil? Aqui?” — ele bateu no terminal. — “Tá no lugar errado, garota.”
Digitou algumas coisas no painel, a lente dele piscou,
rodou, bipou. Ele parou. Olhou pra tela.
Arqueou uma sobrancelha.
— “Hm...”
Lúcia arqueou a sobrancelha de volta.
— “O que foi?”
Ele deu um sorrisinho.
— “Só... conferindo se... alguém já não colocou preço na sua cabeça.”
Pausa. A lente bipou.
— “Hã... olha só.
Ainda não. Mas tá no caminho, Vega. Tá no caminho.” — ele sorriu
de canto, acendendo o charuto de novo.
Lúcia soltou um suspiro pesado.
— “Que surpresa...”
Tarkos bateu no teclado, abriu um holo na frente delas.
— “Tá. Eu tenho um. Não é grande. Não é fácil. Mas paga bem. E você conhece.”
O holo girou. Foto: Um humano. Meia-idade. Barba mal
feita. Jaqueta de couro rasgado, óculos escuros espelhados. Um sorriso torto de
quem acha que é mais esperto que o universo.
Nome: Lonestar.
Crimes: Contrabando. Roubo. Pirataria. E... —
Tarkos virou o monitor, sorrindo — “Prostituição de
dróides. Não pergunte.”
Nyx piscou, inclinando a cabeça.
— “Definição de atividade: prostituição de dróides... não encontrada. Consultando... recomendação: não.”
Lúcia passou a mão no rosto, Lonestar era um velho conhecido.
— “...ok. Tá. Onde?”
Tarkos girou o holo, mostrando o mapa de Scylla.
— “Montanhas do
Sul. Na ravina de Skarn. Ele e o grupinho dele tão acampados lá, se escondendo
desde que roubaram três cargas da CorpOrion e destruíram uma patrulha de
interceptores.”
— “Grupinho?”
— “Quatro, cinco
caras. Talvez seis. Talvez... mais. Sempre muda.”
Lúcia apertou os olhos, cruzou os braços.
— “Paga quanto?”
Tarkos deu aquele sorriso de quem ama um negócio sujo.
— “Cinco mil vivos.
Dois e meio mortos. E... bônus se recuperar a carga que ele roubou. Tá lá nas
montanhas, se ainda tiver inteira.”
— “Perfeito.” — Ela pegou o datapad que Tarkos estendeu. — “Trabalho aceito.”
Ele piscou, dedo batendo no monitor.
— “Mas... cuidado, Vega. Lonestar não é só mais um pirata. Dizem que ele agora tem... conexões. E gente grande começa a ficar nervosa quando se mexe nas peças erradas do tabuleiro.”
Lúcia girou o datapad na mão, olhando pro mapa, depois
pra Nyx. O sorriso torto voltou pro rosto dela.
— “Ah... gente
grande sempre fica nervosa quando eu apareço.”
Nyx inclinou a cabeça.
— “Confirmação: afirmação correta. Histórico consistente.”
Ela guardou o pad na jaqueta, olhou pra Tarkos por cima
do ombro e mandou:
— “Já separa minha
recompensa... por que que a festa dele acabou.”
E saiu andando. O barulho da rua voltou, pesado, sujo,
pulsante. Montanhas
do Sul. Ravina de Skarn. Caçada aberta. O datapad piscou na mão
dela.
“ALVO ATIVO: LONESTAR – STATUS: VIVO OU MORTO.”
O sorriso no rosto de Lúcia ficou mais largo. Chegou
até a loja de aluguéis de motos flutuantes, olhou para Nyx, sorriu e disse:
— “Vamos caçar.”
3 Comentários
Um capítulo excelente onde você apresenta um lugar simplesmente fantástico, que renderia muitas historias, SCYLLA PRIME. Eu simplesmente adorei, tanto esse lugar quanto os habitantes que você mostrou aqui.
ResponderExcluirEu curto também que as relações entre o grupo da Lúcia tbm ficam cada vez mais orgânicas e fáceis de se identificar.
O gancho para a próxima missão ficou excelente tbm.
Meus parabéns!
É meio clichê né. Aliás Horizonte De Estrelas é um amontoado de clichês em forma de história....mas que bom que tá gostando.
ExcluirNa gambiarra cósmica chamada SCYLLA PRIME, o grupo de Lúcia, que mal acabou de se safar de monstros devoradores numa nave fantasma, se vê numa nova enrascada.
ResponderExcluirTudo para manter a geringonça da Estrela Perdida minimamente operante.
Lucia é o retrato de muitos brasileiros: vende o almoço pra comera janta ou, vice e versa.
Sempre se metendo em confusões , a espera da próxima cilada cósmica.
Será que ela vai quebrar a cara?
Vamos que vamos!