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HORIZONTE DE ESTRELAS - MISSÃO 15





 MISSÃO 15

DIA DE SORTE

O corredor parecia se estender para sempre, estreito e frio, com paredes de metal que devolviam o som de cada passo como um eco perigoso.

A luz vermelha de emergência piscava num compasso irregular, como se o próprio coração da estação estivesse prestes a falhar.

Lúcia seguia na frente, contando mentalmente cada curva, cada câmera, cada sombra. Nyx vinha logo atrás, o olhar fixo nos sensores oculares, mapeando o campo térmico e a posição dos guardas. Mako fechava a retaguarda, blaster pronto, o dedo tão firme no gatilho quanto o suor na testa.

Zurgo, por outro lado, parecia prestes a se dissolver em nervosismo puro.

— Dois guardas na interseção a vinte metros — sussurrou Nyx, quase sem mover os lábios. — Ciclo de patrulha: dez segundos de virada.

Lúcia ergueu a mão. Pararam.

O som distante de botas metálicas ecoou pelo corredor, aproximando-se... e depois diminuindo, conforme os guardas mudavam de direção.

Eles avançaram alguns passos e se esconderam atrás de um duto de ventilação.

E então... veio o som.

Um som que não deveria existir naquele ambiente controlado.

Algo entre o arranhar metálico e um estalo profundo, como dentes mastigando aço. Seguido por um ruído grave, gutural, que fez Zurgo prender a respiração.

— Isso não é sistema hidráulico — murmurou Mako.

Luzes começaram a falhar acima deles, piscando e se apagando em sequência, como se algo estivesse se movendo no teto — pesado, rápido.

Um alarme estridente cortou o silêncio, e uma voz metálica ecoou pelos alto-falantes:

— Atenção: presença de fauna hostil detectada no setor B-7. Equipes de contenção, agir imediatamente.

Os guardas que bloqueavam a interseção reagiram instantaneamente, correndo em direção ao barulho.

E foi nesse momento que Lúcia sorriu — aquele sorriso rápido e perigoso que sempre precedia uma oportunidade.

— É agora.

— Agora o quê? — sussurrou Zurgo, mas já era tarde.

Eles se moveram como sombras, usando o tumulto como cortina.

Mais adiante, pelas frestas das grades de ventilação, o grupo vislumbrou a origem do caos: um Vormok de Ferrugem, colossal, pele dura como chapa industrial e presas capazes de arrancar cabos como se fossem fios de cabelo. Ele avançava pelo hangar, esmagando caixas, mastigando suportes e cuspindo fagulhas. Guardas gritavam ordens, disparos ricocheteavam na couraça do animal, e sirenes gritavam de todos os lados.

O caos era total.

E no meio dele, a sombra da fuga perfeita.

— Por aqui — disse Nyx, apontando para um acesso lateral, escondido atrás de um guindaste caído. — Rota de manutenção, sem vigilância térmica.

O grupo desapareceu pela abertura, enquanto, atrás deles, o rugido metálico do Vormok cobria qualquer som que pudessem fazer.

O corredor estreito de manutenção era sufocante, iluminado apenas por lâmpadas trêmulas que lançavam sombras deformadas nas paredes. O cheiro de óleo queimado e ferrugem impregnava o ar, e cada gotejo de condensação parecia um disparo ecoando fundo demais.

Lúcia avançava primeiro, rápida, mas sem correr. Um passo errado e o eco poderia entregá-los. Nyx seguia logo atrás, ajustando em tempo real o campo de ruído que seu processador conseguia absorver. Mako mantinha a retaguarda, olhos fixos na escuridão atrás deles. E Zurgo... tentava controlar o chiado de sua própria respiração.

De repente, vozes. Duas, vindas de uma interseção próxima.

— “Setor B-7 tá um inferno. O bicho já arrancou três cabos de energia.”

— “A gente devia evacuar, não caçar essa coisa.”

As lanternas dos guardas cruzaram a entrada lateral. O grupo congelou.

A luz passou a centímetros dos olhos de Zurgo. O coração dele batia tão forte que parecia querer denunciar a posição do grupo. Mas os soldados seguiram adiante, correndo em direção ao rugido do Vormok.

Silêncio outra vez.

Lúcia se moveu. Rápida. Precisa. Conduziu todos até um alçapão enferrujado, meio oculto por tubos oxidados.

— “Saída de emergência para a plataforma externa. Dois minutos até o perímetro.”

Nyx confirmou com um aceno calculado.

O metal rangeu quando a escotilha foi aberta. O barulho fez Zurgo se encolher, mas o rugido distante do Vormok encobriu o som. A sorte ainda estava do lado deles.

Do lado de fora, a noite de PX-13 os engoliu com seu céu cinzento e a floresta metálica balançando sob ventos carregados de partículas. O ar parecia mais pesado, mas ao mesmo tempo era liberdade.

A Estrela Perdida estava onde haviam deixado, oculta pela clareira. Mas entre eles e a nave ainda havia trezentos metros de terreno aberto. Sem cobertura. Sem garantias.

Mako se agachou, olhos estreitos.

— “Se tiverem sensores voltados pra cá, já fomos.”

— “Então não deixem que tenham tempo de nos mirar,” disse Lúcia, ajustando o coldre. — “Corremos em silêncio. Uma linha reta até a nave. Nyx, qualquer sinal de detecção, você fala antes mesmo de pensar.”

Zurgo engoliu em seco.

— “Corremos... em silêncio... certo. Sem tropeçar. Sem gritar. Sem lamber nada. Eu consigo.”

E eles correram.

Cada passo era uma batida surda contra o solo metálico da floresta. O vento chiava nos ouvidos. O céu relampejava ao longe. Atrás deles, ainda podiam ouvir o caos na estação, tiros e alarmes misturados ao rugido colossal do Vormok de Ferrugem.

De repente, um foco de luz varreu o terreno. Uma torre de vigilância da estação girava seu canhão de busca para a direção da clareira.

— “Abaixem-se!” — sussurrou Mako, quase colado ao chão.

O feixe passou a poucos metros deles. Parou. Voltou devagar... como se tivesse farejado algo.

Nyx ergueu os olhos, cálculo frio em cada movimento.

— “Detecção parcial. Se ficarmos imóveis por seis segundos, recalibrará para o Vormok. Não respirem.”

Seis segundos.

Eternidade.

O feixe se afastou, voltando para o setor em caos.

Lúcia foi a primeira a se mover outra vez.

E quando alcançaram a nave, a sensação de metal familiar sob as mãos foi quase um alívio físico.

A rampa se fechou atrás deles com um suspiro pneumático.

O silêncio voltou.

Mas o silêncio da floresta nunca pareceu tão doce.

No cockpit, Lúcia se sentou ao painel e soltou o ar que segurava desde que entraram nos túneis.

— “Códigos obtidos. E sem um tiro de alarme disparado por nossa causa. Isso sim é vitória.”

Mako riu, tenso, jogando-se na cadeira.

— “A gente devia mandar um agradecimento praquele monstro lá fora. Sem ele, já estaríamos fritos.”

Zurgo tremia, mas sorria nervoso.

— “Nunca mais vou reclamar de esgoto. O esgoto não tenta mastigar cabos de energia e matar a gente de susto.”

Nyx, em silêncio, observava o visor com a frieza de sempre.

Mas, em seus sensores, algo se destacava: uma assinatura energética incomum na superfície do planeta, próxima à estação. Como se alguém tivesse... liberado o Vormok propositalmente.

Nyx não comentou. Apenas registrou.

A Estrela Perdida se ergueu, sumindo entre as nuvens espessas de PX-13.

A próxima etapa os aguardava: a infiltração na estação orbital.

O rugido abafado dos motores se dissolvia nas nuvens densas de PX-13. A tripulação estava reunida na sala de comando, o núcleo de dados conectado ao painel da Estrela Perdida. As linhas de código pulsavam no visor como se respirassem, contendo a chave que poderia abrir a estação orbital da Liga.

Lúcia estudava os dados, séria, os dedos tamborilando no apoio da cadeira.

— “Temos a senha pra porta. Mas ainda precisamos de uma desculpa convincente pra passar por ela. Estações da Liga não deixam estranhos entrarem só porque têm os códigos certos.”

Mako, recostado, soltou um riso sem humor.

— “Então, vamos nos disfarçar de inspetores de saúde? Carregar uma prancheta e fingir que estamos ali pra ver se os banheiros têm sabão?”

— “Engraçado... mas não.” — Lúcia nem ergueu os olhos. — “Precisamos de uma cobertura que seja sólida o bastante pra não levantar suspeita, mas arriscada o suficiente pra que ninguém queira chegar perto demais.”

Nyx inclinou a cabeça, analisando as variáveis em projeção holográfica.

— “A estação mantém registro de rotas comerciais e naves credenciadas. Se imitarmos a assinatura de um cargueiro autorizado, poderemos solicitar acoplamento. Há uma chance de 63% de sucesso... se alguém da segurança não decidir inspecionar pessoalmente.”

Zurgo, que até então só mordia as unhas, levantou a mão como se estivesse numa aula.

— “E se... ao invés de fingirmos ser comerciantes... a gente fingir ser... prisioneiros? Tipo... a Estrela Perdida como nave de transporte penal. Guardas não fazem muitas perguntas quando acham que a carga é gente perigosa. Eles só querem trancar logo a porta.”

O silêncio tomou conta da cabine.

Mako arqueou a sobrancelha.

— “Olha só... o medroso teve uma ideia decente. Isso pode realmente funcionar.”

Lúcia sorriu de canto, fria.

— “Com os códigos de acesso, podemos entrar como se fôssemos escolta. A Estrela Perdida pode falsificar a transponder de uma nave da patrulha penal. E, se algo der errado, bem... sempre podemos nos tornar prisioneiros de verdade.”

Zurgo engoliu em seco.

— “Eu retiro o que disse. Essa ideia é péssima.”

A tripulação riu — até mesmo Mako soltou um suspiro leve. Pela primeira vez em horas, havia espaço para respirar.

Lúcia se levantou, encerrando a reunião improvisada.

— “Está decidido. Entramos como caçadores trazendo carga humana. Com sorte, ninguém vai querer olhar muito de perto.”

O núcleo foi selado em compartimento blindado. Do lado de fora, PX-13 desaparecia atrás deles.

Eles acreditavam ter escapado limpos.

Nenhum alarme, nenhuma perseguição, nenhum rastro.

A Estrela Perdida gemia como um animal cansado enquanto Zurgo remendava cabos e soldava chapas em ângulos improváveis. As fagulhas azuis se refletiam no suor em sua testa.

— “Se vamos fingir que somos transporte penal, primeiro precisamos parecer um — o que significa reforçar esse casco todo furado. Senão, ninguém vai acreditar que a gente conseguiu chegar até aqui com prisioneiros vivos.”

Mako passou por ele, carregando dois painéis arrancados de drones de vigilância da estação em solo.

— “Aqui estão as ‘grades’ que você pediu. Vai mesmo fazer uma jaula no porão?”

— “Se a gente for inspecionado, precisamos mostrar celas improvisadas. E tem que parecer convincente.”

Lúcia supervisionava de braços cruzados, fria e prática.

— “Não importa se são celas de verdade ou caixotes pintados. O importante é que dure cinco segundos sob um olhar desconfiado. Depois disso, já estaremos dentro.”

Nyx projetava no ar linhas de código e registros falsificados.

— “Estou clonando a assinatura de um transporte penal da Liga que foi destruído há seis anos. Ele constava como perdido em uma colisão no Cinturão de Tyros. Os arquivos foram arquivados e esquecidos. A chance de cruzarem as informações em tempo real é baixa, mas não inexistente.”

Mako arqueou a sobrancelha.

— “Baixa quanto?”

— “Trinta e oito por cento de chance de detecção imediata. Após o primeiro contato, sobe para cinquenta e quatro.”

— “Ótimo. Eu sempre quis brincar de cara-ou-coroa com a vida.”

Zurgo deixou escapar um grunhido.

— “Isso não é cara-ou-coroa, isso é roleta orbital com cinco balas no tambor.”

Lúcia se aproximou do painel principal e ativou os sistemas.

— “Então não vamos dar tempo de suspeitarem. A gente chega, transmite o código de acesso, pede autorização imediata de atracagem. Sem enrolação. E se alguém insistir em ver a carga...” — ela olhou para Mako e depois para Zurgo — “aí entra a encenação.”

Mako sorriu.

— “Você me quer de algemas, chefe? É só pedir com carinho.”

Zurgo arregalou os olhos.

— “Nem vem, eu não faço papel de preso!”

— “Você não precisa fingir, Zurgo,” disse Lúcia com um meio sorriso. “Você já tem cara de quem foi preso.”

Enquanto os reparos improvisados tomavam forma, a nave começava a ganhar uma nova pele. Chapas amassadas escondiam a pintura original, o transponder emitia um código falsificado, e até o porão agora exibia sombras de celas. O disfarce não resistiria a um escaneamento profundo — mas para olhos humanos apressados, bastaria.

Nyx encerrou a simulação no painel.

— “Identidade forjada pronta. Transponder ativo. O próximo passo é partir da órbita de PX-13 como se fôssemos uma nave recém-chegada do setor penal de Arkanis.”

Lúcia respirou fundo.

— “Então está decidido. Vamos levar essa farsa até o fim.”

Por um instante, o silêncio reinou na cabine. Apenas os sons mecânicos da nave preenchiam o ar, como se a Estrela Perdida também estivesse se preparando para assumir uma identidade que não era a sua.

Mako quebrou o clima, batendo as mãos nas coxas.

— “Bom, se tudo der errado... pelo menos vamos morrer com estilo.”

— “Errado ou não,” respondeu Lúcia, firme, “é o único caminho.”

Do lado de fora, PX-13 se perdia atrás de nuvens espessas. A tripulação se acomodava em seus lugares, cada um mascarando o próprio medo do jeito que sabia. A Estrela Perdida girou lentamente, apontando para a estação orbital.

Nyx projetou os protocolos falsificados no visor.

— “Transmissão do código de acesso iniciada. Frequência oficial da estação orbital interceptada.”

A voz metálica preencheu o painel:

— “Transporte penal designação KX-47, identifique rota e procedência.”

Lúcia respirou fundo e respondeu no mesmo tom frio que aprendera nos anos em que serviu como contrabandista.

— “KX-47, rota direta de Arkanis. Carga penal: nível 3. Autorização de trânsito solicitada.”

O silêncio que se seguiu foi sufocante. Cada segundo parecia o prelúdio de um alarme. Zurgo suava tanto que a testa parecia uma fonte.

Um clique seco ecoou nos alto-falantes.

— “Código validado. Autorização concedida. Proceda para o vetor de atracagem três.”

A tripulação inteira respirou como se tivesse prendido o ar desde PX-13.

Mako riu, nervoso.

— “Eu não acredito... funcionou.”

— “Nunca duvidei,” disse Lúcia, embora a rigidez de sua mandíbula denunciasse o contrário.

Nyx desligou a transmissão.

— “Códigos aceitos. O disfarce permanece funcional. Não há sinais de verificação adicional.”

Zurgo desabou na cadeira.

— “Então... nós passamos? Sem alarmes? Sem tiros? Sem correr como ratos?”

— “Passamos,” confirmou Lúcia. — “Agora é só não comemorar cedo demais.”

Do lado de fora, a estação orbital se aproximava — uma muralha de aço e luz, com torres, corredores e antenas como espinhos voltados ao vazio. A Estrela Perdida seguia sua rota autorizada, pequena e disfarçada, atravessando as defesas da Liga como se fosse invisível.

Pelo menos, por enquanto. 

Hoje havia sido um dia de sorte...


2 Comentários

  1. É simplesmente incrível quando se tem uma quebra de expectativa tão positiva assim!
    Pelo histórico da turma da Lúcia eu fui lendo e esperando prá ver quando a merda ia bater no ventilador e, não é que o título do capítulo se mostrou sendo verdadeiro?
    Eu curti muito o decorrer da história, em que nem mesmo os personagens acreitavam, conforme as coisas iam dando certo.
    Claro que teve aquele detalhe que a Nix pegou e que deve voltar em breve prá deixar as coisas ainda mais perigosas e empolgantes.
    Parabéns cara! Mais um excelente capítulo!

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  2. Você está se especializando em deixar hipertensos como eu a beira de um infarto.

    Haja coração!

    Mas, no final, conforme o título, a sorte bateu na porta da equipe de Lúcia.

    Episódio maravilhosos!

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