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PSYCHERS - CAPÍTULO III

 




CAPÍTULO 03

CIGANOS

 

O fogo consumia tudo.

As labaredas subiam como muralhas vivas, engolindo casas, árvores, rostos. Kael corria entre as chamas, mas cada passo parecia afundar em cinzas quentes. Vozes clamavam seu nome, misturadas ao estalar da madeira queimando.

Eram rostos familiares.

Homens que lutaram ao seu lado.

Mulheres que o acolheram em vilarejos esquecidos.

Crianças que sorriram para ele, acreditando que estavam salvas.

Todos eles agora se desfaziam diante de seus olhos. Suas feições derretiam em brasa, transformando-se em máscaras de carvão que se esfarelavam ao vento.

Kael estendeu a mão para segurá-los, mas ao tocar, sua pele incandescente os reduzia a pó.

Não… não! — gritou, mas sua voz foi engolida pelo rugido do fogo.

Então, um rosto se destacou em meio ao caos. Um olhar feminino, profundo, queimando de dor e julgamento. Era alguém que ele conhecera no passado, alguém cujo nome ele não ousava lembrar.

O fogo subiu, devorando-a também, até restar apenas silêncio.

Kael tentou gritar novamente, mas percebeu que não tinha boca, não tinha forma. Era apenas chamas. Chamas devorando tudo.

E, dentro de si, algo ria. Um eco distorcido, selvagem. O Frenesí.

De repente, escuridão.

Ele abriu os olhos com um sobressalto.

O ar entrou em seus pulmões em golfadas, como se tivesse sido arrancado de dentro do pesadelo. Suas mãos ainda ardiam, e por um instante pensou que estava queimando de verdade. Mas não havia fogo. Apenas o frio.

Kael se ergueu devagar, ofegante. Estava deitado sobre uma manta improvisada, cercado por paredes irregulares de pedra. A luz que iluminava o ambiente vinha de uma tocha fincada em uma fenda da rocha, lançando sombras vacilantes pelo espaço.

Uma caverna.

O som da água pingando ecoava, constante, lembrando-lhe de onde estava.

— Você finalmente acordou. — A voz veio de trás.

Kael girou a cabeça, instintivamente levando a mão ao lado do corpo, onde buscava uma arma inexistente.

Ela estava ali, em pé, como se sempre tivesse feito parte da escuridão. Uma mulher. Jovem, de pele morena, cabelos negros como carvão escorrendo até os ombros. Os olhos castanhos, intensos, refletiam a chama da tocha com um brilho quase dourado. Vestia roupas gastas de couro e tecido, adaptadas para viagens longas.

Kael sentiu a tensão no peito aumentar. Não apenas pela estranheza de vê-la ali, mas pela calma que ela transmitia — como se soubesse exatamente quem ele era e o que havia acontecido.

— Quem…? — ele começou, a voz rouca.

— Meu nome é Zara. — ela respondeu, sem hesitar. — Encontrei você à beira da morte, no deserto. Estava queimado, ferido… mas respirando.

Ela se aproximou devagar, os pés nus fazendo pouco ruído contra a pedra. Trazia nas mãos uma tigela de madeira, de onde o vapor quente subia. Colocou-a diante dele.

— Beba. Vai ajudar com a dor.

Kael olhou para a tigela e depois para ela. A desconfiança era instintiva. Mas a fome e a sede também eram reais. Depois de alguns segundos, ele levou o recipiente aos lábios. O líquido era amargo, mas revigorante.

— Por que me ajudou? — perguntou, a voz ainda firme, mas carregada de desconfiança.

Zara inclinou levemente a cabeça, como se estudasse a pergunta. Um sorriso breve cruzou seus lábios, mas não havia ingenuidade nele.

Kael estreitou os olhos.

— E você sabe quem eu sou?

Zara se ajoelhou diante dele, mantendo o olhar firme.

— Sei que você é um Psycher. Sei que Thorgan ardeu por sua causa. Sei também que está fugindo de si mesmo tanto quanto foge dos outros.

As palavras caíram como pedras, diretas e sem piedade.

Kael se enrijeceu, o peito queimando não de fogo, mas de fúria contida.

— Então me diga… você também me vê como um monstro?

Houve um silêncio.

Zara o fitou longamente, como se estivesse decidindo entre duas respostas possíveis.

Por fim, respondeu com calma:

— Não. Eu vejo um homem à beira do abismo. E, às vezes, o que está à beira pode escolher se cai… ou se aprende a voar.

Kael ficou em silêncio, encarando-a. Algo naquela mulher o desconcertava. Não era apenas a beleza, mas a forma como falava dele sem medo, sem tremor. Como se o enxergasse por inteiro.

A chama da tocha oscilou, projetando a sombra de Kael contra a parede da caverna. Uma sombra deformada, onde o humano e o fogo pareciam se fundir.

Ele desviou o olhar.

Sabia que aquela noite de descanso não traria paz.

Mas, pela primeira vez desde Thorgan, não estava sozinho.

Kael respirava fundo, tentando afastar as imagens que ainda queimavam atrás de suas pálpebras. A caverna estava mergulhada em silêncio, quebrado apenas pelo gotejar da água. Ele ergueu os olhos para Zara.

Algo nela não se encaixava. Não era apenas o olhar seguro, a postura, ou a forma como falava dele sem medo. Era algo mais profundo. Um detalhe que passou despercebido à primeira vista.

Quando a luz da tocha vacilou, Kael viu o reflexo metálico em seu pulso: pequenos anéis dourados, finos, entrelaçados de maneira quase ritualística. Símbolos gravados neles ardiam suavemente quando a chama os tocava. Símbolos que ele reconhecia.

Ele estreitou os olhos.

— …Você é uma cigana.

Zara não se moveu. Não confirmou, tampouco negou. Apenas sustentou o olhar dele, como se já esperasse a acusação.

Kael apoiou as mãos nos joelhos, a voz carregada de desprezo.

— Uma bruxa do deserto… é isso que você é.

Havia ódio e lembranças antigas naquele tom. Para Kael, os ciganos eram uma lenda viva, uma ameaça que se tornara realidade nas noites de sangue e fogo que presenciara. Ele sabia o que diziam sobre eles: sociedades matriarcais impiedosas, onde os homens eram reduzidos a guerreiros ou servos, e apenas as mulheres detinham a verdadeira força — a magia.

Magia diferente da pirocinése, que era um dom da radiação. A magia cigana vinha de algo mais antigo, um pacto invisível, e carregava a reputação de ser cruel, imprevisível.

Zara finalmente falou, a voz calma, mas firme:

— Se eu fosse como diz, você não estaria vivo agora.

Kael cerrou o punho, instintivamente atento.

— Então esconde o quê? Fugindo do seu clã, talvez? — Ele deixou a pergunta no ar, não como busca por resposta, mas como provocação.

Zara apenas desviou o olhar por um instante, e esse breve silêncio disse mais do que palavras. Havia algo ali. Algo que ela não queria que fosse revelado.

Kael soltou um riso seco, sem humor.

— Bruxa. É isso que você é para mim. Não importa o nome que use.

Ela não se abalou.

— E ainda assim, bruxa ou não, fui eu quem salvou sua vida. — A frase caiu como um golpe, firme, cortante.

O silêncio voltou a se instalar na caverna. A tensão entre eles era palpável, como se duas forças diferentes estivessem se medindo.

Kael a observou com atenção, tentando decifrar a mulher à sua frente. Uma cigana longe de seu povo… isso era raro. Quase impossível. E, se as histórias fossem verdadeiras, significava apenas uma coisa: perseguição.

Ela escondia algo. Ele sentia isso.

Mas naquele momento, ainda sem forças, sem clareza, Kael não tinha como forçar a verdade a sair.

Apenas deixou escapar, em tom baixo, quase um sussurro:

— Bruxa ou não… você ainda não me convenceu por que não me deixou apodrecer no deserto.

Zara se virou, caminhando até a entrada da caverna, onde a luz do sol se insinuava por entre as pedras. A silhueta dela ficou marcada contra o brilho amarelado.

— Talvez porque ainda tenha um destino. — respondeu, sem olhar para trás.

Kael a fitou por alguns segundos em silêncio.

Sabia de uma coisa: ninguém abandonava os ciganos impunemente.

E se aquela mulher estava ali, sozinha, longe das caravanas do deserto… isso significava problemas. Problemas que agora estavam também em seu caminho.

Zara caminhou até a entrada da caverna. A luz do sol, forte e cruel, recortava sua silhueta contra o deserto. Os cabelos negros dançaram no vento quente quando ela se inclinou ligeiramente para observar o horizonte.

Kael acompanhou o movimento, ainda sentado, o corpo pesado como chumbo. Ele a viu enrijecer o rosto ao fitar algo distante.

No limite da visão, uma muralha de poeira se erguia no céu, rastejando como uma fera imensa. O vento trazia o rugido surdo de cascos de cavalos e fúria.

Zara voltou-se a ele com seriedade.

— Bom senhor Psycher… — disse em tom quase sarcástico, mas firme. — Já coletamos toda a água que havia nessa caverna.

Ela ergueu o odre de couro, pequeno e mal cheio, onde as últimas gotas que pingavam da rocha haviam se acumulado. Agora, a fonte estava seca.

— E algo lá fora me diz que não devemos permanecer aqui. — Os olhos dela voltaram para a nuvem de poeira que se aproximava, como um aviso dos deuses esquecidos do deserto.

Kael se levantou lentamente, os músculos protestando pela dor.

— E para onde você quer ir? — rosnou, a voz carregada de cansaço e desconfiança.

Zara apertou o odre contra o corpo, como se guardasse um tesouro.

— Seja gentil por eu ter salvo sua vida, Psycher… e me ajude a chegar até Zarak.

O nome ecoou na caverna como um feitiço. Kael franziu o cenho, estudando-a com mais atenção.

— Zarak… — repetiu, com descrença. — O último refúgio da humanidade, a cidade intocada… você realmente acredita nessas histórias de feira?

Zara sustentou o olhar dele, séria.

— Não são apenas histórias. Há caminhos que levam até lá, se souber onde procurar. E se há uma chance, ainda que mínima, de que Zarak exista, é para lá que eu irei.

Kael riu, seco.

— Nunca ninguém voltou de Zarak. O deserto engole todos os tolos que tentaram.

Ela deu de ombros.

— Então talvez eu seja a primeira.

O vento rugiu mais alto, trazendo consigo os primeiros grãos de areia que se infiltraram pela entrada da caverna. O ar ficou pesado, cortante, anunciando a chegada de problemas.

Kael cerrou os dentes, olhou para o horizonte, e de volta para a mulher que, de alguma forma, tinha amarrado seu destino ao dele.

Uma cigana.

Uma bruxa.

E agora… uma guia para uma cidade que talvez nem exista.

Mas Kael sabia de uma coisa: permanecer ali significava morte certa.

Ele passou a mão pelo rosto, suspirando fundo, antes de dizer:

— Muito bem, bruxa. Vamos caçar um fantasma no deserto.

Zara sorriu, quase imperceptível, mas em seus olhos ardeu uma chama de determinação.

E, juntos, deixaram a caverna, enquanto as nuvens de areia ao longe agora pareciam maiores.

Kael estreitou os olhos ao perceber melhor a nuvem que se erguia ao longe. Não era poeira comum. A formação era compacta, ritmada, como se dezenas de patas e rodas a levantassem em uníssono. O farfalhar metálico do vento trouxe o som abafado dos cascos batendo contra a areia.

Ele soltou um resmungo.

— Caçadores.

Seus instintos se acenderam como brasas. Estava pronto para lutar, mas a dor em seu corpo e a exaustão pesando em sua mente o lembraram de que talvez não tivesse forças para outro frenesi.

— Como diabos vamos despistá-los? — perguntou, com voz grave, os olhos fixos no horizonte.

Zara o olhou por sobre o ombro, um sorriso irônico atravessando seu rosto.

— Esqueceu o que disse mais cedo? — respondeu em tom leve, quase provocativo. — Eu sou uma… bruxa.

Antes que Kael pudesse replicar, ela se posicionou diante da entrada da caverna, erguendo as mãos. Seus dedos se moveram em gestos fluidos, como se tecessem fios invisíveis no ar. Cada movimento parecia puxar algo do próprio deserto, da poeira que se erguia, do calor sufocante que vibrava ao redor.

Ela fechou os olhos, inspirando fundo, e murmurou em uma língua antiga:

“Sey’thar… Mun’ekhal… Orvath’zin…”

As palavras vibraram no ar, carregadas de um eco estranho, como se fossem repetidas por vozes invisíveis. O ambiente pareceu estremecer, a chama da tocha vacilando, a sombra de Zara crescendo como se ganhasse vida própria.

Então, sua voz ganhou firmeza, clara como o trovão:

"Ó Veyra, Tecelão de Véus,

Senhor das mentiras e do silêncio,

estende tua manta sobre nós,

que os olhos do caçador se confundam,

que os ventos apaguem nossos passos,

e que apenas a ilusão caminhe em nosso lugar!"

O ar da caverna tremeu. A areia que se infiltrava pela entrada se ergueu em redemoinhos delicados, serpenteando ao redor deles. Por um instante, Kael sentiu a estranha sensação de que seu corpo estava desaparecendo, como se fosse apenas uma sombra projetada. Seus próprios passos no chão foram engolidos, apagados, como se nunca tivessem existido.

Ele engoliu em seco, observando em silêncio. A desconfiança em seu olhar não diminuiu, mas havia algo novo ali: cautela.

Zara abriu os olhos devagar, o suor escorrendo pela testa, mas com um brilho triunfante no olhar.
— Agora… — disse simplesmente — não há rastro para seguirem.

Do lado de fora, o som dos caçadores se aproximava, o ribombar dos cascos e vozes distantes ecoando pela planície. Mas nenhum deles olhou para a caverna. Não perceberam a presença deles.

Zara lançou um último olhar para Kael.

— Vamos, Psycher. O deserto não espera.

Sem mais uma palavra, os dois partiram, seus corpos cobertos pelo manto invisível de Veyra. Do lado de fora, o deserto parecia engolir suas presenças, como se nunca tivessem estado ali.

Atrás deles, apenas o vazio.

E assim, ocultos, desapareceram na imensidão, rumo aonde quer que ficasse Zarak.


6 Comentários

  1. É muito bom como você consegue "desenhar" o cenário para que a imersão seja total. Foi um ótim ocomeço e me deixou tão perdido quanto o Kael.
    Muito legal a narrativa crescendo sobre a identidade da Zara, deixando-a muito tridimensional dando os detalhes dela aos pouquinhos para, logo em seguida, até mesmo dar uma mostra dos poderes dela e o começo de um arco que promete.
    Parabéns cara! Mandou muito bem.

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  2. A continuação que me deixou embasbacado.

    Kael encontra uma pessoa que, aparentemente, o vê como uma pessoa, não como um desastre natural. Digo aparentemente porque eu não sei o que o futuro reserva para esta personagem.

    "— “Sey’thar… Mun’ekhal… Orvath’zin…”"
    Isso me trouxe para "Azarath Metrion Zinthos", se você me entendeu bem. Haha

    E pouco depois para
    "Dirth ma, harellan. Ma banal enasalin. Mar solas ena mar din", o élfico da franquia Dragon Age.

    E o mantra mágico que faz até o próprio ar vibrar com seu uso e verbalização... É, acho que você entendeu com que classe eu jogava mais nas minhas mesas como jogador.

    Capítulo muito bom, parabéns.

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  3. Aí sim e entendi claramente a referência.....kkkkkkk

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  4. Perdido no deserto , Karla é salvo pela cigana Zara.

    A história tem uma reviravolta, onde sempre saida, o Psycher aceita procurar a Terra Prometida desse mundo.

    Interessante!

    Parabéns!

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