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PSYCHERS - CAPÍTULO IV

 


CAPÍTULO 04

CAÇADA

O deserto não mudava.

Ondas de areia se estendiam em todas as direções, queimando sob o sol implacável durante o dia e congelando as entranhas à noite. Ainda assim, Kael e Zara avançaram, passos constantes, sempre ocultos sob o véu da magia dela quando necessário.

Foram dias de silêncio entrecortados por poucas palavras. Kael falava pouco, a voz grave e seca como pedra, respondendo apenas quando necessário. Zara, por outro lado, parecia incapaz de suportar a monotonia sem provocar uma faísca de conversa.

— Você sempre foi tão calado assim, Psycher? — perguntou certa vez, enquanto caminhavam sob um céu cor de cobre. — Ou esse é só o charme sombrio que você gosta de cultivar?

Kael apenas ergueu uma sobrancelha.

— Palavras gastam energia. Prefiro guardá-la para quando realmente importa.

Ela riu, o som ecoando leve no vazio ao redor.

— Típico.

Na terceira noite, quando o vento começou a soprar mais frio, encontraram ruínas. Blocos de concreto e metal enferrujado ué emergiam da areia como ossos gigantes, testemunhas silenciosas de um tempo em que o deserto fora uma cidade. Havia colunas partidas, restos de muros, uma cúpula desmoronada que ainda oferecia alguma sombra.

— Aqui serve — disse Kael, examinando o lugar.

Montaram um pequeno acampamento dentro da estrutura meio caída. A areia acumulada no chão formava um colchão áspero, mas era melhor do que dormir a céu aberto. Zara acendeu uma pequena chama em uma tigela de metal encontrada entre os escombros. O fogo crepitava, lançando sombras que dançavam nas paredes quebradas.

Kael observava em silêncio, os olhos vagando pelas ruínas.

— Já foi uma cidade… — murmurou. — Antes da guerra.

Zara suspirou, encarando as pedras gastas pelo tempo.

— O mundo inteiro já foi algo melhor. Agora só restam ossos.

Ela puxou o manto sobre os ombros e se encolheu perto do fogo. Depois de alguns instantes, lançou um olhar enviesado para Kael.

— E você, Psycher? Vai ficar só me olhando até eu dormir, ou vai dividir um pouco do seu passado?

Kael permaneceu imóvel. As chamas refletiam em seus olhos, revelando mais do que ele gostaria. Por um instante, pareceu prestes a falar… mas então desviou o olhar, recolhendo-se na própria sombra.

— Não.

O silêncio voltou, pesado. Zara não insistiu, mas um sorriso discreto surgiu em seus lábios, como se tivesse arrancado dele uma vitória mesmo diante da negativa.

A noite caiu profunda sobre as ruínas, e o vento uivava entre as paredes partidas como lamentos de fantasmas antigos.

O fogo da tigela já se transformava em brasas quando Kael finalmente quebrou o silêncio. Sua voz soou firme, quase como um golpe contra as sombras que cercavam as ruínas.

— Já andamos tempo demais, Zara. — Ele ajeitou o manto, olhando diretamente para ela. — Para onde exatamente você está me levando?

Zara levantou o olhar das chamas, arqueando a sobrancelha. O brilho âmbar do fogo refletia em seus olhos castanhos, dando a eles uma intensidade quase hipnótica.

— Direto ao ponto, como sempre.

Ela estendeu a mão, deixando que a chama bailasse entre seus dedos como se fosse parte dela. Um truque simples de magia, mas suficiente para lembrar a Kael de quem estava diante dele.

— Ouvi rumores — disse ela enfim. — Existe alguém em Nandheim, um vilarejo ao leste. Um homem que… dizem… possui um mapa.

Kael franziu o cenho.

— Um mapa para onde?

O sorriso dela foi enigmático, quase provocativo.

— Para Zarak. A cidade que ninguém jamais voltou para confirmar se existe ou não. O último bastião de humanidade… ou apenas mais uma miragem do deserto.

As palavras pairaram no ar, pesadas. Kael manteve o silêncio por alguns segundos, mas seus olhos estreitados denunciavam a luta interna entre descrença e uma centelha de esperança.

— E você realmente acredita nisso? — ele perguntou por fim.

— Eu acredito em sobrevivência. — Zara deu de ombros. — Se há sequer uma chance de que Zarak seja real, vale a pena tentar.

Kael não respondeu de imediato. Observou o fogo, depois as ruínas ao redor, como se buscasse respostas nas pedras corroídas. Por fim, desviou o olhar para ela.

— E quanto ao seu povo? — Sua voz agora tinha um peso maior, quase como uma acusação. — Ciganos não caçam os seus sem motivo. O pouco que sei sobre sua gente é que só declaram uma caçada quando alguém cometeu um crime grave contra o próprio clã.

Zara permaneceu em silêncio por um instante. A leveza em seu rosto desapareceu, dando lugar a uma sombra que o fogo não conseguia iluminar. Ela desviou o olhar, mexendo no odre vazio como se aquilo fosse mais interessante do que a pergunta de Kael.

— Talvez eu tenha… irritado as pessoas erradas — murmurou, quase em tom de brincadeira, mas o nervosismo em sua voz era impossível de esconder.

Kael não desviou os olhos.

— Irritar não basta para queiram seu sangue. O que você fez?

Zara respirou fundo, forçando um sorriso irônico.

— Você me chama de bruxa, não é? Então aceite que bruxas sempre têm segredos.

O silêncio voltou a dominar, pesado como pedra. Kael a fitou por mais alguns instantes, mas não insistiu. Apenas se deitou sobre a areia fria, os olhos fixos no teto desmoronado da ruína.

Zara, por sua vez, virou-se para o fogo, o sorriso sumindo devagar até restar apenas a expressão de alguém que carregava um fardo maior do que gostaria de admitir.

Naquele momento, ambos sabiam que a jornada não seria apenas até Nandheim. Seria também até o coração dos segredos que cada um escondia — segredos que, mais cedo ou mais tarde, cobrariam seu preço.

O silêncio das ruínas parecia absoluto. O vento gemia entre as colunas partidas, carregando grãos de areia que soavam como agulhas contra a pedra. Zara dormia, encolhida junto ao manto gasto, os cabelos negros espalhados sobre a manta como uma mancha de noite. O fogo já não passava de brasas fracas, e Kael permanecia imóvel, olhos fixos no escuro, como se a própria escuridão respirasse.

Então, ele ouviu.

Passos. Longe, mas firmes. Como batidas secas contra a areia. Mais de um… não, vários. O coração de Kael acelerou, mas seu rosto permaneceu de pedra. Ele se inclinou sobre Zara e sussurrou:

— Acorde. Agora.

Os olhos castanhos dela se abriram de imediato, treinados como os de uma fera que sabe o valor da sobrevivência.

— O que houve?

Kael não respondeu. Apenas fez um gesto para que ela ouvisse. E, então, o som tornou-se claro: o ritmo das botas na areia, o roçar metálico de lâminas, o estalar seco de bestas sendo armadas.

Zara prendeu a respiração.

— Eles nos encontraram…

Kael assentiu devagar, a mandíbula cerrada.

— Não. Ainda não. Mas estão próximos demais.

Zara já se levantava, ajustando a túnica e enrolando o lenço em volta da cabeça. Seus movimentos eram rápidos, mas silenciosos.

— Quantos?

Kael estreitou os olhos na escuridão, a percepção aguçada captando a vibração no ar.

— Pelo menos cinco. Talvez mais.

Ela soltou um riso seco, quase irônico, mas o medo vibrava por trás do som.

— Nada mal para uma caçada. Acho que meu clã realmente me ama.

Kael não sorriu. Suas mãos já formigavam com a energia latente, as chamas interiores roçando contra sua mente como feras presas em uma jaula. Ele respirou fundo, tentando conter o impulso de libertá-las.

— Se lutarmos, — murmurou — não posso prometer que vou… me controlar.

Zara ergueu os olhos para ele, o rosto iluminado apenas pela luz fraca das brasas.

— Então vamos garantir que você não precise lutar sozinho.

Ela ergueu as mãos, os dedos desenhando símbolos invisíveis no ar. Seus lábios se moveram, primeiro em palavras baixas e desconexas, como se falasse em uma língua esquecida. O som se arrastava, reverberando no espaço da ruína. A cada gesto, as sombras pareciam se esticar, se contorcer.

Kael observava, o corpo tenso, sentindo o peso da escolha diante deles. O cheiro de couro e ferro já vinha com o vento. O ranger de vozes ásperas em uma língua que ele não entendia ecoava mais perto, a ponto de parecerem dentro das paredes quebradas.

O silêncio antes da tempestade era mais sufocante do que qualquer grito de guerra.

— Prepare-se, Psycher. — Zara sussurrou, sem desviar os olhos do feitiço. — Hoje, sangue vai correr na areia.

E, então, o primeiro vulto surgiu entre as colunas, a lâmina curva refletindo as brasas mortas.

A tensão se quebrou como vidro.

Kael o viu apenas de relance — o reflexo do aço curvado, o movimento certeiro — desviou por instinto. O golpe passou a um fio de distância, cortando o ar com um assobio metálico. Ele respondeu com um soco que incendiou o espaço entre eles. O punho envolto em brasa acertou o elmo do inimigo, lançando-o para trás em chamas.

Mas não houve tempo para respirar.

Outros quatro caçadores surgiram das ruínas, movendo-se com precisão militar. Máscaras de couro e ferro cobriam seus rostos, as visões em vermelho frio refletindo as brasas do chão. Cada um trazia lâminas longas, feitas de metal forjado no deserto — armas pesadas, impiedosas.

O som seco das botas sobre a areia antecedeu o ataque.

Zara recuou, o manto girando no ar, e começou a entoar algo em voz baixa — uma sequência de sílabas antigas que soavam como o vento em uma língua esquecida.

“Shaal’ven drakor nath…”

“Veyra, Tecelão dos Véus, Senhor da Fumaça e da Mentira, empresta-me tua ilusão ardente. Que a sombra se torne lâmina e a mentira, fogo.”

O ar vibrou.

Três fragmentos translúcidos surgiram diante dela, girando em espiral. Quando lançou as mãos para frente, os projéteis riscaram o ar como cometas, atingindo dois caçadores que vinham pelo flanco.

O impacto foi seco — um estalo, um clarão — e o cheiro de carne queimada tomou o ar.

Kael desviou de uma lâmina, a areia subindo em redemoinho. Bloqueou o próximo golpe com o antebraço e revidou com o joelho no estômago do atacante. O impacto o fez cuspir sangue dentro da máscara. Kael girou o corpo, o punho direito em brasa, e acertou o lado do capacete — o homem caiu, o ferro derretendo no rosto.

Um brilho metálico cortou seu campo de visão. Kael tentou recuar, mas a lâmina seguinte o pegou no ombro.

O corte foi profundo, quente.

O sangue escorreu, misturando-se ao cheiro do ferro e da fumaça.

Kael recuou um passo, o rosto contorcido, mas os olhos ardiam em vermelho.

Ele ergueu a mão, e o fogo respondeu.

Uma onda curta de calor se expandiu, derretendo o ar entre ele e o inimigo. O caçador recuou, o elmo reluzindo.

Zara, ergueu novamente as mãos. O suor escorria da testa, o peito arfando.

Ela murmurou as palavras arcanas entre dentes, a voz embargada pelo esforço.

“Khaless nor aen… ur’ta vel’mora…”

“Serath, Senhora do Sopro Corrosivo, dá-me o hálito que dissolve aço e orgulho.”

Uma luz verde tomou forma.

Dos dedos dela, jorrou um feixe líquido, cintilante, que se espalhou em arco pelo ar.

O ácido atingiu um grupo que vinha pela direita, dissolvendo metal e carne em segundos. O cheiro foi sufocante, uma mistura de ferrugem e carne fervida.

Mas enquanto ela lançava o feitiço, outro inimigo surgiu atrás.

Um som seco — thunk — Zara gritou.

Uma flecha de pulso a atingira de raspão na costela, o impacto jogando-a contra uma pilha de pedras. O sangue escorria quente, tingindo o tecido escuro de sua túnica.

Kael rugiu.

O fogo se ergueu dele como reflexo da raiva.

O atacante tentou recarregar, mas Kael já estava sobre ele. Segurou-o pelo pescoço, ergueu o corpo e o lançou contra uma parede. O fogo fez o resto.

Três caçadores restantes se reagruparam, circulando-os com disciplina fria.

Zara cambaleou. O sangue manchava o lado de seu corpo, mas o olhar estava firme. Ela ergueu as mãos mais uma vez, agora em desespero contido.

“Nath’rael tor ilith…”

“Avarra, Mãe das Cinzas Eternas, concede-me tua luz fúnebre. Que o pó devore o que o sol não perdoa.”

A terra tremeu.

O chão rachou sob os pés dos inimigos, e da fenda se ergueram partículas incandescentes, dançando no ar como brasas vivas.

Os caçadores avançaram mesmo assim, mas cada passo os queimava, cada golpe se tornava mais lento.

Kael viu a abertura.

Avançou com fúria, a dor no ombro ignorada.

O primeiro golpe veio alto — ele bloqueou. O segundo atingiu suas costelas — o impacto o fez curvar-se, o ar saindo dos pulmões em um grunhido.

Kael respondeu com um gancho curto, depois outro, e outro. A cada soco, o fogo crescia, moldando-se em torno de seus punhos.

O último golpe foi direto.

Uma labareda curta, concentrada, atravessou o elmo do inimigo.

O silêncio caiu pesado.

Kael recuou um passo para trás, o sangue escorrendo pelo ombro e pelo queixo.

Zara caiu de joelhos, respirando com dificuldade, o braço esquerdo pressionando o ferimento.

Somente um homem restava. O líder.

Armadura negra, máscara reforçada, lança longa que zumbia com energia antiga.

Ele os estudou por um instante — olhos frios, expressão de ódio e respeito.

Depois investiu.

Kael interceptou o golpe com as duas mãos. O impacto o fez deslizar para trás, faíscas saindo do contato entre fogo e metal. A lança vibrou, liberando uma descarga elétrica. Kael gritou, o corpo arqueando, o cheiro de carne queimada enchendo o ar.

Ainda assim, ele não caiu.

Zara, sem fôlego, ergueu o punhal e atacou pelas costas. A lâmina encontrou uma fenda na armadura e abriu um corte no flanco do caçador. O homem rugiu, girando o corpo e a atingindo com o cabo da lança. Zara foi jogada contra uma parede, o som surdo do impacto rasgando o silêncio.

Kael viu o sangue na areia — e algo dentro dele se acendeu.

Ele agarrou a lança e puxou.

O metal derreteu sob suas mãos. Com o outro punho, golpeou o inimigo no peito. O impacto foi tão forte que o ar se despedaçou em calor. A armadura trincou, rachando em linhas brilhantes.

O líder tentou reagir, mas Kael o empurrou para trás e, com um último rugido, o incendiou por completo.

O homem caiu de joelhos, queimando de dentro para fora.

O corpo desabou.

O som de ferro contra areia foi o último a morrer.

Kael ficou imóvel, o peito arfando, os olhos ainda vermelhos.

O fogo apagou aos poucos, deixando apenas o cheiro de sangue e cinza.

Zara tossiu, tentando se erguer. Kael se aproximou, a pegando pelo braço e a ajudando a ficar de pé.

— Está viva — murmurou ele, quase um sussurro.

Ela tentou sorrir, mas o rosto estava pálido, a respiração curta.

— E você… parece pior.

Kael riu, rouco, cuspindo sangue.

— Empate justo.

O sol nascia no horizonte, tingindo as ruínas de dourado e vermelho.

Corpos, brasas e poeira. Nenhum som além do vento.

Eles haviam vencido.

Mas estavam exaustos, sangrando e de pé apenas pela vontade de continuar respirando.

Kael olhou para Zara, depois para o deserto.

— Vamos sair daqui antes que o mundo perceba que ainda não nos matou.

Zara assentiu, e juntos começaram a caminhar.

Atrás deles, o campo de batalha ardia em silêncio.

O deserto, como sempre, observava — indiferente.


1 Comentários

  1. Rapá! Gostei desse capítulo, serviu para delinear mais a dupla de personagens com as conversas e a ação mostrou que ambos estão muito sintonizados, mas, mesmo assim suaram bastante para enfrentar os inimigos da Zara.
    A história segue bem interessante e mal possoesperar prá ver o que tanto vai aparecer no caminho dos dois até a chegada (ou não) à terra prometida.
    Mandou bem pacas!

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