Capítulo IV
Travessia
O som metálico da grade se abrindo ressoou pelo bunker como um aviso sombrio.
Sílvia
estava junto à porta. Inspecionava os equipamentos com uma precisão
quase militar. Seu olhar cortante percorria cada membro da Terceira
Ordem, avaliando mais que armas — ela examinava a alma de cada um,
medindo coragem, cansaço, medo.
— Dez minutos — disse,
ajustando o relógio no pulso com um estalo seco. — No Véu. Mais
do que isso, e eles nos sentem. E quando eles nos sentem...
Ana,
agora mais firme e um pouco menos dolorida, observava os companheiros
se armando. Ainda era difícil compreender por completo aquele ritual
de travessia — sair de um mundo corrompido, onde os demônios se
arrastavam entre ruínas, para outro onde o sol brilhava como se nada
tivesse acontecido.
O Véu era uma mentira cuidadosamente construída. Uma ilusão divina que sobrevivera mesmo após a queda de Deus — uma simulação para esconder os vivos. Dentro dele, o cotidiano seguia em falsa paz, envolto em rotinas banais e sorrisos plásticos.
Mas os despertos viam além.
A Terceira Ordem atravessava entre mundos por portais: olhos desenhados nas paredes do Véu, sempre marcados por três riscos verticais, como cicatrizes abertas no tecido da realidade. Abaixo, quase sempre, uma palavra solitária: verdade. No mundo real, os portais se manifestavam como rachaduras, feridas pulsantes de energia cruel. Mas a travessia tinha um preço — apenas dez minutos antes que os predadores sentissem a presença dos acordados.
— Vamos nos dividir — disse Sílvia. — Baptiste, Ana, comigo. Carlos, Hellen, Jorge e Júlia pegam a farmácia, estamos com poucos medicamentos. Rodrigo e Lúcio, vocês pegam o mercado na esquina da Itaberaba. Ricardo, você guarda o bunker. Encontro no ponto de entrada em nove minutos. Não atrasem.
Sua
voz era de ferro, mas não desprovida de calor. Havia ali um cuidado
oculto, quase maternal, envolto em armadura.
— Nove minutos….
Como se a gente tivesse cronômetro na cabeça — resmungou Carlos,
coçando a barba.
— Foca na missão — retrucou Baptiste,
prendendo a bandana vermelha ao braço com firmeza. — Quanto menos
reclamar, mais tempo sobra.
Ana
caminhava ao lado dele, o coração disparado. Não era apenas o medo
da missão. Era ele.
Baptiste movia-se com precisão letal, como se tivesse dançado com a
morte muitas vezes e voltado sempre com os pés secos. Em determinado
momento, ele a olhou.
— Tá pronta?
Ela não estava. Mas
assentiu.
Diante deles, a rachadura no concreto parecia uma cicatriz na pele do mundo. O portal respirava, como se estivesse vivo. Cruzaram.
Atravessar
o Véu era como cair num sonho conhecido demais. O sol brilhava alto
sobre uma rua. Árvores dançavam ao vento. Vendedores ambulantes
sorriam. Crianças corriam atrás de pombos. Um teatro minucioso de
normalidade.
Mas Ana via. Tudo
era falso.
A
alma daquele lugar estava morta.
Enquanto
Sílvia e os outros se dispersavam, Rodrigo e Lúcio seguiram até o
mercado. Rodrigo caminhava como se meditasse. Sereno. Imperturbável.
Já Lúcio suava frio, os dedos tensos demais na metralhadora
escondida sob o casaco.
— Você tá suando como porco em
frigorífico — murmurou Rodrigo, sorrindo de leve.
— Só
quero fazer minha parte — resmungou Lúcio, os olhos varrendo o
interior do supermercado. — Esse lugar me dá enjoo. Você sabe que
não gosto de andar no Véu.
De repente, ao virar em um corredor — como que por obra do destino, ou azar, quem sabe — os irmãos se depararam com algo que ia mudar os planos bruscamente.
Molhado.
Pegajoso. Como pés descalços pisando em carne.
O ar ficou
pesado. O tempo pareceu hesitar.
E então, ele apareceu.
— Merda…. Um Farejador?! — Rodrigo cuspiu as palavras, os olhos arregalados.
A criatura oscilava entre realidades. Uma aberração que desafiava a lógica. Seu corpo era uma massa pulsante de ossos retorcidos e músculos enegrecidos, como se estivesse em constante mutação. Seis patas afiadas rasgavam o chão. Seus olhos — ou o que deveria ser — eram buracos de trevas líquidas. O som que fazia não vinha da boca, mas do próprio ar, como um gemido do mundo.
— CORRE! — gritou Rodrigo, empurrando Lúcio com força.
O
monstro investiu, destruindo prateleiras, latas e estilhaços de
vidro voaram por todos os lados. Pessoas no Véu se assustaram. Um
velho largou seu jornal e tentou correr. Uma menina começou a
chorar.
Gritos!
Correria!
Alheios
ao que realmente acontecia, achavam que estava havendo um assalto ou
talvez uma troca de tiros entre policiais e bandidos.
Rodrigo
puxou Lúcio para fora, atravessando a calçada em disparada.
—
Ali! — gritou, apontando uma viela entre prédios mortos. Entulho,
carcaças de carros, silêncios esquecidos. Um lugar para tentar
resistir.
Seis
minutos já haviam se passado. Então correram até um caminhão
carbonizado. Lúcio tropeçou. Rodrigo o ergueu com uma só mão.
—
Atrás do caminhão! Vai!
O Farejador os alcançou.
O
primeiro golpe jogou Lúcio como um boneco contra o capô de um
carro. O ar lhe escapou com um som seco. Rodrigo firmou-se, tomou uma
postura defensiva frente ao irmão, facas em punho, bloqueando a
passagem.
— VEM,
DESGRAÇADO! —
gritou.
Rodrigo dançava entre as patas da criatura, cortava carne e osso, faíscas saíam a cada golpe. A criatura gemia e se transformava, criando mandíbulas onde havia olhos, braços que saíam de costelas. Mas ele não recuava.
Um golpe brutal o atingiu no ombro. Sangue jorrou, mas Rodrigo resistiu. Cravou as duas lâminas no flanco da besta. O urro do Farejador sacudiu o beco.
Rodrigo
caiu. Já respirava com dificuldade.
O monstro ergueu as
garras.
Lúcio, arrastando-se, alcançou a arma.
—
RODRIGO!
— gritou, disparando. As balas traçaram linhas de luz entre eles.
A criatura hesitou.
Fazendo
muito esforço, Rodrigo saltou — os ferimentos não paravam de
jorrar sangue.
Subiu no dorso da criatura. Cravou a faca entre
os olhos do monstro. Gritos.
Convulsões. Uma
última rajada de força. O Farejador caiu, mas arrastou Rodrigo com
ele. As garras dilaceraram sua perna.
— LÚCIO!
— rugiu, cuspindo sangue. — FOGE!
AGORA!
—
NÃO! EU NÃO VOU
TE DEIXAR!
—
PROMETE!
— gritou, com os
olhos em
lágrimas. — PROMETE
QUE VAI SOBREVIVER. QUE VAI ENCONTRAR NOSSA FAMÍLIA.
Lúcio
chorava.
— PROMETE!
AGORA!
— EU
– EU – PRO-METO!
Rodrigo
sorriu. Um sorriso limpo. Verdadeiro.
— Então
corre.
Em
um esforço sobre-humano, desferiu mais um golpe na criatura. Porém
sua força, assim como sua vida, se esvaía.
O monstro abriu as
mandíbulas.
Rodrigo não se moveu.
Um
baque.
Um
rugido.
E
o mundo…. Silenciou.
Dez minutos haviam se passado quando Lúcio atravessou o portal aos gritos. Coberto de sangue, tropeçando, olhos arregalados pelo horror. Sílvia o segurou antes que caísse.
Rodrigo
não voltou.
O
silêncio no bunker foi sepulcral.
Carlos
fechou os olhos. Baptiste cerrou os punhos. Ana aproximou-se dele,
instintivamente. Tocou seu braço. Ele não recuou. Seus olhos
encontraram os dela por um longo instante.
— Ele morreu por
nós — disse Baptiste, com a voz embargada. — Faisons
en sorte que cette mort en vaille la peine.
Sílvia
pousou a mão no ombro de Lúcio. Seu olhar ficou distante por um
segundo.
— Choramos amanhã. Hoje, sobrevivemos.
O grupo havia atravessado o portal como se tivesse deixado um pedaço de si no Véu. Os primeiros passos dentro do bunker foram pesados, silenciosos, arrastados. O ar, antes abafado, parecia agora gelado como luto.
Ricardo,
que já estava lá e organizava parte do armamento, os recebeu com
uma piada pronta nos lábios, como era de praxe:
— Demoraram.
Achei que tinham parado pra tomar um cafezinho com os demônios.
Mas,
ao olhar os rostos tristes, o sangue nas roupas e a ausência brutal
de Rodrigo, sua voz morreu na garganta. Seus olhos fixaram-se em
Lúcio, que caminhava como se estivesse flutuando sobre o trauma, os
passos vacilantes, a expressão vazia.
—…. Merda. —
Ricardo murmurou, desviando o olhar. — Me desculpem.
Sílvia passou por ele sem dizer uma palavra. Seus olhos estavam duros como pedra, mas havia rachaduras. Pequenas, quase invisíveis. Ana as viu.
Carlos largou a mochila com um baque seco no chão. Júlia se sentou em um canto, com o rosto escondido entre os joelhos. Baptiste limpava a lâmina da faca, cada movimento contido, metódico, como se aquilo pudesse silenciar a raiva que vibrava em seu corpo.
Sílvia
se virou para o grupo. Seu semblante endurecido pela liderança
estava intacto, mas sua voz oscilava embaixo da superfície.
—
Nós perdemos alguém. — Ela respirou fundo. — E isso vai nos
assombrar. Vai queimar. Vai fazer a gente se perguntar se vale a
pena.
Silêncio.
Ela
olhou para Ana. Todos os olhares se voltaram também.
— Mas
temos uma missão. Rodrigo morreu por ela. — Sílvia se aproximou e
colocou a mão no ombro de Ana. — Temos que levar você até o
líder da Terceira Ordem.
Ana
arregalou os olhos.
— O líder?
Sílvia assentiu.
—
Sim. Ele sabe o que você é. E talvez saiba o que você pode se
tornar. E ele precisa que você seja levada até ele.
Ana não respondeu. Só sentiu o peso de dezenas de olhares e expectativas desabando sobre suas costas. Sentiu a ausência de Rodrigo como um buraco, como se algo essencial tivesse sido arrancado da existência.
— Essa noite é tudo o que temos — continuou Sílvia, voltando-se para os demais. — Descansem. Amanhã partimos. E não sabemos se voltamos.
O grupo se dispersou em silêncio. Não havia choro alto, nem lamentações dramáticas. Era uma dor muda, contida, que se espalhava como fumaça pelos cantos daquele bunker úmido.
Horas se passaram.
No meio da noite, Ana acordou. O ar no bunker estava denso, pesado, como se o próprio ambiente compartilhasse do luto. Um silêncio mórbido pairava sobre tudo, quebrado apenas pelo som abafado de respirações irregulares e sonhos tortuosos.
Ela se levantou devagar, guiada por um incômodo que não sabia nomear. Seus pés descalços tocaram o chão gelado, e ela caminhou em direção à penumbra de um dos corredores laterais. A luz fraca de uma lâmpada quase morta iluminava um canto esquecido, onde a sombra de uma figura solitária se desenhava contra a parede.
Sílvia.
Sentada
com os joelhos encolhidos, o cigarro aceso tremulava entre seus
dedos. Ela não chorava como uma líder. Não chorava como guerreira.
Chorava como alguém que havia perdido um pedaço
de sua
própria alma.
Ana se aproximou em silêncio. Parou diante dela. Sílvia não levantou o olhar — apenas continuava a fitar o chão, como se estivesse tentando encontrar, em meio às rachaduras, alguma explicação para o que havia acontecido.
Sem dizer uma palavra, Ana se abaixou.
Sentou-se ao lado dela e, com um gesto hesitante, envolveu os braços ao redor da mulher endurecida por batalhas e perdas. Sílvia tremeu. Resistiu por um segundo. Depois cedeu.
Como uma represa que enfim se rompe, afundou o rosto no colo de Ana e chorou. Chorou como uma criança. Os soluços vinham úmidos, doloridos, primitivos. Seus dedos agarraram com força o tecido da roupa de Ana, como se precisassem de algo real para se ancorar no presente, para não serem tragados pelo abismo da perda.
Ana passou os dedos devagar pelos cabelos dela, num gesto instintivo, quase materno.
Ali, naquele bunker devorado pela escuridão, entre paredes manchadas por memórias e perdas, as duas mulheres se encontraram — não como soldados, nem como peças de uma missão — mas como almas dilaceradas, tentando sobreviver ao que o mundo se tornara.
O cigarro queimou até o filtro e caiu ao chão, esquecido.
Sílvia chorou até adormecer ali, encostada no colo de Ana.
E Ana ficou desperta. Imóvel. Sentindo o peso de um luto que agora era dela também.
Quando o sol começasse a nascer — ou o que restava dele no céu apodrecido — eles partiriam. Para o desconhecido. Para a morte, talvez.
Mas,
por agora, havia silêncio.
E havia um abraço.
6 Comentários
Lendo esta saga, tantas outras me vem a mente conforme a gente segue em cada linha, The Last of Us, Sobrenatural, filmes como Lugar Silencioso, Constantine, assim como sagas daqui como Guerra na Sarjeta, Domínio Mítico, até mesmo Tupangers com sua realidade das divindades, é apreensivo, é aterrador, é medo à todo instante como se em cada esquina, ou a cada passo, algo pudesse acontecer, e caras, pode acontecer mesmo! Eu acreditava em uma criatura atravessar atrás deles, ou eles demorarem mais tempo e serem caçados mas, o susto que tomei quanto o bicho tava dentro do mercado, parecia que eu tava acompanhando a cena de um filme! Dali pra frente, descrição da criatura que definiu o medo de forma correta, a batalha deles contra a criatura, a tragédia final e o sentimento brutal de ver que não tinha mais como contornar a situação, que realmente foi uma facada no rim... A forma como tu descreve e como conduz toda a saga é eletrizante e nos mantém fixos ao texto, e na ânsia de ler mais! Ficou agora a curiosidade, que eu deveria ter cogitado no início mas achei que ela seria mais uma apenas, mas Ana parece ser especial, e ainda não tenho qualquer ideia de como e quanto ela pode ser essencial... E aqui me remeteu um pouco à Matrix, mas foi sem dúvida um episódio eletrizante, um episódio que empolgou e chocou! Parabéns Caolho, excelente texto uma vez mais!! \0/
ResponderExcluirBom como posso te dizer, se tu der uma olhada no que eu joguei no meu canal do Youtube nos últimos meses, acho que tu vai entender perfeitamente o porque dessa temática dessa história. E mais uma vez ter um cara como tu e o Norberto rasgando elogios para a minha estréia só me faz pensar que estou no caminho certo. Obrigado mais uma vez.
ExcluirGrande Marcelo!
ResponderExcluirAqui, a resistência encara a dor da perda de um dos membros..
A carga dramática da cena foi muito impactante.
O luto pela perda de um irmão é um companheiro de luta foi descri6a de forma soberba, fazendo com que imergíssemos na cena e sentíamos a dor de todos.
Nesse momento tão dramático e difícil, onde Deus foi derrotado requererá muita renúncia da equipe.
Será que estarão preparados?
E o que ocorrerá com Ana, que já deu pra perceber, tem poderes diferenciados?
Está mandando muito bem, Marcelo.
Parabéns!
Opa cara muito muito obrigado mesmo, e que bom que o pessoal está gostando desta história.
ExcluirPrimeiro só vou destacar rapidamente algo que já elogiei algumas vezes, sobre como você consegue criar uma ambientação e uma descrição expacial incríveis, pois é muito fácil visualisar tudo o que você decreve.
ResponderExcluirAgora, cara, as cenas de ação desse capítulo ficaram excelentes, a cena do supermercado foi tensa e emocionalmente muito forte, eu me peguei torcendo muito para que os dois escapassem, mas a decisão tomada foi perfeita, dando um peso gigante para todo o restante da narrativa.
Mas, para mim, o grande destaque foi toda a cena entre a Ana e a Silvia, uma verdadeira aula de como mostrar as fragilidades de uma personagem feminina, sem apelas para os clichês horríveis que algumas obras tem feito nos últimos anos.
Silvia se mortou uma pessoa de verdade, sendo dura quando necessário e frágil, quando lhe foi ofertado um ombro amigo durente um momento de muita necessidade.
Meus mais sinceros parabéns por mais essa parte de uma história que segue mais e mais interessante e cativante!
Bom acho que te confessei que essa parte final desse capítulo foi bem dificil de escrever,. Inclusive quando terminei ao ler ele acabei chorando. Eu tenho muito disso de me colocar dentro da cena, então quando estou escrevendo dependendo da situação acabo absorvendo muito a carga emocional, por isso mesmo geralmente escrevo ouvindo musicas anos 70 - 80 para poder dar um alivio....kkkkkkkk.....muito obrigado mesmo por disponibilizar seu tempo para acompanhar minha história.
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