INFILTRAÇÃO
A Estrela Perdida encaixou-se no ventre da estação como um navio entrando em porto: devagar, preciso, como se pudesse ouvir o metal responder ao metal. Do lado de fora, a muralha de aço curvava-se em corredores e baías de atracagem alinhadas com fachos de luz azul; por dentro, o ar parecia mais frio, como se a própria estrutura respirasse responsabilidade e vigilância.
No hangar de manutenção, o impacto do casco remendado reverberou em ondas baixas. Luzes automáticas deslizaram por sobre painéis estampados com emblemas da Liga; robôs de inspeção cruzavam a plataforma como besouros de olhar metálico. Guardas em armaduras cinzentas acompanhavam a recepção, olhos duros como fendas. Tudo calculado para intimidar quem tem algo a esconder — e também perfeito para quem tem um segredo bem ensaiado.
Lúcia saiu por primeiro. O uniforme improvisado assentava estranho sobre o corpo estreito dela: um macacão de manutenção com o símbolo da estação bordado no peito, manchas de graxa estrategicamente colocadas e um crachá com fotografia trocada. Ela movia-se com a calma de quem já ensinou centenas de pessoas a não olhar demais para a cara de alguém. Pelo visor, observava a entrega de olhares, as rotas dos guardas, os sensores de pulso nos ombros das vistorias.
Nyx a seguiu com a precisão de uma sombra calibrada. A androide carregava uma maleta de ferramentas — os compartimentos ocultos bem cheios — e um sorriso treinado que era mais uma linha de programação do que expressão. Seus olhos analisavam as frequências dos sinalizadores, mapeavam o tráfego de drones e registravam a disposição das portas blindadas em menos tempo do que um humano demora para piscar.
Mako, com o macacão folgado e um falso ar de quem conhece cada parafuso do local, trazia no bolso uma peça de metal que brilhava como se fosse só mais um componente qualquer. Ele cozinhava sarcasmo por baixo de uma respiração contida, observando as reações com a mistura de medo e prazer de quem está sempre na beira do precipício.
Zurgo vinha atrás, as mãos tremendo controladas. O uniforme lhe caía mal — as mangas curtas exibiam braços que tivessem preferido ferramentas a armas. Ele carregava um estojo que, aos olhos distraídos, era um kit de reparos; aos olhos de Lúcia, era uma bateria de emergências capaz de desligar uma fechadura em três segundos. Cada passo de Zurgo ecoava mais alto em sua cabeça do que no hangar; cada palavra que quase brotava de sua boca era uma fagulha que ela precisava apagar com um olhar.
— Identificação e manifesto de carga — ordenou o oficial da baía, a voz seca, o braço estendido para o terminal.
Lúcia deslizou o crachá, os dedos funcionando como quem vira a página de um livro já lido. A holografia respondeu com um bip curto, e uma etiqueta projetou: TRANSPORTE AUTORIZADO — MANUTENÇÃO PROGRAMADA — KX-47. O oficial meus olhos percorreram a tela e, por um instante que durou o tempo de um piscar, avaliou chances. Depois deu de ombros como quem aceita a rotina.
— Liberados. Traga sua equipe para a verificação secundária — disse ele. — E não saia da rota designada.
— Entendido — respondeu Lúcia, voz calma como aço inoxidável. Ao longe, ela percebeu o micro-respiro de alívio de Zurgo. Pequenas vitórias, pensou. Ainda não estamos fora do mapa.
A fila de verificação foi um corredor com mil julgamentos. Drones de escaneamento passaram sobre os braços deles como libélulas de vidro; sensores de bioassinatura checaram batimentos e temperatura com a impessoalidade de um médico que não se interessa por histórias. Nyx, com sua assinatura recalculada, devolveu números dentro da margem esperada; Zurgo teve que forçar uma respiração mais lenta, e Mako segurou a fala quando um soldado fez uma piada sobre “novos recrutas”.
Quando a última luz confirmou a conformidade da tripulação, uma porta de aço deslizou e liberou o acesso para uma galeria interna — um labirinto de tubos, passarelas e cabos que pulsam com energia. Era ali que começava o trabalho de verdade: atravessar, sem fazer barulho, até o setor onde a caixa estava guardada.
Lúcia fez o sinal com a mão, curto, claro. Entraram.
O corredor de manutenção cheirava a ozônio e metal aquecido. Placas de identificação marcavam cada interseção: Núcleo B4 — Acesso Restrito; Linha de Refrigeração 3; Plataforma de Elevadores de Carga 7. Nyx projetou, em microcampos, a rota ideal: menos câmeras, rastros térmicos corrigíveis, pontos de sombra para pausa. Eles desviaram por uma passagem lateral quase sempre usada por robôs autônomos — a passagem perfeita para quem quer passar sem assinar presença.
— Mantenham postura de manutenção — sussurrou Lúcia, próxima o suficiente para que apenas eles ouvissem. — Ferramentas à vista. Movimentos naturais. Se alguém falar com vocês, respondam com procedimentos. Não com piadas.
Mako murmurou:
— Procedimento número um: não morrer de orgulho.
Zurgo apertou o estojo contra o peito como se fosse um amuleto. A cada passo, o leitor sente como se um detector invisível pudesse disparar: o metal vibrava; a iluminação vacilava quando um drone passava por cima; passos de patrulha ecoavam em intervalos incertos.
Passaram por módulos de manutenção onde técnicos reais consertavam painéis; os olhares treinados dos verdadeiros operários demoraram o suficiente para captar detalhes e seguir adiante — um equilíbrio tênue entre confiança e suspeita. Lúcia os via, catalogava rostos, memórias rápidas que poderiam ser úteis mais tarde: um operador com cicatriz no queixo, uma técnica que ajustava seu bracelete com pressa, um drone com lente trincada que habitava sempre o mesmo ângulo.
Chegaram ao elevador de carga. Painel bloqueado, autenticação necessária. Nyx aproximou a maleta e, com movimentos que pareciam técnicos, aplicou uma sequência ao painel — substituição de uma chave de manutenção por um emulador de assinatura. O display bipesu e aceitou. A porta do elevador fechou com um som que parecia um prêmio e uma sentença.
— Subiremos dois níveis — informou Nyx. — Setor de armazenamento primário. Quadra de alta segurança a cinco minutos a pé do ponto de saída.
— Cinco minutos que podem ser uma eternidade — disse Mako, forçando um riso curto.
O elevador começou a subir. As paredes internas vibraram levemente, convertendo-se em um casco de aço que agora os transportava entre camadas de vigilância. Lúcia sentiu o ar gelar — não por falta de temperatura, mas por consciência: a cada metro, a chance de erro diminui, e a consequência, quando chega, é imediata.
Quando as portas se abriram, o corredor em que desembarcaram era mais silencioso, mais controlado: piso com sensores, iluminação sincronizada para a patrulha, e uma central de portas automatizadas onde passavam menos tripulações e mais cargas valiosas. Era o tipo de lugar onde um olhar errado era punido por uma checagem, e uma checagem podia significar horas que eles não tinham.
Lúcia olhou para os outros. O sorriso breve que passou por seu rosto não era alívio: era recalculo. O plano, até ali, alimentava-se de precisão e sorte calculada. A próxima etapa exigiria algo além — discrição, sincronia e uma coragem que não precisasse de fanfarronice.
— Preparar para infiltração no setor de armazenamento — murmurou ela. — Disfarces, ferramentas, e aquilo que disfarça a nossa pressa: calma.
Eles ocuparam posições. Nyx encaminhou um pulso de assinatura que manteria o elevador “no radar” como carga agendada; Mako ajeitou a alça de ferramentas que agora servia de suporte para o dispositivo de abertura; Zurgo prendeu o estojo com as luvas e respirou fundo.
Do lado de fora, por entre as janelas estreitas, o vazio do espaço era um negro sem promessas. Mas ali dentro, entre placas e portas e a respiração contida de quatro pessoas fingindo ser mais do que eram, a verdadeira missão começava: chegar até a caixa, abrir o segredo, sair sem provocar mais do que um suspiro de curiosidade entre os guardas.
Eles ainda acreditavam estar invisíveis. E, por enquanto, o sistema concordava.
A luz no corredor piscou uma vez, duas, como se marcasse o compasso da decisão. Reunidos atrás de uma coluna de manutenção, com a caixa de ferramentas transformada em um altar improvisado, eles começaram a costurar a única rota possível: não arrombar, não confrontar — manipular o fluxo de logística da própria estação até que a caixa viesse até eles.
— Temos que fazê-la sair do cofre sem nunca tocar na autorização principal — disse Lúcia, voz baixa e limpa. — A resposta é: transformar a própria estação numa cúmplice.
Nyx abriu sua maleta e, em vez de computadores espalhados, mostrou um nó de interfaces e um emulador de protocolos. Na tela, uma linha de tempo com janelas de varredura, relógios e latências: a cadência exata das trocas de turno, o intervalo entre verificações redundantes, e a rotina humana que mantinha o cofre “imune” — justamente a rotina que poderiam explorar.
— Posso criar um pedido legítimo de transferência de carga — explicou Nyx. — Um reparo emergencial numa ala a quatro portas daqui. O protocolo exige que o módulo de armazenamento libere a caixa para análise externa por até seis minutos, com escolta mínima. Isso abre um janelão onde a unidade sai do cofre e segue por um corredor monitorado por drones de logística — exatamente a rota que precisamos interceptar.
— E quem autoriza? — perguntou Mako, já vendo os riscos. — Não é só apertar um botão. Alguém confirma.
— Confirmação humana é um ritual — disse Nyx. — Mas as confirmações seguem padrões previsíveis. Posso emular a assinatura do supervisor de manutenção e forjar o pedido. A chance de auditoria imediata é baixa — se circunstanciarmos um motivo plausível.
Zurgo esfregou as mãos sujas e sorriu torto, uma ideia surgindo no rosto nervoso:
— E se o motivo for “contaminação”? Um circuito de refrigeração que precisa de uma peça específica que só está nesse cofre. A gente inventa o problema, e pronto: urgência verdadeira. Pessoas preferem remediar do que investigar.
Lúcia assentiu, costurando as peças.
— Ok. Nyx emula o pedido. Zurgo prepara a “pegadinha” física: um curto controlado num segmento do painel de distribuição que gerará o alerta local. Mako assume a postura de técnico de resposta quando o drone de coleta aparecer. Eu pego a escolta que vier e faço a transferência manual.
O plano dependia de três coisas: tempo, peso e aparência. Eles teriam poucos minutos para abrir o cofre e trocar a caixa por um falso com assinatura térmica e massa iguais — qualquer discrepância óbvia e o alarme inteligente abriria uma investigação. Nyx teria de manter os sensores off-line, mas não zerados: apenas desviados o bastante para manter conforto de rotina.
Preparativos instantâneos: Zurgo desmontou o estojo e retirou um circuito de pinos, fios enrolados com fita isolante e um pequeno gerador magnético improvisado. Mako checou as ferramentas — alavancas, chaves, um emulador de cartografias magnéticas para simular a presença de um contêiner legítimo. Lúcia passou a mão na luva, mediu o compasso dos outros, e fechou os olhos por um segundo.
— Conto até três — sussurrou ela. — Três e todos executam. Não há improvisos que não estejam previstos. Não respirem palavras.
Um. Nyx começou a injetar o pacote no sistema da estação. A tela cintilou, protocolos handshake falsos se entrelaçaram com fluxos reais, e uma requisição de emergência com a assinatura forjada surgiu nas rotas de logística: “Requisição: remoção de item crítico para análise — setor de refrigeração B-4.”
Dois. Zurgo, corajoso no extremo do absurdo, aproximou-se de um painel lateral e provocou um curto controlado — um estalo, um sopro de faísca azul, e o corredor em frente deles piscou com um vermelho fraco. As luzes indicavam falha local; na sequência, um pequeno alerta de prioridade média ascendeu no console central. A máquina reagiu: priorização de logística, liberação de unidade de coleta.
Três. Mako já estava pronto no ponto de intercepção previsto por Nyx, uma dobra na passagem por onde os drones de transporte deveriam passar empurrando a carga. Vestiu o rosto de autoridade, ajustou o crachá forjado e prendeu no peito um sorriso que queria passar por profissionalismo desconfiado.
Os minutos se diluíram em contagens curtas. Nyx sussurrou o tempo restante em décimos: “120… 89… 47…” — cada número um martelo no peito de Zurgo.
Quando o drone de coleta surgiu, um cilindro com garras e um braço mecânico bem polido, todos prenderam a respiração como se fosse uma explosão predita. O aparelho encaixou-se com precisão no recesso do cofre. O protocolo pedia dois verificadores humanos — pedia, mas a urgência forjada havia dispensado a checagem completa: apenas um técnico era requisitado para acessar e liberar a tampa para o transporte.
Lúcia avançou. Cada passo era medido: não era uma invasão, era uma intervenção técnica autorizada. Mãos ágeis abriram o lacre secundário, dedos sentindo o frio do metal, o cheiro de vedantes novos. O cofre rendeu com um clique sutil. Dentro, a caixa repousava como uma promessa pequena e quadrada, cercada por travas e um campo de contenção magnética.
Nyx projetou uma micro-barreira de interferência para manter os sensores convencionais enganados por mais cinquenta segundos. Zurgo, num tremor que parecia sincronizado com a máquina, segurou a tampa que Lúcia abriu enquanto Mako posicionava o contrapeso falso, equilibrando massa e assinaturas térmicas.
— Agora — murmurou Nyx.
Em menos de doze segundos, a caixa verdadeira foi deslizada para fora, colocada num compartimento oculto sob o estojo de Zurgo. O falso, feito com placas, massas e um núcleo gelado que Nyx calibrara para imitar emissões, entrou no espaço do cofre. O drone fechou, aceitou o contêiner, e partiu pela galeria com a rotina do trabalho concluído.
Eles ficaram ali, o silêncio adensado, o gosto metálico no ar. Ninguém gritou, nenhum alarme famigerado uivou. O sistema registrou a transferência como concluída e atualizou o manifest. Nyx expirou um único som programado que pareceu um suspiro humano.
— Bom trabalho — disse Lúcia, quase sem som. — Agora somem.
Eles se retiraram como técnicos que nunca foram. Passos calibrados, olhar neutro, mãos sujas de graxa e nervos em chama. A estação, cúmplice silenciosa, retomou a rotina. Por baixo do estojo de Zurgo, escondida entre ferramentas, a caixa verdadeira pesava contra a pele — e pesava também como promessa: a próxima parte da missão exigiria abrir aquilo com cuidado, e com muito menos tempo a favor.
Ao dobrar a esquina, Zurgo sussurrou, meio rindo, meio chorando:
— Eu nunca mais vou reclamar do esgoto.
Lúcia apenas apertou o punho, sentiu a caixa sob a palma, e olhou para o painel que Nyx deixara em branco. A vitória era silenciosa — e preciosa. Agora vinham as consequências.
A rota de volta para a Estrela Perdida foi traçada com a mesma precisão silenciosa com que haviam executado o resto: Nyx projetou o mapa interno na palma do tablet improvisado, linhas azuis pulando como veias até a saída, marcando corredores de baixa patrulha, rotas de drones e janelas temporais para o deslocamento.
— Aqui — disse ela, apontando para uma rota que contornava a praça de carga principal. — Menor probabilidade de encontros humanos. Dois drones de vigilância cruzam esse setor às 13:04 e 13:18. Temos uma janela de dez minutos até o próximo ciclo de verificação.
Lúcia olhou para o traçado, então para os rostos ao seu redor.
— Dez minutos, então. Mantenham-se como vimos: postura, ferramentas, respiração. Saímos como entramos — profissionais.
Mako riu baixo, puxando o macacão como se fosse um terno elegante.
— Profissionais? Isso soa muito chique pra gente. Podemos pelo menos fingir que somos felizes por trabalhar aqui?
— Sorriso contido, não gargalhada histérica, por favor — respondeu Lúcia, com um brilho de humor que quase se perdeu. — Mantém o óculos de soldador imaginário no rosto.
Zurgo ajeitou o estojo, verificando as travas com cuidado quase paterno. O suor secava em sua testa, mas havia um brilho novo nos olhos — adrenalina que tinha virado orgulho.
— Eu sabia que aquele isolante ia servir pra algo útil um dia, disse ele, como quem justifica a própria existência.
Nyx virou a cabeça e fez um som que tentou reproduzir um riso — um micro-gesto programado, mas havia sinceridade naquela tentativa de imitar a leveza humana.
— Probabilidade de sucesso elevada. Parâmetro emocional: 4%. Incremento marginal detectado.
Eles moveram-se como uma pequena caravana: Lúcia na frente, Nyx ao lado para cortar caminhos que a lógica humana não veria, Mako cobrindo flancos com o ar despreocupado de quem esconde medo com piadas, Zurgo fechando a retaguarda com passos mais largos do que precisava — tentando assim ganhar tempo caso algo fosse errado.
Em uma encruzilhada, encontraram um grupo de técnicos reais fazendo manutenção em um painel de arrefecimento. Olhares passaram; a tensão subiu como um líquido que ferve. Lúcia fez um gesto mínimo — um aceno quase imperceptível — e Mako retribuiu com uma pergunta banal, a voz tão casual que poderia ser armazenada num banco de frases prontas.
— Problema na linha três? Vocês conseguiram contornar a oscilação? — perguntou ele, apontando para o painel que, para eles, era apenas parte da paisagem.
O chefe da equipe olhou por um segundo e respondeu com a mesma naturalidade:
— Só um ajuste fino. Vocês sabem como é.
Mako lançou um sorriso curto, verdadeiro, cheio de cumplicidade forjada. Zurgo puxou o pequeno bloco de notas e fingiu anotar uma observação técnica que não existia. Nyx registrou assinaturas, calibrou rota. Lúcia sentiu o calor do rosto de Zurgo — medo que queria se transformar em riso — e apertou o ombro dele num toque rápido que dizia: “Segura”.
A passagem final até a baía de atracagem foi um corredor longo. O som das botas da patrulha ecoou ao longe, mas não cruzou seu caminho. Quando a luz do hangar apareceu, a Estrela Perdida delineou-se como um velho amigo à espera. O casco, visto de perto, parecia mais uma coleção de cicatrizes amorosas do que de estragos — provas de que a nave ainda respirava.
Lúcia acelerou o passo, um estímulo para o grupo.
— Rápido e calmo. Entrem na nave como quem volta de um dia de trabalho e só quer o jantar.
Mako foi o primeiro a subir a rampa, jogando a mala de ferramentas para dentro como se fosse um saco de compras. Ele rodopiou, olhando para o céu da estação, e gritou com teatralidade:
— E viva a manutenção! Aplausos para a Liga pela iluminação maravilhosa!
Zurgo entrou em seguida, rindo alto demais, aliviado demais. Ele tropeçou numa antena de carga e quase derrubou uma caixa, mas Mako o segurou pelo braço com uma risada que soou como música. Nyx passou por último, movimentos limpos, olhos escaneando rapidamente todas as leituras para garantir que não havia registro residual.
Quando a rampa se fechou atrás deles com o som pneumático que agora soava familiar, o ar da Estrela Perdida acolheu-os como um cobertor quente. Lúcia apoiou a mão no metal e deixou ir o peso contido da missão — apenas por um segundo.
No salão principal, a tripulação se permitiu o pequeno rito: tirar o macacão falso, soltar o cinto e rir do absurdo de estarem ali mais uma vez. Mako abriu uma pequena garrafa de rum que Zurgo escondia para ocasiões “extraordinárias”; o líquido era amargo, mas foi recebido como medalha.
— À equipe mais improvável do setor — começou Mako, olhando para cada um. — Às melhores desculpas e às piores fragrâncias de esgoto.
— À nossa sorte suja — corrigiu Zurgo, e todos riram.
Nyx ficou um instante observando-os, como quem tenta entender por que os humanos celebram. Depois, com a mesma precisão calma de sempre, disse:
— Estatística de coesão do grupo: subiu 27% desde início da missão. Dados correlacionados: eficiência também aumentou.
Lúcia pegou a garrafa por um instante, olhou para a cápsula que guardava a caixa, e riu — um som curto, pesado de alívio.
— Não comemorem muito — disse ela, voz suave mas firme. —
Mako rolou os ombros e esticou o braço, oferecendo a garrafa.
— Um trago rápido pra não transformar a tensão em concreto.
Eles beberam. O rum aqueceu as gargantas, espalhando-se como promessa. Zurgo fez uma careta e, em seguida, soltou um suspiro longo que parecia expulsar pó e medo do corpo. Nyx observou o brilho que a fumaça da bebida fazia sob a luz fraca do cockpit e anotou, talvez por curiosidade, a expressão de contentamento que cruzou o rosto de Lúcia por um instante — algo raro e quase humano.
Enquanto riam e discutiam os momentos mais absurdos da operação — o momento em que Zurgo quis realmente cheirar um cano, a tentativa de Mako de ensinar Nyx a “piscadela humana” — havia, por baixo, uma linha fina de tensão: eles sabiam que a verdadeira prova ainda estava por vir. Mas naquela noite, por algumas horas, o peso foi dividido entre quatro — e isso já bastava.
Lúcia colocou a mão sobre a caixa escondida, sentiu o frio do metal sob a palma. Depois levantou o olhar, sério outra vez, mas mais leve.
— Amanhã a abrimos. Agora, vamos aproveitar que ainda respiramos.
E assim, entre risos forjados e respirações compartilhadas, a Estrela Perdida rasgou o silêncio do espaço para seguir viagem — quatro pessoas, uma nave velha, e um segredo que batia no ventre, pesado e pronto para mudar tudo.
2 Comentários
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCaceta, fiquei travado na cadeira enquanto via as coisas dando certo, só aguardando a hora em que a merda fosse bater no ventilador e... Não aconteceu! Dessa vez deu tudo certo. Por essa eu não esperava mesmo.
ResponderExcluiruma ótima quebra de expectativa!
No aguardo para ver o que o futuro vai trazer.
Parabéns!