Ho! Ho! Ho!
Feliz Natal Tokuleitores!
E eis que surge, junto com os presentes de uma manhã natalina, a primeira one shot que escrevi para esse novo projeto.
Após algumas mudanças no nome da história preferi uma mais simples e eis que Ho! Ho! Ho! ficou pronta para apresentar para vocês um personagem que, espero, consiga usar em mais algumas histórias.
Bom, então desejo boas festas e... Boa leitura!
Mindstorm 3000.
Ho! Ho! Ho!
O corpo se ergueu da cama flutuante como se
pesasse uma tonelada, o que não estava muito longe da verdade, uma vez que os
vários cyber aprimoramentos não haviam sido atualizados para versões com
material mais leve, por isso, assim que ele tocou os chão frio com os pés nus,
além da sensação de prazer que percorreu suas partes ainda humanas, a cama
quase deu um salto antes de se estabilizar.
Ignorando o quase suspiro de alívio do
móvel e batendo repetidamente na têmpora direita, isso normalmente corrigia seu
servomotor visual, o velho seguiu até o banheiro, querendo ter o prazer da
primeira mijada do dia.
Mal saiu, após seus afazeres matutinos,
cabeça levemente abaixada, agora dando tapas no cocoruto para ajustar o foco do
olho direito, acabou dando de cara com uma parede que não estava ali quando foi
dormir.
- Putaqueopariu... Malditas nanoparedes
ajustáveis... Ô Retarda! O que aconteceu aqui?
“Sugestão da senhora Fujiwara...” uma voz
eletrônica ressoou pelo corredor conforme a IA responsável pela manutenção da
casa se explicava para o dono.
Ele apertou o espaço entre os olhos, já
arrependido por ter passado a noite com uma das poucas de suas vizinhas ainda
solteira, uma senhorita japonesa, no alto de seus quarenta aninhos, que
demonstrou muita animação durante boa parte da noite e madrugada, mas de quem,
pelo visto, ele teria de se afastar logo.
A última coisa que passava por sua cabeça
era engatar um relacionamento sério àquela altura da vida.
- Faz tudo voltar ao que era antes...
Agora.
Conforme um irritado dono da casa se
trancava de novo no banheiro, respirando aliviado por ver que ali estava tudo
normal, antes ele estava no modo automático, a IA tratou de desativar as
nanoparedes, fazendo-as se desfazer como se fossem areia, se mantendo dentro de
trilhos especiais que foram se ajustando para a configuração anterior, quando
se ergueram outra vez, voltando a ficar sólidas.
Quando ele voltou ao corredor, agora já realmente
desperto, constatou com um leve e fugidio sorriso, que sua casa estava com as
configurações que haviam vindo de fábrica e com as quais ele estava acostumado.
- Feng Shui o caralho... Retarda... - a IA
respondeu ao nome que lhe fora dado, sem aparentar perceber a ofensa velada. -
Me faz um café amargo e dois pães com recheio de frios... Coloca o que tiver na
geladeira...
No tempo que ele levou para chegar à
cozinha, seu pedido já estava pronto sobre uma bancada próxima da porta, por
onde ele passou, a caneca numa das mãos, na outra o prato com os pães, dessa
vez recheados apenas com um troço amarelo que parecia queijo.
Assim que saiu de casa, uma lufada de vento
frio, temperatura típica do final do ano desde que havia sido decretado o Tratado das Estações, lhe atingiu o
rosto e gelou seu peito nu, uma vez que ele mal havia colocado cueca e uma
calça velha, já que acordou com pressa e decidido a trabalhar no Mozão.
A porta da garagem abriu de imediato, assim
que ele se aproximou, deslizando para baixo, deixando à mostra o interior, onde
estavam várias bancadas com ferramentas e no centro um grande Cadillac preto,
cuja tampa do motor estava levantada, deixando à mostra o motor que ele estava
montando a meses.
- Velho Enzo?
O homem se voltou, vendo ali perto o motivo
de sempre pedir dois pães para o Retarda.
- Tá aqui seu pão G3nntro... - após
colocar o prato e a caneca numa das bancadas, ele entregou o lanche para o menino.
- Tenta não comer tudo em duas bocadas como sempre...
- Velho Enzo... - entre mastigadas de boca
aberta e engolidas em seco, o café era só para o dono da casa, o menino ia
puxando papo. - Vai terminar isso hoje?
Ele se inclinou sobre o motor desmontado e
antes de derrubar cascas de pão, teve o colarinho da blusa puxado, sem
violência, mas com firmeza.
- Mal aí... – ele então olhou para a caneca
de metal multicolorido na mão do velho. - Vai tomar isso aí inteiro?
- Já te falei, esse tipo de café não é prá
criança... - dito isso ele deu outra golada, enquanto pegava uma chave inglesa
e se colocava a apertar alguns parafusos. - Você ia ficar ainda mais agitado do
que já é no normal...
Como de costume o pequeno G3nntro, no alto
de seus oito anos, já se achava maduro o suficiente para travar uma conversa
com alguém como Enzo, dezenas de anos mais velho, enquanto ficava andando e
mexendo em tudo que estava ao alcance de suas mãos.
- Você já foi do exército né? - o garoto
havia acabado de achar uma caixa cuja tranca estava desativada, pegando várias
fitas e medalhas de condecorações lá de dentro. - O que é tudo isso?
- Coisa que moleque melequento não pode
mexer... - Enzo então tirou das mãos do menino tudo o que ele tinha pegado,
colocou de volta na caixinha e devolveu à estante onde estava, fora do alcance
da criança.
A manhã seguiu tranquila, com a restauração
do motor do carro avançando, mesmo com Enzo tendo que parar algumas vezes para
atender a algum pedido de G3nntro, ao menos até que o horário do almoço foi se
aproximando.
- Filho!
O menino largou tudo o que estava fazendo,
espalhando algumas ferramentas, praticamente inquebráveis claro, um cuidado que
o velho havia tomado, quando saiu correndo para abraçar uma bela mulher que
trajava uma roupa branca com cruzes vermelhas estilizadas nos ombros.
- Senhor Enzo... Muito obrigada por tomar
conta dele... De novo.
Hallory era uma médica,
com especialidade em cirurgias laser, locada num dos maiores hospitais do
centro de Nuova Speranza e, apesar da insistência dos superiores, ela
ainda preferia morar no setor rural onde acreditava ser um lugar melhor para
criar seu filho.
- O G3nntro deu problema?
- Prá cara... - o velho suspendeu o
palavrão assim que o menino voltou o olhar para ele. - Caramba... Trabalho prá
caramba, mas já estou acostumado...
- Tô percebendo que o seu olho tá meio
estranho né?
- Nada demais, só uma tremedeira de leve
e...
- Senta ali prá eu dar uma olhada... - após
alguns resmungos do velho, Hallory conseguiu colocá-lo sentado num banco próximo,
segurando a cabeça dele, pegando um nano bisturi e levando-o até a área de uma
cicatriz que começava na bochecha do homem, seguindo pelo alto da cabeça e
terminando na nuca. - Se doer me avisa...
Obviamente doeu como o inferno na terra,
mas Enzo havia sofrido dores muito piores em seu passado, fosse na terceira
grande guerra ou no período posterior, quando ele participou de um grupo de
mercenários.
Ele perdera um braço pouco antes da baixa
do exército, bem como a parte superior de seu crânio, junto com um olho numa
das missões com os Tool Box, no pós guerra, época também que ele recebeu o codinome
Hammer, que ele usa até os dias atuais como sobrenome.
Enzo
Hammer. Antigo capitão de unidade, ex líder mercenário,
vivendo sua aposentadoria num fim de mundo rural, dando uma de babá de graça e
sem, ao menos, levar a mãe para a cama.
Nenhum dos antigos colegas acreditaria
nisso.
Exame terminado, Hallory voltou a fechar a
fenda craniana, pedindo para que o velho Enzo fizesse alguns testes.
- Está perfeito... Muito obrigado.
- Magina. O senhor vive cuidado do G3nntro
sem cobrar nada... Aliás, mais uma vez... Não posso mesmo te...
O velho apenas levantou uma mão espalmada,
um sinal conhecido de suas negativas, deixando claro que aquele assunto de
pagamento estava encerrado.
Sem outra alternativa, com um sorriso no
rosto, Hallory deu um beijo na bochecha
do velho, mandou o filho dizer obrigado e dar tchau para, logo depois, seguir
para sua casa.
Finalmente sozinho Enzo se voltou para o
motor do carro, pretendia rodar mais alguns diagnósticos antes do almoço, mas
logo seus sentidos perceberam uma presença às suas costas.
Normalmente ele pegaria qualquer coisa ao
seu alcance, pretendendo se defender de qualquer ataque, esse foi seu primeiro
impulso, mas logo se lembrou de onde estava, do quão pacífico eram aquele setor
e aquela comunidade, por isso, caprichando na cara de mau humor ele se virou.
Uma pequena menina de cabelos enrolados,
sentada num triciclo flutuante olhava fixamente para ele, aquele tipo de
expressão de quem está tentando descobrir seu maior segredo.
Ficaram assim por quase dois minutos
inteiros.
- O senhor não é mesmo o Senhor Nicolau
não né?
Enzo
soltou um cômico suspiro de impaciência, quase todos os dias de Dezembro a
pequena Shakty, de apenas quatro
anos, passava pela sua casa fazendo a mesma pergunta, esperando que, em algum
momento, o velho Enzo revelaria que era o novo e atual grande símbolo do Natal.
Quando a civilização se reergueu, após a
terceira grande guerra, alguns engravatados das Megacorporações acharam que o
arquétipo do Papai Noel estava ultrapassado e então foi criado o Senhor Nicolau
que, na verdade, era a mesma coisa, só com um visual e apelo mais modernos.
- Não sou não Shakty… - ele desistiu do
carro, saiu da garagem e deu ordem para que o Retarda fechasse as portas e
começasse a fazer o almoço, antes de terminar de dispensar a menina. - Agora
vai pra casa… Tá na hora de comer… E tem que comer tudo senão o Senhor Nicolau
não te leva presentes...
Assim que viu a menina chegando e entrando
em casa, que ficava perto, Enzo seguiu pelo lado contrário, começando uma
caminhada que ajudaria a abrir seu apetite, passando ao lado das várias
residências de plantação, onde era possível ver os robôs semeadores, que
preparavam o terreno para quando terminasse o Inverno Mundial.
O vento gelado, mesmo perto do horário do
almoço, fazia o velho se lembrar do anúncio de alguns cientistas, da Megacorporação
Clima 3000 que, a partir daquela data, cerca de dez anos atrás, as quatro
estações seriam iguais no mundo inteiro.
Desse modo todos tiveram que se adaptar,
com o Inverno começando em Dezembro, trazendo toda uma nova realidade para o
mundo inteiro, mesmo o que não haviam assinado o Tratado.
“E lá vamos nós… Outro Natal no Brasil com
neve… Natural para um caralho...” Enzo tinha idade suficiente para se lembrar
do mundo antigo, tendo passado por uma pandemia que manteve as pessoas isoladas
em casa por mais de cinco anos e uma guerra mundial, muitas vezes ele se
perguntava se ter sobrevivido até os dias atuais valia mesmo a pena.
Tybaia, antiga cidade de
Atibaia, se tornou um dos principais bairros rurais da imensa Megacidade de San
Paolo.
Essa nova cidade, que ocupava todo o estado
de São Paulo e cujo setor principal, Nuova Speranza, construída sobre o que foi
um dia a cidade de São Paulo, era o centro nervoso de San Paolo, por isso as
produções de Tybaia eram muito importantes e, ao final do inverno, todos tinham
que já estar adiantados com suas plantações.
Ele seguia e cumprimentava os moradores,
muitos ficavam à toa diante de suas casas, navegando pelas mais recentes redes
sociais, uma vez que a automatização do plantio deixava quase todo mundo mergulhado
num ócio sem fim.
Conseguiu evitar a rua onde morava Sora
Fujiwara, adiando assim o constrangimento de terminar com ela um
relacionamento que mal havia ido além de umas noites de sexo casual para ele.
Como sempre o único que lhe respondia o
cumprimento de bom dia com uma carranca de mau humor era Noah, um homem
de idade próxima à de Enzo, que era um tipo de conserta tudo daquela área do
bairro.
Desde que Enzo se mudara, mesmo contra sua
vontade de se manter isolado, acabou fazendo alguns favores para seus vizinhos,
que foram espalhando o fato de que o recém chegado não cobrava nada por seus
préstimos, fazendo a clientela dele debandar.
Somado ao fato de que Noah estava
cortejando Sora, ao saber que ela havia passado a noite com Enzo, num setor
rural era comum todos saberem tudo das vidas um do outro, o ressentimento só
cresceu.
Claro que Enzo estava pouco se lixando para
o que Noah sentia, não seria a primeira pessoa a odiá-lo e nem a última.
Por isso, ao terminar a caminhada Enzo
voltou para sua rotina da tarde, mexendo mais no Mozão, tendo que dizer mais
vezes para a pequena Shakty que não era o Senhor Nicolau e dar um lanche da
tarde para G3nntro, enquanto sua mãe
dormia.
Quando a noite caiu ele conseguiu evitar um
convite para jantar com Sora, dizendo que iria dormir mais cedo e de fato se
deitou, mas como sempre, quando chegava essa hora, seus sonhos eram tudo, menos
tranquilos.
XXX
O que sempre lhe atingia primeiro era o
cheiro de carne queimada, mesmo misturado com óleo, terra, sangue e tudo o que
literalmente voava ao seu redor no campo de batalha, ele sabia que aquele
cheiro o acompanharia por toda a vida.
A trincheira, feita numa das áreas
devastadas da Floresta Amazônica, principal ponto de invasão norte americana,
mal protegia ele e seus homens, ainda assim tinha que berrar ordens e
praticamente obrigá-los a entregar suas vidas, por apenas mais um segundo de
atraso no avanço das forças invasoras.
Os médicos trabalhavam sem descanso, precisavam
suturar, cortar, administrar remédios, trocar membros perdidos ali mesmo, em
meio a todo tipo de sujeira e obstáculos, além do risco deles mesmo serem
alvejados ou mortos.
Um garoto do seu lado direito, após ter
permissão do capitão para suas orações, rezava para Thor, um dos deuses que
estavam em voga na época, quando muitas pessoas, apavoradas com os sinais do
fim do mundo, haviam ressuscitado antigas religiões em busca de proteção
divina.
Boa parte do sangue desse mesmo jovem
esguichou sobre ele, conforme saíra da trincheira, tentando aproveitar uma
pausa nos disparos dos imensos tanques de guerra, mas que fora atingido por um
rifle de implosão.
Ainda assim o comandante seguiu em frente,
limpando o sangue que cobria seus olhos, conforme ele se aproximava de um dos
pesados veículos de guerra, conseguindo invadi-lo, matar o piloto e começar a
disparar contra os invasores.
Aquela batalha entraria para a história do
Brasil, criando a lenda do homem que, praticamente sozinho, impediu a principal
tentativa de invasão dos EUA.
Suas mãos seguravam os controles do tanque
com tanta força que os nós dos dedos ficavam até brancos, quando o líder
daquele batalhão de defesa ouviu às suas costas uma voz de criança.
- O senhor não é mesmo o Senhor Nicolau não
né?
XXX
A imagem de Shakty, toda coberta de sangue,
tanto que chegava a pingar de seu triciclo, foi o suficiente para fazer Enzo
despertar de um recorrente pesadelo que, para seu desânimo, muitas vezes
antecedia problemas.
O natal chegara e também passou, as ruas de
toda Tybaia foram enfeitadas com todo tipo de luz, pisca pisca, árvores e
imagens do Senhor Nicolau.
Enzo se perguntava se era possível ver
tanta luz até mesmo da Estação Espacial, mas ainda assim, tal feriado, normalmente
animado e aguardado, após a morte de sua última esposa e subsequente
afastamento dos filhos e netos já não significava muito para o velho.
Ele se levantou, o corpo dolorido como se
realmente estivesse de volta à guerra, torcendo para que nada demais
acontecesse e planejando ficar o dia inteiro em casa, aproveitando para passar
sozinho o dia de Natal, após conseguir com sucesso evitar todos os convites
para a ceia da noite anterior.
Ele mal havia tido seu prazer matinal no
banheiro e logo alguém praticamente esmurrava a porta da frente.
Torcendo para que não fosse Sora, numa nova
tentativa de reatarem, seria a quarta ou quinta desde que Enzo terminara o
relacionamento, ele seguiu desanimado até a entrada.
- Graças aos deuses o senhor está aqui! -
era Hallory que estava com lágrimas descendo pelo rosto, o desespero
escancarado como o velho nunca vira, nem achava ser possível, tal a força que a
médica sempre demonstrou e, sem cerimônia nenhuma, ela invadiu a casa. -
G3nntro! Você tá aí?! G3nntro!
Enzo se adiantou e, colocando as mãos nos
ombros da mulher, tentando ser o mais gentil possível, fez com que ela voltasse
seu olhar para o dele e, antes de conseguir fazer qualquer pergunta, ela
mergulhou o rosto no peito dele, o corpo tremendo violentamente a cada soluço
do choro que ela finalmente liberou.
- Se acalma Hallory… O G3nntro não tá aqui…
- ele afastou o rosto dela o suficiente para seus olhos se encontrarem. - Agora
respira fundo e me diz o que aconteceu.
Ela seguiu o que ele disse e, em meio a
fungadas do nariz, com voz trêmula e incerta, relatou tudo.
- Ele foi dormir feliz e ansioso… Hoje ele
ia vir aqui trazer um presente para você… Ele… Ele gosta muito do tio Enzo…
E-eu… Hoje de manhã fui no quarto dele, para ver se ele tinha gostado do
presente que o “Senhor Nicolau” tinha deixado lá… E… E…
- Foco. - o velho já se preparava para o
pior. - Respira mais uma vez e me conta o que você viu.
- O G3nntro tinha sumido! A cama tava
desfeita, os lençóis, cobertores, até o presente dele estavam jogados no chão e
a janela escancarada! Eu… Eu sempre tranco toda a casa… Me ajuda! Por favor!
Foi então que o velho Enzo sofreu uma
transformação como Hallory nunca tinha visto antes.
Ele fechou a cara, a boca estava tão
comprimida que parecia sumir no bigode branco, a cicatriz que atravessava seu
rosto, sinal da cirurgia que havia implantado seu olho mecânico, emitia um leve
brilho vermelho, conforme ele foi direto até um quarto nos fundos da casa.
A médica o seguiu, agora tomada por uma
curiosidade que quase, quase se equiparava, à preocupação com seu filho, pois
ver o velho em quem ela confiava o suficiente para cuidar de G3nntro, agindo
daquele modo, de algum jeito estranho, lhe enchia de esperanças.
- Retarda! Acesse o localizador Ômega G3…
Conforme a IA realizava seu pedido, o velho
Enzo, sem se importar com Hallory o seguindo, foi tirando a camiseta e
desativando os conectores de seu braço artificial, cuja cor imitava a pele humana,
deixando-o sobre uma mesa, como quem descarta algo sem valor nenhum.
Qualquer vendedor do mercado negro de peças
daria a vida da mãe por um braço daqueles.
Enzo então tocou, com sua mão de carne e
osso, um ponto na parede que brilhou em vermelho ao seu toque, abrindo um
compartimento secreto, que deixou à mostra o que ele havia ido buscar.
Um braço cibernético de combate, Modelo
Leviathan.
Esse não tinha coloração humana, mas tons
metálicos de cinza, cujos conectores fizeram o velho soltar um gemido baixo
quando se enterraram em suas bases.
Ele ergueu o braço metálico, abrindo e
fechando os dedos até que as sinapses de comando se ajustassem, pegou uma série
de pulseiras metálicas e as colocou por debaixo da luva que estava em sua mão
humana.
Vestiu, por fim uma jaqueta de couro,
acionou o sistema de suporte de vida, fazendo pequenos detalhes, antes cinzas,
emitirem um brilho azulado, o que ajudaria em caso de ferimentos mais pesados
ou mesmo fatais.
Assim que havia afivelado um cinto com
algumas bolsas nas laterais, que ele havia enchido de pequenos aparelhos, a
busca da IA deu um retorno.
“Encontrei.”
- Beleza Retarda, transfere os dados pro
meu implante mental, sobre no banco de trás da minha cabeça e vamos buscar as
crianças…
- Você colocou um rastreador no meu filho?
- Eu já vi como você ama aquele garoto…
Achou mesmo que eu ficaria de olho nele sem um meio de mantê-lo seguro a
qualquer custo? Eu sei o que mães furiosas são capazes de fazer pelos filhos…
Agora se você quiser me esperar aqui, ou na sua casa…
- Nem pensar. Eu vou com você.
- Hallory…
- “Eu sei o que mães furiosas são capazes
de fazer pelos filhos”…
- Certo. Voce tem o melhor dos pontos... Então
vamos lá… Por sorte o local é aqui perto, não vamos precisar do Mozão pra
chegar lá e ia demorar prá cacete para colocar os pneus de neve.
Poucos minutos de caminhada depois e logo
estavam diante de uma casa um pouco afastada das áreas mais habitadas daquele
setor.
Um círculo holográfico brilhava diante do
ciberolho de Enzo, se movendo de forma a passar para ele todos os dados da
construção à sua frente.
- Com certeza não estão dentro da casa…
Retarda, usa a eco localização e me diz o que tem abaixo dela.
“Iniciando scan do terreno...”
- Enquanto você vê isso eu vou avançar... -
vendo a expressão de sua companheira ele corrigiu. - Nós. Nós vamos avançar…
Enzo ergueu um pouco seu braço humano e uma
das pulseiras de metal se converteu numa pequena pistola laser.
- Sabe usar isso?
- Fiz um curso de sobrevivência e defesa
ano passado. - ela pegou a arma e a destravou como uma profissional “teatral
demais” Enzo pensou e, sem precisar dizer em voz alta, Hallory já dava uma
resposta. - Tá… Exagerei um pouco, mas pode ficar tranquilo… Não vou atirar em
você… Você… Sabe de quem é essa casa não é?
- Sim… Assim que o Retarda me passou a
localização eu pedi todos os detalhes sobre o terreno e o proprietário…
- Eu posso me comunicar com a Inteligência Artificial
mentalmente… Vocalizo algumas ordens apenas para o conforto de quem estiver por
perto… Coisa da época da Guerra... Certo… - Enzo pegou outra pulseira e fez
outra pistola, essa maior do que a que havia passado para a médica. - O Retarda
indicou uma grande construção subterrânea… É lá que as crianças devem estar.
Boa, Retarda, aproveita pra controlar os sistemas da casa e abre a porta quando
a gente chegar lá... Vamos Hallory.
Eles atravessaram o gramado, seguiram
direto para a porta da frente, que foi derrubada com um chute certeiro de Enzo,
que entrou primeiro, a pistola apontando rápido para todo os lados, preparado
para qualquer defesa que a casa pudesse ter.
Surpreendentemente nada se colocou entre
ele e a pesada porta que dava para a construção subterrânea, alcançada
rapidamente após uma descida de alguns lances de escada, o que apenas servia
para deixá-lo mais e mais apreensivo.
- Retarda… - de repente um grito de criança
pode ser ouvido. - Abre agora!
A pesada porta de metal rangeu alto
conforme deslizou para o lado e, assim que houve espaço suficiente, demonstrando
uma agilidade incomum para alguém de sua idade, Enzo saltou para dentro,
apontando sua arma.
- Se afasta das crianças… Noah…
- Mas é claro senhor… Enzo Hammer… Sabe, eu
devia ter feito a ligação… Desculpe se não bato continência… Comandante... -
atrás dele as crianças se mantinham encolhidas dentro de uma jaula de barras
eletrificadas. - Vamos lá criançada.. Saudemos nosso grande herói de guerra!
- E também uma lenda viva… Não se
menospreze canalha... - ignorando as provocações, Enzo mantinha o inimigo na
mira de sua arma, com Hallory grudada às suas costas, os olhos cheios de
lágrimas olhando para seu filho. - O Colecionador
de Orelhas… Foi uma das suas alcunhas na guerra não é?
Noah se curvou de forma exagerada como um
ator recebendo aplausos de uma grande plateia.
- Eu me rendo à sua perspicácia… Mas eu
consegui me manter longe dos caçadores de recompensa por todos esses anos… Como
foi que você me achou nesse fim de mundo? E pior… Ficou me provocando, tirando
meus clientes, praticamente me forçando a me expor… Justo eu que tenho sido tão
discreto nas minhas… Escapulidas…
Sem tirar o foco do inimigo, com o canto
dos olhos Enzo via vários frascos cheios com um líquido azulado, usado para
impedir a deterioração do que havia lá dentro.
Orelhas.
Pior ainda, pelo tamanho, orelhas de
crianças.
- Desgraçado! - Hallory percebeu o mesmo
que Enzo, mas sem o controle militar que ele possuía, ela resolveu sair de trás
do velho, arma em punho, disparando contra o assassino que havia aprisionado
seu filho. - Morre!
Antes que Enzo pudesse impedi-la, Noah
cobriu os metros que o separavam da médica, desviou com facilidade dos
disparos, a desarmou, usando um bisturi de lâmina laser e, com um soco violento
a jogou longe, que acabou caindo no chão sem sentidos.
O assassino não perdeu o ritmo avançando
contra Enzo que, apesar do que estava acontecendo, para maior irritação de Noah,
não mudava sua fisionomia e nem tentou se desviar do ataque.
A lâmina do bisturi se enterrou no
antebraço metálico e antes do vilão conseguir puxar de volta sua arma, sentiu o
cano da pistola encostando no seu abdômen.
O disparo laser chegou a queimar a pele de
Noah, que saltou para longe no último instante, acabando por ser atingido de
raspão.
Com fagulhas escapando pelo corte, Enzo retirou
o bisturi, agora com a lâmina de energia desligada e jogou-o longe, pediu para
que sua IA agilizasse o reparo do corte.
Noah pegou então um facão que, ao ter um
botão acionado, fez a lâmina se incandescer, assumindo uma coloração vermelha,
conforme a temperatura da lâmina ia atingindo um calor absurdo.
- Foi graças a minha velocidade que fiz
miséria durante a guerra, quando desenvolvi o gosto por carne humana e pelos
meus “prêmios”… Me ajudou também para pegar meus… “Pequeninos”… Praticamente
debaixo dos narizes de seus pais… Não me odeie senhor Hammer, você, mais do que
ninguém, tem que entender como a guerra nos transforma… Como podemos virar
monstros e…
- Chupa essa… - aproveitando que a atenção
do vilão estava toda em seu companheiro, Hallory conseguiu chegar até a jaula
onde as crianças estavam presas, retirou o cabo que alimentava as barras de
energia e o jogou na direção de Noah. - Monstro!
A ponta do cabo praticamente se enterrou na
pele do braço de Noah, conforme seu corpo tremia descontroladamente devido à
eletricidade que o percorria.
Era exatamente do que Enzo precisava.
Com disparos precisos, os braços e pernas
de Noah foram atingidos, separando-o do cabo de energia, e ficando caído a
metros de distância sem conseguir se mover.
Enzo ajudou Hallory a soltar todas as
crianças, muitas abraçaram seus salvadores antes do velho pedir para que a
médica as levasse dali e chamasse seus pais.
- Eu já alcanço vocês… - quando ficaram
sozinhos Enzo se aproximou do inimigo caído e paralisado. - Então você passou
esse tempo todo caçando crianças não é seu demente…
- Nós… No-nós… Somos animais… - com o corpo
ainda fumegante, Noah tentava argumentar. - Animais… I-iguais…
- Somos sim…
Enzo se ergueu, pegou várias chapas de
metal que estavam jogadas pelo local, empilhando-os ao redor do assassino,
deixando-o totalmente coberto.
Só então o velho apertou alguns comandos no
pulso do braço cibernético, distribuindo assim várias pequenas esferas de metal
pelo ar, que se prenderam em pontos certeiros nas paredes do esconderijo e
começavam a emitir brilhos vermelhos ritmados.
- Essa proteção vai mantê-lo vivo por um
tempinho… Sua morte será lenta e dolorosa... Aproveite, desgraçado… Somos
animais sim… Mas iguais? Nunca.
Ignorando os grunhidos do assassino
conhecido como Colecionador de Orelhas, Enzo saiu do esconderijo se encontrando
com os demais moradores, muitos haviam acabado de chegar e já estavam abraçados
aos filhos raptados, agradecendo a ele e Hallory com lágrimas de felicidade nos
olhos.
- Muito bom Velho Enzo… - era Jaklyn quem chegava, o oficial chefe da
Gran Polizia, a força da lei
privatizada, que respondia à Paradiso
3000, a Megaempresa que coordenava Nuova Speranza, indicado para cuidar do
bairro de Tybaia. - Fico feliz por você ter conseguido salvar os pequenos,
mesmo preferindo que tivesse nos avisado e…
O som abafado de explosões chegou ao grupo,
que viu a casa do homem que todos conheciam como Noah, implodir e praticamente
sumir numa cratera.
- De nada…
Enzo deu algumas batidinhas no ombro do
policial e foi direto para sua casa.
Durante cerca de duas semanas ele pouco
teve contato com outros moradores do setor, além de Hallory e G3nntro,
esperando que alguma autoridade maior viesse questioná-lo, mas ao final de um
mês ninguém apareceu.
Janeiro estava começando, o frio continuava
intenso, mas, ainda assim, Enzo havia retomado sua rotina e numa manhã, debaixo
de um tímido sol, enquanto ele mexia no motor do Mozão, sentiu uma conhecida
presença atrás de si.
Ele se voltou para Shakty, que abria a boca
para fazer sua pergunta típica, mesmo que Dezembro já tivesse terminado.
- Ho! Ho! Ho!
A menina ficou parada por alguns instantes,
boquiaberta, mas logo se recuperou e acelerou seu triciclo ao máximo, indo
contar a seus amiguinhos que recebera a prova final a respeito da identidade do
Senhor Nicolau.
O Velho Enzo sorriu e voltou seu olhar para
o céu.
Sua vida havia sido difícil até ali, mas
ele realmente começava a ter esperança de se sentir parte de um lugar, quem
sabe, com muita sorte, poder aproveitar seus últimos anos em paz.
Mal sabia da tempestade que se aproximava.
Fim.
Galeria de Imagens.
Enzo Hammer.
6 Comentários
Norberto
ResponderExcluirUm excelente capítulo de introdução.
Um capítulo caprichado e primoroso!
Bem ao seu estilo!
Enzo Hammer, um ex-combatente que venceu a invasão americana e ex mercenário, transformado num ser humano reconstruído vivendo numa sociedade totalmente diferente da qual estamos habituados, num cenário futurista muito bem tracejado por seu talento.
Logo de cara , encara um assassino frio e monstruoso .
Gostei da menção a Atibaia e da transformação da megalópole nacional em Nuova Esperanza.
Agora é aguardar os próximos capítulos e as postagens dos demais autores para uma tomada de decisão minha em entrar nessa trama, com um personagem que conversamos no zap.
Já tenho um esboço do que pretendo, mas aguardemos o desenrolar de alguns capitulos .
Parabéns!
Muito obrigado pela leitura comentário ebincebtivo de sempre amigo!
ExcluirAssim que a ideia do Mindstorm 3000 surgiu eu decidi que faria o especial de Natal dentro desse universo e depois de definir como é quem seria o Enzo Hammer eu comecei a escrever e em apenas dois dias esse one shot estava pronto, algo que a muitos anos eu não fazia..
Esse cenário está apenas dando seus primeiros passos, é algo que será definido e usado, se os incríveis escritores do Mindstorm quiserem, por muito, muito tempo, afinal de contas, nessa história arranhei a criação de Nueva Speranza e detalhes pouco de Tybaia... São dois lugares que podem ser muito mais explorados e são, literalmente, dois grãos de areia na imensa "praia" que é o cenário Mindstorm 3000.
Sobre o personagem que conversamos no zap tenho algumas ideias para te apresentar e em breve, assim que elas estiverem maos sólidas falarei contigo... Aguarde e confie.
Valeu mesmo de coração pelo comentário!
Caramba... EU achei que o Enzo ia ser porrada, mas não achei que fosse ser tanto... Que bela história cara, eu esperava envolvimento com a polícia, gangues, arruaceiros querendo destruir o bairro ou similar, mas tu de novo me surpreendeu e conseguiu chocar, trazendo uma trama envolvendo crianças, crianças prontas para serem devoradas... Cara, que tenso! E o mais legal é que quando ele soube que a criança havia sido sequestrada, eu pude sentir os sentimentos dele mudar, a forma como "entrou em DEFCON" rapidinho e sabiamente se preparou para o combate! O braço mecânico foi algo que eu adorei, simplesmente ficou muito bem aproveitado além da história do velho Enzo que trouxe muito embasamento para o que ele é hoje! Cara, fantástico, muito bom, curti pra caramba, as pulseiras, os sistemas IA, robôs plantadores, muito show de bola, ficou perfeito, parabéns meu amigo!! \0/
ResponderExcluirGrande Lanthys! Valeu mesmo pela leitura e o comentário!
ExcluirVendo os comentários, essa história, como eu já havia comentado, ficou muito mais ficção cient[ifica, muito mais cyber, do que punk, onde caberiam os detalhes que você citou, mas eis que, com esse comentário, muitas portas de ideias se abriram e logo terei novidades.
Sobre a história em si, eu quis mostrar um personagem um pouco diferente, velho e ranzinza, mal humorado, mas quando ele viu que o garoto estava em perigo, ai entrou em modo Tool Box total.
Quis mostrar um cara que, quando tá em paz, só quer ficar quieto na dele, mas se mexem com algo que ele ama, aí se prepare prá guerra.
Se gostou do Velho Enzo, prepare-se para o que estou planejando, tanto para ele quanto para as tecnologias malucas em que ando pensando.
Valeu mesmo pelo comentário amigão!
Eita! Enzo Hammer já é meu heroi favorito desse universo CyberPunk compartilhado. A historia parecia um pouco parada no início, mas depois que as coisas vão se acertando e as coincidencias vão se explicando, a leitura vai fluindo e a gente acaba submergindo a situação. Mesmo carrancudo, com seus próprios traumas de guerra, Enzo é uma boa pessoa, e boas pessoas não ficam paradas no momento de ajudar outras que precisam, e foi isso que eu vi nessa historia. Aqui, eu tive mais detalhes ainda de como me situar para escrever a minha parte nesse exercicio compartilhado.
ResponderExcluirAgora eu quero acompanhar a jornada desse velhinho ai rsrs!! Espero que tenham mais historias sobre ele, e que não pare por aqui!
Parabnéns pelo texto Norb!!
Opa! Brigadão pelo tempo prá leitura e pelo comentário meu amigo!
ExcluirEstou muito feliz pelo Enzo estar agradando.
O começo foi um pouco mais lento para mostrar as tecnologias e situar o leitor de que o mundo é outro, outro tempo, não os dias de hoje, fora dar aquela humanizada no personagem, antes de partir para a ação e não ação gratuita, mas com certo embasamento.
No fundo o Enzo é um vovozão velhaco e gente boa, como eu disse pro Lanthys, um cara que quer a paz, mas pronto para a guerra.
Estou ansioso pelas histórias dos demais escritores, obviamente, a sua inclusive.
O Enzo vai aparecer mais sim... pode apostar um Olho biônico da Cybereye 3000... hehehehe
Valeu mesmo pelo comentário amigo!