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SPECTRUM- EX: OBSESSORES - PARTE I

 

Obsessores

Por Jeremias Alves Pires - Arte Kiko Mauriz



Parte I: “Perdas e Apego”

Miguel estava apaixonado. Perdidamente apaixonado. Sempre esteve. Era muito pequeno quando os pais deixaram Maceió para tentar a vida em São Paulo. Todos zombavam do sotaque arrastado, das roupas simples, menos a filha da vizinha. Flor, esse era o seu nome. Miguel tinha forte na alma o dia em que ela se sentou ao seu lado na calçada enquanto chorava. Não tinham mais do que oito anos.

- Não chora, eu fico triste quando vejo você chorando... Você quer ser meu amigo?

- Quero... Qual é o seu nome?

- Flor...

Miguel riu. Flor sorriu de volta.

- Flor?

- É estranho, não é? Qual o seu?

- Miguel...

- Miguel... Que nem anjo... Meu anjo...

- Você quer brincar?

- Demorou...

Flor pegou a mão de Miguel e nunca mais largou. Tornaram-se inseparáveis, mesmo nos dias em que brigavam feito cão e gato. Chegaram a se casar, sem ter muita idéia do que estavam fazendo, ou do que estavam sentindo.

O tempo passou. A brincadeira e a promessa se perderam. Miguel nada mais tinha haver com o menino gordinho e tímido. Naturalmente perdeu o sotaque, mas tinha orgulho das origens, do pai pedreiro e da mãe faxineira. Vaidoso.  Apesar das roupas simples, estava sempre bem ajeitado, cabelos negros penteados para trás, olhos castanhos perigosos para as desavisadas. O corpo era definido por conta do trabalho duro ao lado do pai, assim como a pele bronzeada. As “patricinhas” não resistiam. As magoas das zombarias do passado, faziam Miguel as conquistar num dia e deixar no outro. Não notava que retalhava a alma da pobre Flor. Não notava que ela também havia crescido e se tornado também muito bela. Olhos claros do tom triste dos amores não correspondidos, cabelos cor de ouro, lábios rosados. Exagerava nos vestidos curtos, quem sabe ele poderia notar? Perceber que ela também era linda. Ele ria...

- Eita... Não é que a minha galega virou periguete...

- Vai se ferrar idiota...

Ela chorava. Saia correndo. Miguel corria atrás. Dava-lhe um abraço forte.

- Brincadeira, sua boba... Você é linda, um dia alguém vai ter muita sorte...

A frase doía, doía bem lá no fundo. Mesmo assim, Flor não o largava. Apertava bem forte. Soluçava no peito de Miguel. Isso aconteceu muitas vezes.

Certo dia o abraço durou tempo demais. A magia do luar, o frio da noite, o toque da pele, fizeram vir à tona um desejo enlouquecido, descontrolado. Tantas bocas, tantos beijos, nenhum se comparava com aquele. Foi como uma corrente elétrica percorrendo cada milímetro da alma de Miguel. Ele a soltou...

-Não posso... Não posso fazer isso com você... Você não é como as outras...

- Como assim? Você prefere aquelas vadiazinhas? É isso?

- Calma... Você não entendeu...

- Você é um babaca!!! Eu te odeio!!!

- Flor, cuidado!!!!

Daquele momento em diante, todas as noites Miguel reviveria aquele momento. O som dos freios. O corpo de Flor voando. Caindo já sem vida. O desespero daquele instante o marcaria por toda a eternidade...

Miguel apagou para a vida. Vivia isolado. Exagerava na bebida. Nada tirava dele aquela solidão doida. Uma noite ele a ouviu chamar.

- Miguel... Meu Anjo... Não chora... Fico triste quando você chora...

- Flor... Não vai... Fica... Fica!!!

Aos poucos, a imagem translúcida da garota de olhar triste se desfez no ar. Não era sonho, nem a bebida. Flor queria falar com ele. Não tinha dúvidas. Daquele dia em diante jurava que podia sentir a presença dela junto a ele. Miguel tornou-se obcecado pelo sobrenatural...

O tempo foi passando. Miguel não notava. Estava preso a sua dor. Tornou-se desleixado. Isolado. Leu tudo o que podia sobre fantasmas. Acabou ficando confuso. Cada um dizia uma coisa. A mãe de Miguel era religiosa, o pai não. Foi a médicos que receitaram remédios para depressão, a benzedeiras e por fim a um médium. Um cara chato, insensível, cruel... Disse o que Miguel não queria ouvir. O tal se chamava Leon, tinha aparência européia e por volta de uns quarenta e cinco anos.

- Meu filho, você precisa deixá-la partir! Precisa se perdoar! Seu sofrimento a mantém presa a esse mundo...

- Você quer que eu a esqueça? Impossível...

- Concordo. Ela sempre vai estar no seu coração. Mas você vai ter aprender a seguir em frente, pra que ela possa fazer o mesmo. Deixe-a ir...

Miguel não entendeu a própria reação. Levantou-se furioso. Não parava de chorar. Bateu a porta com toda sua força. Quando deu por si, estava no bar. Acordou na rua, sem fazer idéia de onde estava. A coisa piorou. Não estudava mais. Não trabalhava mais com o pai. Seu Severino brigava com ele violentamente, estava desesperado, não sabia o que fazer. Dona Josefa apenas chorava e orava.

- Já chega!!! Se você quer beber vai ser com seu dinheiro... Vagabundo... Anda parecendo um mendigo... Você vai tomar jeito...

- Não!!! Para!!!

Severino não ouviu a esposa. Não tinha como. Esbofeteou e socou até não agüentar mais. Não era ele, apenas o desespero.  Quando a agressão parou, Miguel quase sem rosto sussurrou.

- Não para... Me mata...

- Como é que é?

- Eu não agüento mais... Por favor... Eu quero ficar com ela... Me leva pra junto dela...

Severino era um homem duro. Um bom homem, mas era do tipo severo, daqueles que achava que o homem tinha de ser feito de aço. Naquele dia desabou. Abraçou o filho com toda sua força e chorou feito criança.

- E eu? Faço o que sem você? Responde!!! Eu vivo como sem você? Eu te amo... Seu porra...

Miguel estava chocado. O homem que o estava abraçando, não era o pai que ele conhecia. Forte. Pilar da casa. Seu porto seguro. O herói do menino que ele foi um dia. O cara com quem tinha orgulho de pegar no batente. Ele estava completamente destruído. A mãe se juntou ao abraço, não tinha condições de falar, apenas chorava. Miguel finalmente percebeu que não estava afundando sozinho, estava levando toda sua família. Não era justo. Estava sendo egoísta.

Os machucados da surra foram sarando. Largou a bebida, voltou para escola e a trabalhar com o pai. A dor ainda estava lá, mas aprendeu a por uma máscara. Aprendeu a sorrir sem querer. Só falava bobagens e não levava nada a sério. Chorar apenas a noite, quando ninguém estava olhando. Voltou a andar bem arrumado.

- O que você achou? Estou bonitão? Você sempre gostou dessa camiseta...

A mãe passou pelo quarto e achou o comportamento do filho muito estranho.

- Filho, com quem você está falando?

- Com ninguém, mãe... Tenho que ir, o pai está esperando...

Miguel abraçou a mãe e partiu. Perguntou-se se ela havia acreditado. A verdade é que falava com Flor quase o tempo todo. A presença dela continuava forte, mais do que nunca...

Continua...

7 Comentários

  1. Jeremias!

    Que bom ler uma obra sua!

    Uma narrativa dramática, densa e bem realista.

    A dor de Miguel pela partida precoce de Flor , a mulher que não soube valorizar, machucou o seu coração a ponto de se largar.

    Essa perda acabou gerando uma obsessão espiritual.


    São temas delicados, polêmicos,tratados com muita propriedade por você!


    Que você não pare de escrever!

    Escrever faz bem pra alma!!!


    Parabéns!!!

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  2. Seja bem vindo ao Mindstorm meu amigo!
    Uma estreia fodastica.
    Quando li esse seu texto, que peguei pelo Facebook, a narrativa me pegou de primeira.
    Personagens extremamente bem construídos, cenas bem descritas, realmente tu manda muito bem.
    Esse início trágico e terrível foi muito bem desenhado, você sente a angústia da Flor, bem como toda dor que o Miguel sente, de imediato a gente se pega se importando muito com os personagens...
    Meus parabéns, pelo ótimo capítulo inicial e pela estreia!

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  3. Grande Jeremias. Tudo bem cara? Primeiramente, deixa eu te dar os parabéns pela estreia. Seja bem-vindo e conte comigo para o que precisar.

    Agora vamos ao seu texto.

    Cara, quando eu comecei a ler, eu já percebi uma pegada completamente diferente no estilo de narrativa, de tudo que temos por aqui. Eu me vi a princípio, ao ler, vendo aqueles filmes da globo filmes que são gravados no norte e nordeste do pais, com construções de cenas completamente voltadas ao poético nordestino e a primeira pergunta que me veio a mente foi: Como isso se alinha com a imagem de capa que já tinha chamado minha atenção? Então o texto seguiu e a Flor morreu, e ai meu camarada, foi aqui que seu texto me ganhou, pois eu consegui ficar preso a dor, sofrimento e desespero do personagem que perdeu tudo que tinha, que perdeu a vontade de viver, que literalmente desistiu, a ponto de implorar ao próprio pai que lhe findasse a vida, para que ele pudesse estar com a amada. Eu me emocionei nesse momento e muitos aqui sabem o quanto eu gosto de ter sentimentos despertados quando leio, sejam eles de tristeza, raiva, alegria ou simplesmente conforto por uma leitura calma e gostosa. Aqui eu posso dizer que os sentimentos despertados foram tristeza, dor, desespero pelo personagem.

    Ao que me parece, a jornada do personagem começa a partir do momento que ele volta a viver, ainda que para ele seja um esforço sem tamanho pelos pais que ele ama. Então, a impressão do começo ainda se mantêm. Como essa história vai se alinhar a história que sua imagem de capa vende? Essa é a minha maior curiosidade e o que acaba de me prender a sua série.

    Um ótimo começo e um grande texto. Seja muito, mas muito bem-vindo ao Mindstorm!

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  4. Sinceramente, inesperado, inusitado, surpreendente e muito, muito bom! Primeiro de tudo, minhas boas vindas ao grupo MindStorm, espero que possa se divertir e ter grandes retornos com suas obras por aqui! O espaço é legal, sei que sou suspeito pra falar, mas, é um ambiente onde postamos e temos retorno e isso é de uma satisfação gigante pra quem escreve, por isso, espero que curta também! Vamos ao episódio em si:

    Cara, primeiro de tudo, Rodrigo tá certo, a saga começa de uma forma que lembra muito o estilo de filmes e mini séries passadas no nordeste, com o estilo calmo e entoado que faz a gente crer que estão sempre cantando mesmo quando conversam, parece sempre uma trova ao invés de fala, e isso foi bem legal e bem diferenciado!

    Depois disso, temos o início da união entre o Miguel e a Flor e aí, mais ainda me lembro de histórias e acontecimentos narrados no nordeste, se bem que o acontecimento entre os dois, também é familiar pra mim pois aconteceu comigo, apenas com idade diferente... Eu era adolescente, tinha tomado um fora de alguém que eu acreditava gostar muito e minha atual esposa, que morava na esquina da onde sentei na calçada pra curtir a fossa pelo fim, chegou do meu lado e perguntou se podia sentar pra conversar comigo, eu aceitei de boas e isso foi em 1992 e até hoje estamos juntos... Um ato dela, me ligou a ela pelo resto da vida, então, eu compreendo e muito, o sentimento do Miguel para com tal acontecimento, pois o momento é intenso, poderoso, chega na hora que tu mais precisa, é como se fosse realmente a ajuda que tu implora pra surgir nos piores momentos! Muito show essa parte!

    Depois, errei na forma como li e achei que o tempo tinha avançado, que eles tinham casado de verdade e se separado depois, levei um tempinho pra ver que eu tinha lido errado e que o casamento foi de mentira, uma brincadeira como o texto cita e então eu consegui cair na trama de novo e cara, os sentimentos da juventude, da mina que tu curte e que é teu sonho mas tu acha que ela é muita areia pro teu caminhão... Tu sente as diretas dela, mas acredita que tu tá vendo chifre em cabeça de cavalo e vai deixando passar... Infelizmente pro Miguel, ele não teve segunda chance, e essa cena, cara, como ela me detonou... Eu fiquei do outro lado aqui assim, carai... A Flor foi atropelada, não creio nisso... E não teve jeito, a personagem que achei, seria integrante da trama, foi dessa pra melhor sem chances...

    Aqui neste ponto, abro mais uma ressalva de experiência pessoal, um amigo muito próximo meu, era apaixonado por uma mina, mas não dava a devida atenção... Ela tinha vários problemas e vícios por conta da depressão mas se amavam e então, um dia eles discutiram por conta dos vícios dela, ficaram 15 dias sem se falar e em uma manhã de terça ela manda mensagem pelo zap... Ele olha, ignora porque não ia dar o braço a torcer e o que recebeu à tardinha foi a notícia de que ela tinha se suicidado, pouco depois das 13hs... POdem imaginar como tem sido os três anos desde a morte dela pra esse amigo meu e eu tenho acompanhado ele de perto, tentou o suicídio também pra ficar junto dela e felizmente conseguimos impedir... Ou seja, todo o trauma e dor que o Miguel viveu, eu não vivenciei na pele, mas, acompanhei um amigo muito querido de perto nesse sofrimento e cara, que narrativa perfeita, a cena dele com o pai pedindo pra morrer e o pai alegando como viveria sem ele, cara, que tenso, que narrativa forte e envolvente...

    Continua...

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    1. Uma última ressalva sobre o conselho do médium... Dificilmente vejo textos compatíveis de médiuns com respostas que concordam com meu ponto de vista e cara, me senti na pele do Leon sendo o chato, insensível e cruel pois eu tive de dizer essas mesmas palavras ao meu amigo sobre a amada dele, então tipo, eu nunca tinha me sentido tão dentro de um texto como me senti agora, teu texto me relembrou muitas coisas da minha vida, tanto de tempos passado quanto de agora...

      Sinceramente tô realmente impactado e muito curioso com o que vem pela frente, ainda mais que me parece que Miguel desenvolveu mediunidade e consegue ver ou sentir ou ouvi a Flor junto dele... Não sei se é por esse lado que tu vai conduzir a trama mas considerando Spectrum-X como nome e a ligação dele com o sobrenatural, talvez, só talvez, tenhamos um caçador de espíritos obsessores, atuando no lado físico e no lado espiritual dos planos de existência o que seria, algo realmente inovador e que eu iria curtir e muito!

      Meu velho, meus parabéns, sinceramente excelente capítulo, excelente narrativa e maravilhoso tema que tu abordou, fico na expectativa de poder continuar à ler, meus parabéns pelo trabalho incrível! \0/

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  5. Prezado Jeremias,

    Seja bem vindo ao Mindstorm... O nome da série é Spectrum? E isso? Obsessores e o título do ep? Desculpe a pergunta... E pq muitas vezes colocamos o nome da série já no título da postagem. Eu acabei me confundindo.

    Quero parabenizar pela capacidade ímpar de tratar de espiritismo sem pieguismo e de um modo bacana e honesto.

    Sua.narrativa é pragmática e clara. Gostei.

    Essa foi uma das melhores estreias de todos os tempos aqui no Mindstorm.

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  6. Jeremias,
    ótima estreia aki no Mind. Já conheço Obsessores e falta pouco pra terminar o material que baixei no facebook.
    Esse capitulo me assombra essa fixação que o Miguel tem pela Flor principalmente depois que ela morreu. Acompanhando aki noto que vc curte a narrativa em ecos e rimas narrativas... cada coisa que acontece aqui reverbera mais adiante como uma pedra que cai num lago... parabens... Seja bem vindo ao Mindstorm!

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