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A Profecia - Capítulo 1



Floresta de Yuir


    A floresta mudava à sua volta conforme a jovem druida avançava, deixando para trás, a cada passo, a velha cabana que durante dezesseis anos fora seu lar. Com o objetivo de encontrar o irmão de sua avó de criação, um irmão druida, Draxx, no mar oposto, seu destino era a cidade litorânea ao sul onde com certa frequência Kai e a avó vendiam poções, pomadas e unguentos. Com Xena ao seu lado, a viagem era tranquila naquela manhã, mesmo que fosse a primeira metade do inverno, o clima era agradável na Floresta de Yuir com o céu claro e o frio gentil, apesar da floresta densa, as árvores sem folhas não projetavam tanta sombra, deixando o toque do sol confortável na pele da moça.

    Xena caminhava rapidamente pelo chão de terra recortado por raízes, com suas quatro patas, ia à frente, ficava alguns passos para trás, caçava algum animal pequeno dali alguns metros sem capturar a presa, apenas pela diversão de correr atrás de algo. Com o sol subindo no céu, o espaço no estômago crescia, era hora de procurar algumas frutas para compor o almoço e complementar a comida fria e seca das rações de viagem que faziam parte do equipamento de todo viajante, especialmente aventureiros.

    Ela era uma aventureira agora? Simples assim, basta sair em uma aventura? Ela estava em uma aventura? Não sabia dizer e pouco importava, não mudaria quem era nem o que precisava fazer. Absorta nos próprios questionamentos e conversando com Xena, não que ela pudesse responder com palavras, levou longos minutos até perceber que havia algo errado, de todas as árvores e arbustos que verificou, apenas uma tinha frutos bons, da qual arrancou apenas um, para deixar para outros animais. Encontrou algumas nozes, mas quando as comeu viu que estavam estragadas, as nozes recém colhidas, outra coisa chamou sua atenção: em algumas árvores estava crescendo mofo nos lados leste e norte, onde mais deveria pegar sol. Por maior que fosse a umidade do inverno, não deveria chegar a tal ponto. O tio ficaria para depois, a floresta vinha em primeiro lugar, pois antes de tudo, a floresta também era sua casa. A floresta era seu lar. A floresta foi onde aprendeu sobre as plantas, sobre os animais, sobre o ciclo natural, a usar ervas para fazer remédios e venenos, mesmo que pouco gostasse deste último. Foi onde aprendeu sobre Mielikki e estabeleceu seu vínculo com Xena, e com a natureza. Cresceu junto com cada uma das árvores que via, a floresta era repleta de memórias com sua avó, e precisava de ajuda.

    Decidida e empertigada, Kai agora procurava ativamente por outros sinais que pudessem lhe indicar o que havia de errado em sua casa, e a única pista que tinha era a direção em que o mofo crescia nas árvores, então prontamente se direcionou para lá. Demorou pouco até começar a encontrar cogumelos crescendo ao longo das árvores, não apenas em seus pés, em amontoados de folhas úmidas, debaixo de pedras ou troncos caídos, e Xena sentiu primeiro com seu olfato apurado, chamando atenção da humana, um cheiro sutil permeava o ar: algo podre, pequeno e sutil, mas com certeza era pútrido. Andou por mais um tempo à procura de algo decisivo, da fonte daquela força não natural, o dia passou rápido e em não muito tempo o sol se poria. Estava ficando desesperada por não saber o que fazer, queria voltar para a cabana e perguntar a vó como parar isso, mas não a tinha, ela não estaria lá, não mais, nunca mais, tudo que tinha era Xena e a própria floresta. Precisou várias respirações longas para se acalmar, usou esse tempo para estender sua conexão com a natureza à cada árvore, cada grama e animal à sua volta. Procurou com este outro sentido um ser que pudesse lhe ajudar:

    - Falem comigo. – disse a jovem, inspirou fundo mais uma vez e continuou, concentrada em sua conexão – Por favor, me ajudem a entender o que se passa com vocês para que eu possa lhes ajudar!

    A resposta veio com uma mulher saindo da nogueira logo à sua frente como alguém emerge à superfície de um lago. Com folhas esmaecidas da árvore ao longo do cabelo castanho, olhos castanhos profundos, rosto fino com alguns cogumelos crescendo do lado esquerdo, casca de nogueira cobrindo-a da cintura para baixo e o braço esquerdo mofado.

    - Também não sabemos o acontece... – a dríade falava com voz fraca – Sei dizer apenas que isto vem da parte mais antiga da floresta, mas o Sabugueiro deveria estar lá cuidando de nós... Há algumas semanas estas coisas começaram a crescer em nós e comecei a me sentir fraca...

    - Por Mielikki – Kai lentamente aproximou a mão do braço da dríade, esperando para ver se ela permitiria seu toque e gentilmente removeu dali o mofo que saía como a pele descamando com facilidade – Vou descobrir o que está causando isso, e pará-lo!

    A floresta antiga não era a região com a qual tinha mais familiaridade, mas a conhecia, conhecia o Sabugueiro Chora-Sangue e acima de tudo, era uma druída e esta era sua floresta, então perguntou à Nogueira onde o encontraria apenas para não perder tempo. Partiu imediatamente ao que a dríade lhe indicou o caminho, rumo ao leste e ao coração da floresta. O cheiro pútrido ficava mais forte a cada metro que avançada, em cada árvore havia mais mofo do que na anterior, todas estavam doentes e a doença de cada uma delas doía em seu coração uma filha febril que não sara. Caminhou algumas horas até chegar perto de um pequeno corpo d’água, uma bacia não maior do que três cavalos em fila, criado pelo riacho que corria até ali vindo do norte, alguns arbustos beiravam a estrada e a bacia, pensou ter ouvido barulho de algo se movendo e parou no mesmo instante, Xena respondendo à suas emoções através do vínculo, estacou e ergueu as orelhas, aguçando os sentido à procura de ameaças de sua própria maneira. Quando se perguntava se teria apenas ouvido coisas, as folhas do arbusto se moveram. Kai em um reflexo sacou sua funda e já carregou nela uma pedra, pois poderia ser um animal inofensivo ali escondido, mas também poderia ser um animal ameaçador, ou uma besta mágica. Pensando nos perigos, atirou uma pedra sem força em direção ao arbusto, apenas para tirar de seu esconderijo, o que ali estivesse. Sua tentativa foi bem sucedida, para seu azar, porque dali saiu uma centopeia gigante, acompanhada por outras duas que estavam escondidas nos arredores e também se mostraram, cada uma tinha mais de um metro de comprimento, vencendo facilmente o tamanho de sua cachorra, os insetos gigantes se preparam para avançar, mas Kai já tinha outra pedra em sua funda, após algumas giradas no ar, a arremessou dessa vez com toda técnica e força que adquiriu em suas práticas. A pedra atingiu a carapaça de uma das criaturas, causando pouco dano, não tinha esperanças de acabar com elas em apenas um golpe, mas gostaria de um acerto melhor, de qualquer maneira, recuou alguns passos e comandou Xena a fazer o mesmo, porque os insetos agora vinham em sua direção com suas dezenas de patas farfalhando enquanto cobriam a distância com rapidez, apenas um deles conseguiu se aproximar o suficiente, ergueu parte de seu corpo, ficando com a cabeça na altura da cintura da druida e agitou as quelíceras na direção da presa, por pouco rasgando sua calça e a pele da coxa. O combate prosseguiu neste mesmo ritmo, com Kai lançando pedras e recuando, mantendo sua companheira sempre atrás, não poderia arriscar machuca-la, não poderia arriscar que ela se ferisse, não poderia perder outro membro da família, não poderia se perdoar, as centopeias monstruosas atacando com suas quelíceras e tentando se enroscar. Levou poucos segundos para que a jovem sentisse o efeito do arranhão do primeiro ataque, a área ao redor queimava e a dor se espalhava, sua perna ficou levemente mais lenta, o arremesso da funda um pouco menos preciso. Se levasse outro golpe das criaturas, teria problemas. Conseguiu tomar fôlego quando um arremesso de sorte afundou a carapaça do primeiro inseto, quebrando patas, quelíceras e seu exoesqueleto, o combate não acabara, mas era mais fácil evitar dois ataques do que três, e assim, com outros poucos ataques, alguns acertando à esmo, alguns causando pouco dano, o conflito se encerrou com a druida tendo sofrido apenas um arranhão, e sua preciosa cachorra ilesa, mas a dor se espalhando tornava seus movimentos lentos, precisava de cuidados antes de enfrentar outros perigos.

    Sabia que os insetos eram venenosos, mas precisava ter certeza e identificar o tipo de veneno que sem dúvidas corria em seu corpo, invocou o poder da natureza e o moldou, com o pensamento, sobre si mesma à identificar as toxinas. Utilizando a magia não teve dificuldades, como esperava encontrou o veneno correndo por suas veias a partir do ferimento na coxa, trazendo uma letargia, era uma espécie de paralisia, um tanto fraca, a centopeia devia esperar reduzir a mobilidade de sua presa para facilitar se enroscar e esmagá-la. Segundo seu conhecimento de herborista, precisava encontrar algumas Folha-Azul, X e Y, encontrou todas em alguns minutos procurando na área em que estava, reuniu todas em uma pequena tigela que carregava e macerou, misturando um pouco de saliva. Lavou o ferimento na água da pequena bacia e aplicou o preparado de ervas. O que a druida não sabia, talvez por sua inexperiência, talvez por sua mente nublada pela dor, é que beber a fervura das ervas seria mais eficiente. O sol estava a poucos minutos de se pôr, não haveria luz para continuar sua jornada, então procurando um abrigo, uma reentrância numa parede pedras de onde escorria a água que formava o ajuntamento d’água e ali aninhou-se com Xena, jantou uma porção da comida seca e fria de aventureiro, sem frutas dessa vez, e cobriu ambas com seu cobertor para passar a noite gélida e sem lua. O emplastro de ervas e o descanso foram suficientes para curar o efeito causado pela toxina das centopeias, sabia que teve sorte por ser relativamente fraco, seu alvo devia ser animais menores como coelhos. O dia chegou com a luz fraca do sol penetrando suas pálpebras, tirando-a do sono pesado, não houve perturbações durante a noite, a jovem acordou sua cachorra com uma boa e profunda cheirada no pescoço, absorvendo o cheiro da companheira até ele entrar e se impregnar em sua alma, se fosse possível. Após recolher seu cobertor e juntar o resto de suas coisas, continuou viagem em direção ao coração da floresta, comendo mais comida fria e seca, não encontrou no caminho nenhuma fruta que pudesse comer.

    Uma floresta que costumava ser tão viva, tão cheia de frutos e de animais vivendo ali, não produzia, por uma extensão muito grande, um único fruto saudável. Agora que prestou atenção, também não via animais selvagens, exceto pelas centopeias, desde que conversou com a Nogueira, não apenas as árvores estavam doentes, não havia alimento para os herbívoros nem presas para os carnívoros, toda a floresta, todo o ecossistema morria lentamente à sua volta, definhando por uma razão que não conhecia. Apertou o passo. O sol já havia passado de seu pico quando alcançou seu objetivo, almoçou mais da ração de aventureiro enquanto caminhava, não podia se dar ao luxo de parar para comer, mas as porções de ração propiciavam este ritmo acelerado, eram fáceis de consumir mesmo em movimento. As árvores altas e antes frondosas não permitiam que a luz do sol tocasse o solo, dessa maneira não havia vegetação rasteira. A cada passo, deixava para trás árvores cada vez maiores, e também mofos maiores, cogumelos maiores, em certo ponto os cogumelos tinham tamanho suficiente para cobrir seus pés como grama alta. Poderia ficar contemplando o Sabugueiro por horas sem sequer piscar para não perder um único segundo de apreciação, era uma visão de deixar qualquer um estupefato, mesmo que já o houvesse visto antes, agora, com pouco mais idade e compreensão do mundo ao redor, se tornava ainda mais impressionante, os longos e grossos galhos, com folhas vermelhas, se perdendo rumo ao céu, se esticando sobre a terra por muitos metros de comprimento, e muitos metros ainda acima de sua cabeça, em seu tronco tão largo que era difícil mensurar, se via nós na madeira que formavam um rosto com uma boca e um par de olhos, dos quais escorria seiva vermelha, dando à espécie o nome de Sabugueiro Chora Sangue. A majestade do ent à sua frente acentuava o contraste com as coisas que cresciam nele por razões não naturais, cogumelos gigantes da altura de um humano adulto, um mofo espesso que chegava a ter cabelos. O contraste doía ainda mais em Kai, um ser venerável à mingua, e por isso não se demorou em apreciar a vista que ainda assim era majestosa.

    Aproximou-se da grande árvore, subiu em suas raízes para ficar mais perto do rosto no tronco.

    - Senhor Sabugueiro – a jovem chamou pelo nome que conhecia esticando o pescoço para cima alto como falando com alguém muito alto, mas não houve resposta, ela tentou chamar mais alto – Senhor Sabugueiro!

    Sem respostas mesmo chamando várias vezes, olhou para Xena procurando algum auxílio, mas a cachorra não o tinha, abaixou-se e tocou a raiz na qual subiu, estava quase flácida, tinha medo de a perfuraria se apertasse, estendeu seus sentidos como havia feito anteriormente quando falou com a Nogueira, procurando a natureza, procurando a vida que havia ali, com bastante concentração sua mente perpassou os organismos que cresciam ao redor e na própria árvore, buscou uma vida semelhante à da dríade, e encontrou, uma fagulha, mas encontrou e chamou por ela, pelo seu despertar. Os galhos vermelhos desfolhados pelo inverno se moveram fazendo um pequeno farfalhar, agora que estava mais perto, conseguia ver que as cores das folhas que restavam e dos galhos estavam desbotadas, esmaecidas como se perdido sua força vital. Os olhos no tronco se abriram e um brilho fraco surgiu no lugar das órbitas, sua boca se moveu.

    - Olá, jovem criança - o som parecia não vir de sua boca, mas emitido de todo o tronco ao mesmo tempo, ele tinha a fala vagarosa e arrastada, levando diversos segundos para concluir apenas uma palavra – Quem é você?

    - Olá, Senhor Sabugueiro. Eu sou Kai, a druida que agora cuida da floresta, estive aqui antes com minha avó, vou assumir o lugar dela. – Kai respondeu tão logo Sabugueiro emitiu o último som da frase, esperando que ele não tivesse mais nada a falar no momento – Notei o que está acontecendo com vocês, conversei com uma dríade no caminho, Nogueira, ela me disse que algo está drenando a energia dela, que está ficando mais fraca a cada dia, e que isso está vindo dessa parte da floresta, mas que o senhor estaria aqui. O senhor pode me ajudar a entender isto?

    - Eu sou Pheltuminda Tan Jarre... Ii Semw Pildoirr... Kaykalun Zal Semw... Acredito que em sua língua seria... algo como Jardineiro Das Folhas Vermelhas... – ele falava com a tranquilidade de quem não se preocupa com o tempo, e as estações passam como dias – Pode me chamar... de Pheltu-.

    - E o senhor pode me ajudar? – interrompeu com pressa a druida, ela não tinha todo aquele tempo para conversar, apenas o nome do ent pareceu levar horas, mesmo que não tenha passado de no máximo um par de minutos, e talvez ele mesmo não soubesse, mas também não tinha tanto tempo – O senhor sabe o que está acontecendo? Como podemos resolver isso?

    - Ora, criança... não seja tão apressada em suas palavras... – Pheltu continuou, com sua fala vagarosa – Desconheço a causa e a origem, saio pouco daqui... porém, isto começou já há algum tempo... Ainda era calor, acredito... Posso lhe dizer... que o que quer que seja... está vindo pelo rio... se subir o rio ao leste... vai encontrar a fonte.

    - Minha avó, Nian, sabia sobre isto? – Kai perguntou aflita – Ela estava combatendo isto? Porque nunca me disse nada? Há alguma outra pessoa que possa me ajudar?

    - Bem... estas são respostas... que não sei lhe dar – o rosto na árvore parecia especialmente triste ao dizer estas palavras – sinto muito criança.

    - Muito obrigado senhor Pheltu – a druida lhe respondeu quase já descendo de suas raízes – muito obrigado, vou resolver isto.

    Se despediu apropriadamente e partiu rumo ao leste, alternando entre um trote ritmado e uma caminhada acelerada para recuperar o fôlego, para encontrar o rio, a conversa curta com o ent demorou o bastante que o sol baixasse um tanto, indicando que já passava do meio da tarde. Quando se aproximou do rio a noite estava caindo, a luz diminuindo à sua volta quase lhe passou despercebida, porque o odor pútrido piorou de maneira absurda, deixando-a nauseada. Chegando à margem do rio, teve ânsias causadas pelo cheiro, e porque viu que a água estava de alguma forma vermelha e alguns muito poucos peixes boiavam seguindo a corrente, todos mortos. Pensou que o cheiro vinha dos peixes, mas não seriam suficiente para causa aquilo, e era diferente, embora não soubesse precisar como. O odor nauseante parecia vir da própria água, como se o rio fosse um ser em decomposição.

    O sol se escondeu completamente no horizonte, dando lugar à escuridão noturna. Diferente do habitual, de montar acampamento, comer e se aconchegar no cobertor junto à sua companheira, Kai acendeu a lanterna coberta e manteve o ritmo de deslocamento em que vinha nas últimas horas, antes de ser interrompida pelas ânsias, não tinha preocupações em ser vista por inimigos, predadores ou mesmo insetos gigantes como lá atrás, duvidava que houvesse qualquer ser vivo, além das duas, em um raio de quilômetros, se houvesse, cortaria e seguiria em frente sob o céu estrelado sem lua. Afastou-se do rio o suficiente para conseguir comer as porções frias e secas de ração e ainda conseguir acompanha-lo, e apenas porque precisava se manter acordada e em movimento. Correu e descansou durante a marcha sem parar para comer ou dormir até o final do outro dia, embora estivesse acostumada a caminhar longas distâncias com Xena ao seu lado, nunca tinham se forçado a ir tão rápido assim, nem por tanto tempo, seus pés fizeram bolhas que doíam cada vez que os pressionava contra o solo nas botas de couro macio, os músculos de suas pernas gritavam desesperadoramente, as costas doíam curvadas sob o peso da mochila com seus equipamentos, os pulmões queimavam com a respiração ofegante que se condensava no ar à sua frente, mas finalmente avistou a nascente. Pela primeira vez em mais tempo do que gostaria, a druida onde estava parou para analisar o lugar antes de avançar, as margens do rio se afunilavam até encontrar a parede de pedra de onde a água vermelha brotava em uma pequena cachoeira, naquele ponto não haviam mais cogumelos ou mofo ao redor, apenas o odor putrefato e árvores secas, completamente sem vida. Com passos controlados e silenciosos, procurou um caminho para contornar a parede e chegar ao topo da elevação, por mais que estivesse com muita pressa, segundo Pheltu, ali estaria a causa de todo horror que acometia a floresta, precisava ter cuidado, não sabia o que ia encontrar. Após procurar por alguns minutos, encontrou uma trilha que subia até o cume, a qual seguiu, se aproximando lentamente, podia sentir o coração pulsando em sua garganta, cada batia ecoando em seu crânio, desta vez não pela corrida, seus passos eram mais lentos do que gostaria, gostaria de correr em direção ao topo e resolver logo isto, mas pelo nervosismo, pelo de fato de que estava tão perto de seu objetivo.

    Kai não sabia o que achava que ia encontrar, não parou para pensar nisto, não sabia o que esperar e este foi um dos motivos de maior cautela, apesar disto, o que encontrou foi de alguma maneira diferente do que esperava. Quando alcançou o topo da elevação, se viu diante de uma clareira morta, sem o menor resquício de grama, as árvores completamente secas como se estivessem petrificadas, no centro, um círculo de pedras, maiores que um humano, que lançava sombras longas no chão com o sol baixo, no círculo de pedras, a visão mais absurda e horrenda que já teve o desprazer de presenciar. Uma carnificina horripilante, o solo não era visível debaixo dos incontáveis ossos amontoados e sangue acumulado, inúmeras criaturas jaziam mortas ali, a jovem moça caiu de joelhos em pratos ao ser atingida por aquela realidade, a sensação de impotência e a consternação com aquela cena bárbara e absolutamente vil e cruel a deixaram sem reação, queria correr de volta para sua cabana, para o colo de sua avó, chorar e ser consolada, então, todos os fatos dos últimos dias, que ela não havia lidado, a atingiram de uma única vez. A morte de sua avó, a revelação que ela fez após a morte, por meio de uma carta de que não era sua avó de sangue, de que fora encontrada na praia nos destroços de um navio pirata encalhado, de que era filha de piratas nascida em uma nação que considera todos os piratas como espiões inimigos do reino de magos vizinho e os executa sumariamente, o fato de que centenas de milhares estavam morrendo naquele momento, milhares de animais, milhões de vidas dependiam dela, toda a natureza que conhecia dependia dela, Nian não ter lhe falado nada sobre aquilo, não ter deixado nenhuma instrução, o fato de que as pessoas que conhecia na vila de pescadores morreria se ela não parasse a morte da floresta, de que ela nunca mais poderia comer o bolo com geleia de amoras feito de manhã pela dona do boticário onde costumavam vender ervas, não ouviria mais o Senhor Epaminondas reclamando de suas bolhas e pedindo que cuidassem de suas feridas. Não sabia dizer quanto tempo passou ali, ajoelhada chorando em desespero, mas quando teve forças para rezar para Mielikki, para sua avó, e pedir por auxílio, as estrelas já haviam tomado o céu novamente, pediu para que lhe mostrassem o caminho, o que deveria fazer, sentiu um toque suave sobre sua mão no chão, e foi suficiente para que ela reorganizasse os pensamentos e se levantasse. Reuniu a energia mágica da natureza, a moldou em um cone para detectar magias, uma magia tão simples que era considerada um truque, e o lançou sobre o círculo, concentrou-se na percepção mágica concedida pela magia, conseguiu entender facilmente que era algo complexo e que havia uma energia necromântica agindo ali, mas muito lhe fugiu à compreensão. A carnificina no círculo parecia ser parte de algum ritual, talvez para criar o efeito de necromancia, mas isto era apenas capaz de supor baseado no que entendeu. O mais importante lhe escapou, o mais importante não estava em seu conhecimento, seu treinamento, seus estudos, seu dia a dia aprendendo sobre a natureza, as ervas, os animais e magia não lhe preparam para reverter ou sequer parar o que via em sua frente, mas assim como quem era, o que sabia não mudava o que precisava fazer. Entrou no círculo de pedras. No momento em que cruzou o limiar do círculo, sentiu parte de sua energia vital ser sugada, mas isso não a impediu, com a luz da chama da lanterna analisou alguns dos ossos amontoados: ursos, galinhas, lagartos, corujas, porcos... animais de todos os tipos. Procurou algum padrão na disposição dos ossos, das pedras, no chão, mas só o que encontrou foi o desespero da ignorância. Agiu da maneira que lhe parecia lógica, sacou sua clava e começou a quebrar tudo o que via, lançou para fora os ossos e arrancou os torrões de terra com sangue seco.

    Nada parecia surtir efeito, até que em uma das pedras do círculo, uma runa que não conhecia se acendeu com brilho azul. Kai não sabia o que era, não sabia se aquilo a mataria, mas era a melhor chance que tinha, continuou o que estava fazendo, com o tempo, ao longo da noite, em cada uma das pedras se acendeu uma runa, no mesmo intervalo de tempo, ao acender da última, o brilho de todas aumentou e do chão veio um clarão cegante, fazendo-a cobrir os olhos.

    Quando Kai conseguiu abrir os olhos e enxergar novamente, a paisagem à sua volta havia mudado, no céu poucas nuvens nublavam o firmamento iluminado pelo sol que começava a despontar no horizonte, os ossos e sangue sob seus pés haviam desaparecido, não havia barulho de água ou cheiro pútrido, as árvores não pareciam murchas nem petrificadas. Não havia árvores, estava no topo de uma colina e até onde sua vista alcançava, restava apenas a grama amarelada do inverno e tocos de árvores cortadas.

    Continua...

9 Comentários

  1. Muito bom, como já tinha te dito antes, e foi o que me motivou a te convidar para o blog, a escrita é extensa, é por partes, tem muito a ser contado e muito a acontecer, principalmente porque o futuro é incerto, para qualquer uma das partes! Quanto ao episódio em si, sem dúvida a narrativa inicial com a druida é muito forte, passando pelo cuidado dela para proteger sua companheira animal, bem como do nada, ter de lidar com algo, que apesar de seu treinamento e convivência, nunca havia sido preparado para um mundo em decadência, e sem sua avó experiente e capaz de resolver tudo, estando ausente! A cena final, com ela chorando diante do massacre e carnificina, foi extremamente forte e emocionante, e parece que essa personagem, vai crescer muito principalmente nesta narrativa! Parabéns meu velho, que essa seja uma obra que será levada à frente, quero muito ver essa história registrada pra sempre em um livro, na minha estante! Vamos que vamos!! \0/

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    1. Muitíssimo obrigado meu caro, vou tentar não perder o ritmo e seguir contando essa história, já to bem ansioso pra desenrolar a trama!

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  2. Grande Devicenzi!

    Seja muito bem-vindo a Mindstorm!

    Lugar de campeão é na seleção!

    Aqui, os nossos projetos abstratos se tornam realidade!

    E você já mostrou grande talento na escrita, num estilo que fica no esmero e no detalhamento das cenas..

    Uma história

    Tô impressionado com a sua coesão textual.

    Aqui temos uma jovem druida com uma missão pra lá de espinhosa, após a perda da sua avó de criação e mestra.

    Em meio a destruição da floresta, o desafio da jovem Kai em encontrar as respostas para toda aquela mortandade se mostra hercúleo.

    Mas, ela parece determinada!

    Adorei a conexão dela com a natureza !

    Uma história bem escrita com as características de RPG, consagradas aqui pelo mestre Lanthys, que nos presenteou com Grund-Tharg.

    Sucesso nessa empreitada, meu amigo!

    E que você coloque no papel aquilo que tu gostas.

    Parabéns!

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    1. Obrigado pelas palavras, a coesão é uma coisa que eu tenho um cuidado especial em tentar manter, assim como a descrição dos detalhes tentando trazer uma imersão. Muito feliz de ver que essas coisas foram percebidas.

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  3. Uma estreia incrível.
    Curti muito a sua escrita, a riqueza dos detalhes, tanto no campo da descrição do ambiente quanto da personagem em si, que logo desperta o interesse e empatia do leitor, levando à torcida para que ela fique bem e à salvo, mesmo que a situação pareça terrível e sem solução.
    A conversa com o ent ficou perfeita e o crescente suspense com o que poderia estar destruindo a natureza foi muito bem conduzida até o ápice e terminando com um gancho tão bom posicionado.
    Mandou bem demais!!!
    Parabéns!!

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    1. Obrigado demais, conforme fui escrevendo esse capítulo fui conhecendo mais a personagem também e gostando mais dela, logo no início da jornada já tem que lidar com muitos problemas, mas em momento nenhum recua ou desiste de tentar.

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  4. Olá, e primeiro de tudo, seja muito bem vindo.

    Sua descrição está bastante boa, gostei um bocado, e as informações sobre o início da história estão um pouco ocultas por enquanto, mas creio que isto tenha sido feito de propósito.

    Com certeza tem uma referência clara a Senhor dos Anéis, principalmente relacionada a Silmarillion, principalmente - e isso é algo que eu senti ao ler (ou ouvir, usei o modo de leitura do Word - TTS - pra "ler/ouvir") - relacionado ao Tom Bombadil ou mesmo com os Ayundalé.

    Mas uma coisa que é interessante você notar é o tamanho dos parágrafos, que são bem grandes... Isso faz com que eu perdesse um pouco da imersão, já que a parte gráfica também ajuda.

    Desculpe ser chato no seu primeiro capítulo e seu primeiro conto aqui no Mindstorm, mas vejo que você é muito bom, com algumas coisas a melhorar. Eu também sou assim.

    De resto, o seu conto está muito bom, gostei pacas, me trouxe uma sensação muito deja vu pra quem leu a trilogia do mago negro, mas pra druida. Parabéns e espero o próximo capítulo.

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    1. Obrigadíssimo, a ideia é mesmo dispor as informações aos poucos e de maneira mais natural ao decorrer dos acontecimentos, tanto quanto os personagens lidam com aquilo quanto a informação se torna relevante. Com toda certeza tem referências à Senhor dos Anéis, a própria personalidade e maneira dele de falar por exemplo. Sobre a relação com a trilogia do mago negro, eu mesmo não tinha me dado conta, mas a magia se comporta realmente da mesma maneira, funcionando como um outro sentido que pode ser estendido e moldado com o pensamento sob determinadas regras.
      Sobre os parágrafos, a verdade é que eu também não gostei do tamanho deles, porém não soube muito como modificar e melhorar isso.

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  5. Eu realmente fiquei absorvido por essa história. O que você construiu nesse capítulo foi uma atmosfera carregada de mistério e desespero. A sensação de impotência que a Kai sente, diante da carnificina e da revelação dolorosa sobre sua verdadeira origem, realmente toca fundo. O contraste entre o lugar devastado, a morte e a perda pessoal é forte e comove. Isso é apenas o começo, mas já nos apresenta um grande conflito interno da protagonista, que tem que enfrentar algo muito além do que ela imagina ser possível.

    O modo como você descreve a transformação do ambiente — de um cenário de morte e desespero para algo aparentemente pacífico, mas também vazio — realmente cria uma sensação de que algo muito mais complexo está em jogo. As runas e o brilho azul são um toque interessante, adicionando uma camada mágica que ainda não está completamente esclarecida, mas que abre muitas possibilidades.

    E o que mais me impressionou foi como você fez a personagem se encontrar em um dilema entre sua falta de conhecimento e o que precisa fazer. Isso a torna ainda mais humana, mais real, pois, mesmo sem saber o que está acontecendo, ela age com coragem. Esse tipo de protagonista é o que gera empatia, já que ela não é a heroína que sabe tudo, mas sim alguém que é impulsionada pela necessidade de agir, apesar da dúvida e do medo.

    Fiquei muito curioso para saber o que vem a seguir, especialmente sobre essa energia necromântica e o que exatamente aconteceu com o mundo ao redor da Kai. Esse cenário de "reversão" parece ser o ponto de virada para algo maior, e me deixa ansioso para ver como a protagonista vai lidar com isso.


    Eu realmente gostei da maneira como você construiu as emoções e a tensão nesse primeiro capítulo. A narrativa flui muito bem, com ritmo interessante entre o drama pessoal e os elementos de mistério e magia. Mal posso esperar para ver onde você vai levar essa história!

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