8 .Um acidente
A tensão entre os dois irmãos ainda ecoava no ar. Cintia não conseguia superar o ressentimento de ter sido abandonada, de quase ter morrido, e de como Eduardo a salvara da morte certa. Gilson, ao olhar para aquele Coronel da Aeronáutica, sentiu um misto de gratidão e compreensão. Ele sabia que Eduardo salvara sua irmã, mas também entendia que aquilo não fora um ato desinteressado. Havia algo mais por trás daquela ação.
— Tudo bem, Cintia. Se você quer acreditar que eu te deixei para trás de propósito, acredite. Só estou feliz que você esteja viva, bem e amando — disse Gilson, antes de se virar para Eduardo. — E você, meu caro, mesmo sem saber, me ajudou. Muito obrigado.
Eduardo, porém, manteve a postura firme e fria.
— Não quero ser rude, Gilson, mas é essencial que você compreenda o enorme risco que corremos ao permitir o acesso de vocês ao planeta. Se muitos de vocês encontrarem suas contrapartes nesta dimensão, isso poderia causar uma ruptura no espaço-tempo, levando à destruição do planeta. É realmente isso que vocês desejam?
Gilson ficou em silêncio por um momento, assimilando a gravidade das palavras de Eduardo. Finalmente, ele entendeu: a entrada deles no planeta poderia significar o fim de tudo.
— Nossos homens foram informados sobre essa possibilidade? — perguntou Gilson, hesitante.
— Tamanha foi a explicação que quase faltou uma apresentação em slides para eles, de acordo com as informações que recebi da Administração da Estação Interespacial — respondeu Eduardo.
Gilson refletiu profundamente sobre o que acabara de ouvir.
— Entendo seu lado, e não queremos destruir a Terra. Mas precisamos de um lugar para nos estabelecer. Marte, pelo que sei, já é habitado, mas os seres vivem abaixo da superfície, certo?
— Exatamente — confirmou Eduardo. — E a zona habitável aqui na Terra não tem mais espaço para vocês. A menos que consigam transformar a Lua, o que é praticamente impossível, vocês não terão onde ficar.
— Podemos criar uma habitação artificial — propôs Gilson. — Precisamos apenas de um pouco de terra para plantar alimentos, água para replicar, um pouco de gado para reproduzir. Juntamos nossas aeronaves e criamos um satélite que orbitará a Terra. Podemos ajudar com as comunicações e contribuir para a evolução da tecnologia no planeta.
Eduardo ponderou a ideia. Um satélite maior que a Estação Interespacial poderia afetar a órbita da Lua e, consequentemente, a estabilidade da Terra.
— Vocês não conseguem seguir a órbita da Terra sem serem afetados pela gravidade do planeta? — questionou.
— Para isso, precisaríamos de combustível suficiente para iniciar a translação no Sol, ao menos. Não sabemos se podemos seguir a mesma órbita de planetas, como por exemplo, Vênus, um pouco mais adentro, mas já fora da zona habitável. — explicou Gilson.
— Então por que não unimos os cientistas de ambos os lados, mesmo à distância, para encontrar uma solução que permita nossa coexistência sem destruir a Terra? — sugeriu Eduardo.
Gilson sorriu, impressionado.
— Agora entendo por que Cintia gosta tanto de você, Eduardo. Você busca soluções sem conflito, promovendo a colaboração. Ter você na Aeronáutica Brasileira me enche de orgulho de ser brasileiro.
— Obrigado, Gilson. Posso colocar as pessoas certas em contato com você para começarmos a trabalhar imediatamente.
— Agradeço. Por enquanto, manterei nossas naves próximas ao Cinturão de Kuiper, na zona limítrofe da área habitável. Acredito que as ondas de internet possam alcançar essa distância, certo?
— Se usarmos uma conexão via satélite como antigamente, acredito que seja possível. Podemos estudar a melhor forma de fazer isso funcionar.
Gilson deixou a presença dos dois, retornando à nave principal, que havia desacoplado da Estação Interespacial, aguardando o próximo contato.
Assim que ele partiu, Cintia olhou para Eduardo, seus olhos cheios de preocupação.
— O que você tem a dizer, Eduardo? — perguntou diretamente.
— Seu irmão está tentando nos manipular, Cintia. Ele usa seus sentimentos a favor dele. Eu sei que você o ama, mas ele não hesitará em tomar uma atitude agressiva para assumir o controle do planeta.
Cintia suspirou, sabendo que Eduardo tinha razão.
— Infelizmente, eu sei disso. Conheço meu irmão e o que ele é capaz de fazer, dada a oportunidade. O que você sugere?
— Enquanto nossos cientistas trabalham em uma solução pacífica, precisamos realizar uma reunião global, envolvendo todos os governos da Terra. Temos que nos preparar para o pior.
Cintia concordou, mas sugeriu:
— Acredito que devamos incluir os marcianos. Eles são nossos aliados e podem nos ajudar a nos defender.
Eduardo balançou a cabeça.
— Melhor não. Se os marcianos perceberem que não sabemos lidar com nossa própria espécie, quem dirá com eles, perderemos credibilidade. Precisamos resolver isso entre nós, humanos.
— Entendo. Então, vamos agir o mais rápido possível.
— E eu preciso informar todos os líderes dos países do mundo, Cintia. Não podemos deixar que pensem que estamos sendo condescendentes com Gilson só porque ele é seu irmão.
Cintia concordou, sabendo que estavam caminhando sobre uma corda bamba. Eduardo, então, orquestrou uma reunião mundial de forma discreta, utilizando apenas aplicativos de mensagens rápidas para evitar vazamentos. A reunião foi marcada no Brasil, para facilitar a discussão.
Enquanto isso, Gilson acreditou na sinceridade (e na ingenuidade) de Eduardo. Ele discutia com sua equipe e com a liderança da Terra destruída, buscando uma solução pacífica. A ideia de um astro artificial na zona habitável do sistema solar parecia viável.
A reunião foi organizada de forma rápida e discreta, com o objetivo de decidir o que fazer em relação aos humanos recém-chegados de outra dimensão. Eduardo e Cintia assumiram a liderança do encontro, mas logo perceberam que os representantes dos Estados Unidos, ainda amargurados pelo declínio de seu antigo imperialismo, interpretaram mal suas intenções. Acreditavam que o Brasil queria tomar as rédeas da situação, o que não era verdade. Em apenas duas semanas, todos os líderes globais estavam reunidos no edifício mais luxuoso de São Paulo. Apesar do cenário brasileiro, o inglês ainda predominava como a língua oficial para negócios e decisões importantes.
— Obrigado a todos por terem vindo — começou Eduardo, com um tom solene, falando em um inglês perfeito, lento e claro para garantir que todos compreendessem. — A decisão que precisamos tomar hoje é de extrema importância. Nada do que discutirmos aqui pode vazar para a mídia. Seria catastrófico se visitantes descobrirem por meio da mídia de massa.
O líder russo, com seu sotaque marcante, foi o primeiro a intervir:
— Certo, coronel brasileiro. O que exatamente aconteceu?
Eduardo então detalhou como foi o encontro entre ele, Cintia e o líder dos humanos da outra dimensão — que, por coincidência, era o irmão dela. Ele descreveu as impressões que tiveram durante a conversa, mas foi cuidadoso ao escolher as palavras. Sabia que, embora o objetivo fosse chegar a uma decisão consensual, não podia dar margem para que os outros líderes voltassem suas desconfianças contra o Brasil. Afinal, até o presidente brasileiro estava presente, e qualquer erro poderia significar o fim de suas carreiras na Aeronáutica.
Eduardo continuou:
— O líder deles, Gilson, parece cooperativo, mas não podemos subestimar suas intenções. Ele propôs a criação de uma habitação artificial em órbita, mas precisamos avaliar os riscos envolvidos. Qualquer passo em falso pode colocar todo o planeta em perigo.
Os líderes presentes trocaram olhares ponderados. A tensão no ar era palpável. Todos sabiam que a decisão tomada ali poderia mudar o destino da humanidade.
Foi então que decidiram manter-se em alerta máximo. Enquanto os cientistas de ambos os lados trabalhavam para encontrar uma solução pacífica, os líderes globais estariam prontos para agir caso a situação escapasse ao controle. Se os visitantes de outra dimensão tomassem qualquer decisão hostil, toda a força do planeta seria mobilizada para enfrentá-los e neutralizá-los. Essa decisão fez Cintia perceber que, se seu irmão escolhesse o caminho errado, seria o fim dele — definitivo e irreversível.
A reunião prolongou-se por quase duas horas, deixando todos exaustos após discussões intensas e detalhadas. Eduardo e Cintia lideraram os debates, ouvindo atentamente cada palavra e observando cuidadosamente como os outros líderes se comportavam. Era crucial entender suas motivações e estratégias, afinal, aquela reunião não tinha precedentes na história. Todos os presentes, incluindo nações não reconhecidas pela ONU, aceitaram participar sem hesitação, compreendendo a gravidade do momento.
A atmosfera era carregada de tensão. Um único erro poderia desencadear um incidente internacional de proporções catastróficas. O líder brasileiro sabia que, caso algo desse errado, teria que agir com rapidez e discrição para evitar que a mídia nacional e internacional alarmasse a população e os visitantes por meio da internet. O peso da responsabilidade era imenso, e cada palavra, cada gesto, precisava ser calculado com precisão milimétrica.
E, por muito pouco, isso não aconteceu. Um deslize do próprio Eduardo quase colocou tudo a perder, por causa de uma frase colocada fora de contexto, falando que ‘talvez Gilson pudesse ser persuadido a não fazer o que aparentemente se propunha’, mas ele mostrou possuir uma rapidez de raciocínio gigante, mostrando que ele estava mesmo pronto para cargos maiores do que o que ele possuía.
Porém, o que eles não sabiam, é que deliberadamente Gilson mandou um de seus homens ao planeta, para entender o quão poluído ele estava e quanto tempo levaria para recuperá-lo com as técnicas que tinham. Escolheu o Brasil para se misturar, e viu que a poluição estava igual ao começo do século XXI deles também, o que podia ser facilmente revertido, uma vez que eles mesmos vieram do século XXIII.
Não demorou muito para que o comandado de Gilson encontrasse sua contraparte, e uma vez que a presença próxima entre os dois, mesmo que não tivesse contato visual, causou um baque surdo, que pôde ser ouvido no mundo inteiro. Não foi mera coincidência, mas poucos sabiam o que isso significava.
E um desses poucos era membro da equipe de Eduardo, Letícia. Ela era uma Cientista, uma Física Teorética e Prática. Ela já tinha feito testes em ambiente controlado a respeito de fissuras no tecido espaço-tempo, e de um tamanho que não causaria problemas. Ela lembrou bem o que significava aquele barulho que o mundo inteiro ouvira. Em breve algumas anomalias começariam a acontecer.
O que acontecera ali era que ela havia conseguido provar a teoria da relatividade de Einstein, e agora, com a chegada dos membros de uma realidade paralela, sabia que eles se moveriam daquela maneira. Ela precisava avisar o Coronel Eduardo o mais rápido o possível. O azar dela era que ele ainda estava na reunião com os líderes mundiais naquele exato momento a respeito exatamente do que poderia acontecer.
Ficou observando direto o aplicativo de mensagens rápidas utilizado, para ver quando o status do Coronel. Quando finalmente a reunião terminou e o status de Eduardo mudou para ‘em trânsito’, logo ela ligou para ele.
- Senhor Eduardo, aqui é Letícia. Tudo bem contigo? - Perguntou ela, com um tom nervoso em sua voz.
Comigo tudo bem, obrigado. Tem alguma coisa que você quer me contar, Letícia? - Perguntou Eduardo, já sabendo que vinha alguma notícia ruim e importante.
- Aparentemente o líder dos terráqueos extraterrestres mandou alguém da tripulação sondar o nosso país, e este tripulante já encontrou sua contraparte. Escutei um baque surdo com as ferramentas de monitoria, em um som muito baixo, próximo ao limiar da audição humana... E isso significa que o tecido espaço-temporal começou a se abrir. Já comecei a fazer investigações, mas tudo indica que, pela expansão da Teoria da Relatividade de Einstein por Linghtenberg em 2032, que pode ocorrer uma fusão de realidades, trazendo a realidade dele para a nossa, substituindo o nosso planeta pelo dele, que foi destruído. Ou seja, fará com que ele possa mais facilmente tomar o mundo se não tomarmos cuidado.
Foi quando Cintia entendeu o que o irmão queria. Queria conquistar o planeta, não buscar asilo. E o que Eduardo sentira quando se reuniram estava correto, ele estava usando os sentimentos dela para tentar manipular as coisas a seu favor, o que não funcionou. Então ele partiu para o ataque direto, e com apenas um dos tripulantes, isso seria possível de ocorrer, mesmo de maneira mais lenta e deliberada.
- Senhorita Letícia, há alguma maneira de reverter isso?
- Primeiro, precisamos achar este tripulante, tirá-lo do planeta agora mesmo, e achar sua contraparte, deixando-o confinado em um espaço que tenho em meu laboratório, assim podemos recuperar o tecido do tempo-espaço. Mas descrição e rapidez são imperativos.
- O que temos contra o tempo é que não fazemos ideia de quem seja... - Disse Eduardo.
- Na verdade, fazemos sim. Tenho uma foto de seu desembarque, com dia e horário, e sua posição atual. Também já localizamos a contraparte, é fácil de abordá-lo e trazê-lo para cá. Só estava aguardando o senhor sair da reunião para que eu pudesse agir.
Letícia mostrou sua eficiência em meio ao caos que aquilo poderia causar, e só precisava de uma aprovação.
- Muito obrigado, Letícia. Pode agir imediatamente. E quando for assim, vou te passar o meu número de contato de emergência. Caso você me mande mensagem nele, saberei que é algo que requer a minha atenção imediatamente.
- Obrigado, senhor. Seguirei com os procedimentos de contenção.
E assim, Letícia, enquanto saía da sala de reuniões virtual de Eduardo, era possível ver que ela já fazia algumas ligações a seus subordinados de campo para proceder com a captura.
- Meu amor, precisamos falar imediatamente com a cúpula da Aeronáutica. Precisamos nos preparar para o pior. Avisar as cúpulas do Exército e da Marinha também não será ruim, caso eles consigam pousar em nosso planeta. Seu irmão está indo do jeito que você previu.
- Infelizmente eu sei com quem estou lidando, meu amor. Meu irmão poderia ter salvado nossa família inteira, só não o fez por causa de seu status. E eu só me salvei porque dei sorte.
Diante aquela revelação, Eduardo abraçou Cintia novamente, buscando usar seu calor para acalmar a namorada, o que efetivamente funcionou.
1 Comentários
Situação pra lá de tensa.
ResponderExcluirGilson, o irmão de Cintia, um exímio manipulador, com pretensão nada nobres;
Por sorte , Eduardo, escaldado na experiência militar, pescou no ar, que ele não era confiável.
Mas, mesmo assim a crise está instalada.
Curti muito o episódio.
Fico feliz que você tenha retomado esse projeto.
Parabéns!