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Bado de Alkor, o fantasma do norte (capítulo V)

 

                                          Capítulo V - O segredo de Shido de Mizar (capítulo V)    

“Como eu já vinha desconfiando, Vidkun”, diz Alberich XVIII. E ele completa, dizendo que não entende como que Harald pode sentir remorso e culpa por causa do filho abandonado. E ele vai mais longe, diz que ele fez o certo ao ter abandonado um dos filhos. Visto que em Asgard se acredita que gêmeos rejeitados trazem má sorte as famílias e as destroem.

Vidkun não fica nem um pouco surpreso com as palavras do amigo. Visto que em outras oportunidades ele escutou conversas de teor similar, tanto por parte de cidadãos comuns quanto de gente graúda da nobreza e até da família real. Tanto por parte de camponeses, artesãos e simples aldeões quanto de figurões da família real.

O ferreiro então tenta ponderar a situação, tentando se colocar na pele de Harald e Astrid e assim entender os sentimentos deles. “Alberich, querendo ou não, trata-se do filho dele, que carrega em suas veias o sangue da família von Bygul”, diz Vidkun. “Está querendo justificar o injustificável, Vidkun?”, pergunta Alberich XVIII. “Não, de forma alguma. Apenas tentar entender a situação, como que o Harald e a Astrid devem estar se sentindo com tudo isso”, Vidkun replica. E o ferreiro provoca. “Alberich, como você se sentiria se se tratasse do teu filho que você mesmo abandonou? Não ia sentir a falta dele na tua vida?”. Alberich responde que não faria diferente do que Harald fez e não sentiria nenhum remorso por isso.  Tais palavras deixam Vidkun atônito, sem acreditar no que acabou de ouvir. A conversa entre os dois continua mais um pouco, sem chegar a lugar algum.

Dias depois, Vidkun recebe em sua oficina a visita de outro ilustre ferreiro, Atli, também amigo de longa data de Vidkun. Atli mora em uma aldeia não muito distante da residência de Vidkun e é notório pela qualidade de suas armas, e amigo do general Sigmund Siegmarson e sua esposa Sieglinde Knutdottir.

Eles conversam sobre vários assuntos, a começar por política. Atli se pergunta que tipo de ideia Durval tem em mente ao querer invadir as terras do sul. Ele acha que a questão não se resume a demarcações de fronteiras como tem sido ventilado por ai, ainda mais levando em conta que ele enviou Folken, um dos mais eminentes e prestigiados guerreiros de Asgard, para tal expedição.

Vidkun responde ao amigo que ele nunca sentiu confiança em Durval, que ele é como se fosse uma cobra peçonhenta e dissimulada e ainda por cima acha que ele de fato tem planos maiores em mente do que uma simples questão de demarcação de fronteiras. Talvez, quem sabe, ele esteja preparando o terreno para conquistar outras terras, a começar por Vanaheim. Depois de Vanaheim, outras regiões virão. “É questão de tempo”, conclui Vidkun. “E de sucesso militar”, completa Atli.

Atli ainda se lembra de ter ouvido falar de uma história que até hoje é tabu em Asgard: o passado sombrio dele. Durval se vangloria de ter escapado de um gulag no Extremo Oriente Russo [1], nas proximidades de Jakutsk, onde permaneceu por três anos junto com presos comuns e prisioneiros de guerra que lutaram sob o comando nazista, oriundos de países como Estônia, Letônia, Lituânia, Ucrânia, Romênia e Eslováquia.

Mas nunca se fala o motivo pelo qual ele lá foi enviado pelas autoridades soviéticas ao final da Segunda Guerra Mundial. Quando muito, ele alega ter sido preso por motivações políticas, por ter participado de movimentos guerrilheiros de resistência às tropas soviéticas, que ao final da guerra ocuparam o nordeste da Noruega.

“Eu acho que há caroço nesse angu”, diz Vidkun. Diz ainda Vidkun que há quem diga que Durval na verdade foi colaborador ativo dos nazistas e membro de uma divisão da Waffen SS [2] de colaboradores asgardianos, a divisão Thule. Tais colaboradores apoiavam na Noruega o regime colaboracionista de Vidkun Quisling e o então governante filonazista de Asgard, Waldemyr.

Os membros da divisão Thule estiveram envolvidos no front oriental da Segunda Guerra Mundial, em episódios como o cruento, longo e encarniçado cerco a Leningrado [3] e outros tantos. Ainda segundo tais histórias, o próprio Durval tomou parte no cerco a Leningrado em pessoa, que se estendeu por 872 dias, de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944, e se apoderou em proveito próprio de alguns dos objetos pertencentes à câmara de âmbar [4].

Nessa época, ideias eugenistas estavam em alta em várias partes do globo, e Asgard não ficou imune a isso. Alguns gêmeos abandonados de Asgard dessa época chegaram a ser enviados a campos de concentração nazistas pela Europa e até mesmo às unidades do exército japonês na Manchúria, incluindo a infame unidade 731. Tudo isso com a anuência do então governante de Asgard e aqueles que os apoiavam.

Após a guerra, alguns dos membros da divisão Thule e partidários de Waldemyr, com o apoio dos aliados ocidentais, lograram fugir e voltaram a Asgard. Passaram por todo um processo de branqueamento da história de vida deles, alegando terem lutado tanto contra os nazistas quanto os soviéticos em nome da liberdade de Asgard, e alguns deles com o tempo se tornaram políticos graúdos e influentes no reino nórdico. Políticos esses, de diversas colorações ideológicas, que apoiam Durval e suas políticas. E são esses políticos que se opõem a Harald e seus aliados nas sessões das Things em que ele participa.

Falando em Harald, Atli pergunta a Vidkun sobre o patriarca do clã von Bygul. Vidkun coloca Atli a par de tudo, incluindo sobre o fato de que ele teve dois filhos gêmeos e que por conta das leis de Asgard abandonou um deles. Atli também acha que Harald fez bem em se livrar de um deles, em nome do bem-estar e do futuro do clã. Surpresa zero para Vidkun escutar uma dessas. Como se vê, em Asgard aristocratas e cidadãos comuns podem até discordar de muitas coisas, mas no essencial estão de acordo, e a questão dos gêmeos é um desses pontos.

Os anos se passaram e em paralelo a questão do filho abandonado outras tragédias flagelaram a família von Bygul tanto no lado paterno quanto no lado materno.

Quando Shido e Bado tinham cerca de seis anos de idade, uma tragédia aconteceu com os Fenrir. Era final de inverno. A família Fenrir foi fazer um passeio pelas florestas de Asgard, e Birgit e Ulf convidaram Harald e Astrid para o passeio. Mas os von Bygul declinaram o convite, alegando que aquele não era o momento mais adequado para isso.

“Estou com um mau presságio quanto a isso”, diz Astrid ao primo Ulf. Astrid pediu para que ele não fosse passear agora, que era melhor esperar um pouco. Astrid diz que nas florestas está tendo alguns casos de ursos que acordaram prematuramente, antes mesmo de o inverno terminar. Exasperados, esgotados e famintos, tais ursos tendem a ser mais agressivos que o normal, por vezes eles adentram cidades e vilarejos, e os encontros com seres humanos costumam terminar de forma catastrófica. Não raro para ambas as partes [5].

E não deu outra. Os Fenrir foram à floresta, acompanhados de vários criados, bajuladores que os acompanham sempre aonde eles vão. O filho de Ulf e Birgit, o pequeno Fenrir, também vai junto com os pais. Tudo transcorria bem, até que no meio do caminho um enorme e imponente urso polar surge na frente deles, e os ataca.

O urso, que tinha um aspecto zumbificado e adentrou as florestas em busca de alimento em falta nas zonas próximas ao mar, ataca Ulf e Birgit. Ulf resistiu, revidou e atacou o urso com um grande pedaço de madeira, como se fosse um bastão. Mas no fim tombou diante do urso. Birgit também é morta pelo urso após tomar uma patada.

Ante a força esmagadora do urso, os criados da família Fenrir fugiram, abandonando o pequeno Fenrir e seus pais à própria sorte. Quando tudo parecia perdido para o pequeno Fenrir, eis que uma alcateia de lobos surge, ataca o urso e o faz recuar. O pequeno Fenrir foi salvo pelos lobos, e desde então passou a viver ao lado deles.

A notícia da morte de Ulf e Birgit baqueou os von Bygul. Estes ficaram tristes e de luto por alguns dias, e explicar a história ao pequeno Shido não foi tarefa das mais fáceis. Após muito pensar, Harald e Astrid disseram ao filho que eles foram morar na Noruega, mais precisamente na cidade de Tromsø, em busca de uma nova vida. Só mais tarde, depois dos 11 anos, é que ele soube do que realmente ocorreu com os Fenrir, cuja mansão foi com o tempo abandonada e tomada pelo mato após o incidente na floresta.

NOTAS:


[1] Caso não saibam, na Rússia a região adjacente ao Oceano Pacífico e fronteiriça com a China, a Coreia do Norte e o Japão (este último apenas por mar) não é considerada como Sibéria, e sim Extremo Oriente da Rússia. Ou em russo Dalnij Vostok Rossii/Дальний Восток России. Apenas as regiões oeste e central da Rússia a leste dos montes Urais entram no conjunto da Sibéria.

[2] Em alemão Schutztaffel (algo como esquadrão de proteção).

[3] Atual São Petersburgo. Capital da Rússia Imperial entre 1721 a 1918, durante a Primeira Guerra Mundial também foi chamada de Petrogrado.

[4] Câmara dentro do palácio de Catarina a grande na vila imperial de São Petersburgo com painéis em âmbar e espelhos folheados a ouro, considerada como a oitava maravilha do mundo. Durante a Segunda Guerra Mundial foi pilhada pelos nazistas, com o destino da peça original sendo desconhecida até hoje. Posteriormente, entre 1979 a 2003, uma cópia da peça original foi feita em São Petersburgo com base em fotos e ilustrações da câmara original.

[5] Na Rússia há um termo específico para esse tipo de urso, šatun/шатун.


1 Comentários

  1. Acho bacana a forma que você junta aspectos históricos reais com as fics, contextualizando, de uma maneira que só você sabe fazer.

    Gostei do modo empático do ferreiro
    Vidkun, algo que falta nos aasgardoanos.

    No final, uma tragedia5qie pode mudar o rumo da historia

    Parabéns!

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