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DEVANEIOS SOMBRIOS - A FESTA

 




Fala galera!

 

Essa é mais uma história da coletânea de contos antigos que escrevi há alguns anos atrás. Espero que gostem.

 

Jeremias Alves Pires

 

SINOPSE

 

Para se vingar de anos de zombaria, Allan convence seus colegas da turma do terceiro ano a fazer uma festa em uma casa assombrada.

Meia-noite. Está frio. A escuridão é senhora de tudo, apenas por um breve momento a luz do luar teima em querer trazer esperança ao coração dos condenados. Não essa noite. Hoje a luz no fim do túnel é um trem vindo em sua direção, e você está amarrado aos trilhos. Resta torcer para que o carrasco seja piedoso, e faça seu trabalho rapidamente. Caso contrário você irá gritar por horas e mais horas. Enlouquecido, o ódio escondido por baixo da dor lhe dirá: “a vida é o castigo, a morte é a libertação”. No entanto, nenhum de nós quer morrer. Queremos somente o alívio do tormento. O carrasco deve então cuidar muito bem de seu machado, e ter a certeza de que não irá errar o golpe. Se sua arrogância for maior que sua prudência, ele se tornará então o condenado. O descer da lamina será para ele ainda mais cruel do que para qualquer outro. O ódio oculto na dor é impiedoso e sádico.

Era o último ano e o terceiro e, queria fazer uma festa que ficaria pra sempre em seus corações como a mais incrível que já tiveram. Olhares úmidos revelavam a consciência que dentro de alguns meses, cada um tomaria seu rumo. Amizades feitas para durar uma vida inteira conheceriam a fragilidade de promessas, tais como: “estarei sempre ao seu lado”. Anderson, líder da classe tentava por ordem no tumulto. Como era de seu costume falava, mas ainda assim não dizia nada. Parte de seu sucesso vinha dos muitos apelidos que havia dado a seu estranho colega.

Allan era magrelo, cabeçudo, com orelhas de abano, óculos fundo de garrafa, cabeleira feita de longos cabelos negros, usados como mascara pra esconder o rosto. Anderson era o oposto de Allan. Forte, bonito, voz suave para as garotas, cômica para os amigos, trovejante para os rivais. Tinha olhos azuis e pele clara. Os cabelos loiros mudavam a forma conforme a moda. Seu esporte favorito era atormentar o pobre Allan, que jamais reagia.  Allan apenas abaixava a cabeça, deixando os cabelos cobrirem seu rosto. Até aquele dia.

- Ei, Luneta, um dia você vai sumir dentro dessas roupas. Há, Há, Há, Há, Há! – gritou Anderson ao ver Allan passar.

Allan se sentiu ainda menor dentro das roupas largas e velhas, que outrora pertenceram aos filhos dos patrões de sua mãe, cujo volume do corpo era o dobro do seu. O pátio estava lotado. Até as inspetoras riam. Um estranho tremor percorreu o corpo de Allan. A máscara de cabelos negros escondia seus olhos, mas não pode esconder o sorriso maligno que se formou vagarosamente. Num tique nervoso, a cabeça se moveu um pouco para esquerda e voltou para a posição original, como se uma onda elétrica a tivesse atingido. Deuses antigos haviam surgido das profundezas. O ar se tornou pesado. Risos pararam. Allan ergueu o braço, como quem ergue uma arma. Apontou o dedo indicador para Anderson. No mesmo tom da canção de um anjo sombrio, sentenciou.

- Breve...

Nada mais disse Allan, no entanto seu inimigo sentiu como se algo lhe tivesse atravessado o peito. Agradeceu por não estar ao alcance de Allan àquela hora, pois sabia que ele teria agarrado sua garganta, e não iria lagar, até que a vida tivesse se esvaído completamente do seu corpo. Força alguma no mundo poderia impedi-lo. Anderson sentiu que estava marcado, e pela primeira vez na vida, teve medo de alguém.

Seis meses se passaram. Todas as vezes que Allan olhava para Anderson, aquele mesmo sorriso se formava.  Todas às vezes o sangue de Anderson congelava em suas veias.

- Breve... – na alma a sentença era mais uma vez proferida, ainda que nenhuma palavra fosse dita.

Era inaceitável. Um babaca magricelo, não podia impor tanto pavor a um verdadeiro titã. Pensava Anderson. Quis resolver da única maneira que sua mente limitada concebia. Iria arrebentar a fuça de Allan. Nem mesmo tomou café da manhã naquele dia. Foi pra escola carregado de fúria.

- Vêm cá quatro olhos!

Anderson deu um tapa em Allan que jogou seus óculos longe, depois o empurrou contra a parede. Pegou-o pela camisa com uma mão, e com a outra lhe deu um soco. Passou a noite toda imaginando os pedidos de desculpa, as lágrimas, implorando pra que o rosto não fosse demolido. Não houve nada disso. Lá estava o sorriso infernal mais uma vez, com sangue escorrendo pelo canto da boca. Olhos negros como o coração do demônio o encaravam.

- Breve... Muito em breve... Não tenha pressa...

- Você é doido...

Anderson soltou Allan, que caiu sentado no chão, gargalhando insanamente. Anderson se virou e saiu andando. Teve que dizer a si mesmo pra não correr. O andar apressado, no entanto não deixou que seu pavor fosse escondido.

Do medo vieram pesadelos. Dormir se tornou uma tortura. Todas as noites uma navalha rasgava-lhe a carne. Gargalhadas ignoravam gritos. Um novo corte era aberto pra cada pedido de perdão. Tudo era vermelho. Tudo era tingido com seu sangue. Acordava suado e fazia de tudo pra não mais adormecer. O corpo doía. Tinha certeza que um dia acordaria mutilado. Estava ficando louco. Chorava quando não tinha ninguém olhando.

- Calma! As aulas vão acabar logo, e nunca mais você vai ter que olhar pra ele... – Anderson tentava confortar a si mesmo.

Uma semana pro final das aulas. Certa paz tomou conta do coração de Anderson, ao pensar que seu tormento chegaria ao fim.

Allan estava como sempre quieto, enquanto seus colegas planejavam a que talvez fosse a última festa com a presença de todos. Quando se levantou e foi até a frente da sala. Todos ficaram em silêncio. Ele mais parecia um espectro que uma pessoa.

- Então vocês querem fazer algo memorável! E se fizéssemos algo com sabor de aventura? Algo que desafiasse nossa coragem?

- No que você está pensando, Allan? – Anderson perguntou respeitoso, não havia mais em sua alma forças fazer qualquer tipo de zombaria.

- Perto daqui há uma casa, creio que todos já devem ter ouvido as histórias sobre ela. Quatro pessoas morreram lá. Pai, mãe e a bela filha adolescente, apaixonada por um louco. Quando o romance secreto foi descoberto e proibido, dezenas de golpes de machado foram à forma de protesto. O assassino morreu com pulsos cortados, sentado em uma poltrona com a cabeça de sua amada em seu colo. Tanta barbaridade não se dissipa tão facilmente. Segundo o relato dos vizinhos, algumas noites gritos são ouvidos de dentro da casa. Dizem que assassino e vitimas ainda vagam por lá, fadados a repetir o momento de suas mortes por toda a eternidade. Verdade ou mentira, a rua sem saída foi abandonada. Esse, meus amigos, é o palco perfeito para nossa despedida. Podemos fazer o barulho que quisermos. Ninguém irá reclamar. A menos que vocês acreditem que algumas almas não são capazes de encontrar paz após a morte. O melhor de tudo é que testaremos nossa coragem e descobriremos quais entre nós são covardes...

O semblante de Allan era perturbador. Era como se aquela história terrível fosse pra ele uma grande piada. Fez seu relato sem demonstrar qualquer desconforto, na realidade, parecia gostar muito da história. Seus colegas ficaram em silêncio por um instante. Pensamentos negros haviam sido embutidos em suas almas. Foi difícil pra Allan não cair na gargalhada. Encarou Anderson seriamente, que se encolheu todo.

- O que você acha meu amigo? - Allan perguntou ternamente, como se falasse com um grande companheiro de infância.

Anderson ficou paralisado. Como era possível que alguém o apavorasse tanto? Alguém tão mais fraco. Reparou que todos o olhavam. Alguns parecendo prontos a cair na gargalhada. Ficou claro que sua batalha jamais foi secreta.

- Qual sua resposta, meu amigo? Corajoso ou covarde? Quem é você na verdade?

Allan já não podia mais esconder suas reais intenções. A "platéia" percebeu. O choque da história macabra foi trocado pela emoção de ver o combate de dois inimigos mortais. Anderson continuava imóvel. Alguns juram ter visto um tremer leve de mãos.

- Que foi medrosinha? O gato comeu sua língua?

- Deve ter sido o gato preto do Allan.

O gargalhar foi geral. Anderson achou que fosse chorar. Dia após dia, seu rival foi demolindo um pedaço seu. Tudo para chegar naquele momento. Allan ria. Saboreando sua vitória. Chegou a engasgar de tanto rir.

- Chega!!! - Anderson era ódio puro.

Por um instante todos pararam. Allan fez uma cara feliz e um sinal de paz e amor. Outra onda de risos veio. Anderson respirava como uma fera prestes a atacar. Alguns garotos reparando nisso se colocaram de prontidão. Allan havia conquistado a simpatia de todos. Estava claro que tudo não passava de uma piada. Um plano para mostrar a todos o verdadeiro caráter daquele que por anos tornou sua vida um inferno.

- É doloroso, não é? - Allan disse sério - Agora você sabe como eu me sinto...

Ninguém quis mais rir. Mais uma vez suas almas tinham sido atingidas em cheio. Todos se recordaram das vezes em que Allan havia sido ridicularizado. Vergonha foi o que veio a seguir, pois não havia um só entre eles que não tinha rido das brincadeiras e apelidos cruéis, que Allan teve que encarar por anos.

- Com licença! - Sério Allan virou as costas para se retirar da sala. Sua missão estava cumprida, o inimigo havia sido abatido.

Tudo ficou escuro por um instante. Allan caiu de joelhos no chão, atingido na nuca por um soco. Descontrolado, Anderson estava tentando resolver as coisas da única forma que sabia. A covardia do ato despertou o ódio de outro, que reagiu com a mesma violência. Valentões não estão acostumados a enfrentar quem sabe se defender. Anderson levou a pior e quando a briga foi apartada cuspiu um dente.

- Vocês vão me pagar!!!

Furioso, envergonhado. Anderson saiu correndo pela porta. Allan deu um pequeno sorriso. Por uma razão que não pode explicar uma dor estranha cortou seu peito.  Conhecia o lado da vitima, mas não conhecia o do agressor. Sentiu nojo de si por um instante, ao perceber que sua vingança o havia tornando talvez até mais imundo do que aquele a quem tanto odiava.  As pessoas ao seu redor sorriam para ele, o bajulavam. Suas vozes, no entanto não alcançavam seus ouvidos. Sua alma estava silenciosa, dolorida. Sua atitude causou irritação a principio, mas logo o olhar de piedade para com o inimigo mortal trouxe de volta o respeito com uma intensidade ainda maior. O coração que sempre desejou ter um amigo que fosse logo se rendeu. Allan então começou a tratar as pessoas com o mesmo carinho com que era tratado.

Acabaram resolvendo que fazer a festa seria divertido. Nem mesmo Allan acreditava nas histórias a respeito da casa.

 É só uma casa velha, nada mais... – disse Allan aos amigos.

Allan foi o primeiro a chegar. A fantasia de Drácula o protegia do frio da noite. A rua era ainda mais tenebrosa do que se podia imaginar. O vento frio soprava de um modo estranho, como se algo vivo respirasse oculto na escuridão. Era impossível não sentir medo, não imaginar coisas. Se casas abandonadas causam arrepios, o que se pode dizer de uma rua inteira? No final da rua havia um muro pintado de branco com uma estranha mancha. A mancha negra na parede branca envelhecida se tornava mais medonha a cada novo passo. Imaginou que não saberia qual das casas seria a certa. Percebeu que não havia como errar. A casa era a última à esquerda. Era como se ela sussurrasse seu nome, qual uma bela sereia chamando os marinheiros para morte. Por um instante teve a impressão de ouvir o vento assobiar uma palavra: “vá”. Fez de conta que não tinha ouvido nada. A mancha negra na parede branca agora era um rosto medonho. Olhar perverso. Sorriso anunciador de atrocidades inevitáveis. A casa ficava no final da rua, que possuía cerca de nove casas, todas simples, algumas até esperando o devido acabamento. Não havia como confundi-la com a casa do lado, ou a da frente, mesmo que ela estivesse entre um milhão de outras casas, você não erraria. Ela seria a única a gritar dentro da sua alma, como uma amante sedenta de desejo.  A velha armadilha dos senhores de tudo que é proibido levando o pobre mortal a se perder e gostar.  O rosto negro na parede branca sorria. Não dizia “seja bem vindo” e sim “você não vai mais voltar”. O caminhar pela rua das esperanças perdidas chegava então ao fim. Allan encarava a casa. A casa encarava Allan.

A casa não possuía portão. Um quintal de terra com uma árvore morta recebia os visitantes.  A casa ao fundo parecia adormecida. Não era um sono tranqüilo, mas um repleto de pesadelos. As recordações de um crime bárbaro estavam nas paredes descascadas, na porta de madeira apodrecida, na janela de vidros despedaçados. O vento se tornou mais frio. Uma tontura estranha tomou Allan. O quintal de terra se tornou florido, a árvore morta reviveu. Um menino e uma menina brincavam. A menina era loira, olhos azuis, um pequeno anjo a dançar no paraíso. O menino era gordo. Rosto simpático. Sorriso largo. Os dois vestiam branco. A menina subiu na arvore. O menino foi atrás. A menina gritou. O menino estava caído no chão. Poça vermelha ao redor da cabeça. Olhos arregalados falavam da morte da razão e do nascer da loucura.

- Por que você está chorando? – perguntou a menina ao garotinho triste sentado na porta de sua casa.

- Meus pais se foram?

- Foram pra onde?

- Não sei... Estou sozinho...

- Não, eu estou com você e vou estar sempre.  – a menina jurou e o garotinho triste sorriu.

A menina nunca mais pode viver sem aquele sorriso. Dedicou todos os instantes dos dias que vieram depois ao nascer daquele sorrir, que iluminava sua alma mais que o nascer do sol. Lembrar desse dia e de sua promessa fez a menina saltar da árvore. Ela estaria sempre com seu amado, mesmo que nas profundezas do reino de Hades.

-Você ta bem cara?

Allan levou uns segundos pra voltar à realidade. Não era o diabo quem havia tocado seu ombro, mas um de seus colegas fantasiados. Diante dele estava novamente à casa medonha e seu quintal com uma arvore morta.

- Estou sim... só dei uma viajada – Allan respondeu a seu misterioso amigo.

- Que bom...

Não era possível reconhecer a pessoa por baixo da máscara. Tratava-se de uma fantasia improvisada porcamente. O cidadão usava um terno branco, velho e mofado. A máscara de diabo era vagabunda. Um dos chifres era maior que o outro. Sua expressão era abobalhada, não transmitia medo algum. Trazia um garrafão de vinho que demonstrava ter sido aberto. Allan deduziu que o sujeito havia tomado uns bons goles. Só estando bêbado pra vestir uma fantasia tão mal feita. Não houve tempo pra interrogatórios, logo os outros convidados da festa macabra chegaram. Bruxas, vampiros, lobisomens, fantasmas de lençol, múmias de papel higiênico e gente que improvisou com saches de catchup.  Não faltaria comida e bebida, mesmo alguns tendo se juntado ao time de Allan que não trouxe nada.

- Então essa é a casa? – um par de olhos azuis perguntaram para Allan.

- É sim... – Allan estava enfeitiçado.

- Com o você sabe que é a certa?

- Ela é a única que chama por mim...

Os jovens contemplaram a casa por um segundo. Majestosa. Macabra. Mesmo o diabo de mentira entre eles se rendeu a idolatria.

- Galera, essa casa é sinistra, mas vamos à festa!!!

O rádio foi ligado no último volume. Pensamentos negros foram abandonados. E todos dançaram Rock N’ Roll sob a luz do luar. As garotas estavam lindas como nunca estiveram. O álcool que queimava a garganta e ascendia à alma assassinou a timidez dos rapazes. Na caixa mágica alguém gritava “Highway to Hell”. Allan descobriu que havia se tornado escravo da feiticeira que o beijava como se o mundo fosse acabar. O diabo de mentira dançava, curtia. Ninguém se importava com quem estava por baixo da mascara. Alguém então perguntou ao diabo:

- O que tem no garrafão?

- Um preparado especial, será servido na hora certa. – o diabo riu.

Ninguém mais fez perguntas. Um morto-vivo desligou o rádio.

- Meia-Noite...

Silêncio. Medo. Era chegada a hora. Velas foram passadas de mãos em mãos. A vela de Allan era a única vela negra. Seria então Allan quem iria conduzir a estranha romaria até a casa maldita. Allan beijou a mão de sua dama. A feiticeira achou pouco, puxou seu amante mais uma vez e o beijo na boca.

- Nos guie para escuridão, meu mestre...

Allan sorriu para feiticeira. Voltou-se então para os seus fieis.

 - Aqueles que quiserem salvar suas almas da danação que ofereço, partam agora! Os que ficarem... Espero que estejam prontos pra ter suas almas consumidas por pesadelos tenebrosos...

Cinco apagaram suas velas e se afastaram do grupo.

- Tolos... – sussurrou o diabo de mentira.

- Existe mais algum covarde entre vocês?

- Não mestre! – responderam os fieis.

- Sigam-me!!!

Allan cambaleou. Nunca tinha bebido tanto quanto naquela noite. A porta de madeira apodrecida rangeu como se fosse uma fera.

- Vá embora...

Allan olhou para trás. Só podia ser brincadeira de alguém. Era o que sua mente dizia. Um estranho medo invadia seu coração. Cada canto do seu ser implorava pra que ele não desse nem mais um passo.

- Não entre... Ele ainda está aqui...

Allan ignorou e invadiu a casa. Os outros o seguiram. Eram tantos que as luzes das velas iluminaram todo o cômodo, que não era tão pequeno quanto se imaginava. Era dividido em dois ambientes, do lado esquerdo uma mesa com quatro cadeiras, onde eram feitas as refeições, do lado direito uma sala de estar, com três sofás de dois lugares distribuídos em U, em frente ao qual uma estante e uma televisão quebrada. Havia manchas de sangue nas paredes, e no sofá que ficava em frente à TV quebrada. Provas de que algumas histórias são verdadeiras, mesmo quando medonhas.

- Me deixa em paz!!! – uma das fieis do estranho culto gritou.

Olhares assustados observaram a vela da garota vestida de fada apagar, como se a escuridão estivesse dando mais um passo em direção a suas almas. A garota soltou a vela, como quem abandona as esperanças e se entrega ao desespero. Tapou os ouvidos com as mãos. Enlouquecida gritava.

- Para! Para de rir! Para!

- Suzana, o que foi? – o rapaz vestido de múmia de papel higiênico foi o único a se aproximar.

A garota foi em direção a porta. Nervosamente girando a maçaneta. Todos viram o sangue que escorria de seus ouvidos. As mãos tingidas de vermelho, que também sujaram a maçaneta. A porta não abria de forma alguma, isso tornava o desespero da garota ainda maior.

- Suzana calma! – a múmia teve medo de chegar mais perto da enlouquecida.

A garota soltou a maçaneta.

- Pelo amor de Deus, me deixa sair!!!

A porta fez um estralo e lentamente se abriu. Sem pensar a garota correu para liberdade. O garoto vestido de múmia foi atrás de sua amiga. Todos estavam apavorados com a cena e trocavam olhares sem dizer uma só palavra. O diabo de mentira soltou o garrafão no chão e caminhou até a porta. Depois que a fechou riu do restante do grupo.

- Qual é o problema de vocês? Ou ela bebeu demais, ou os dois combinaram isso pra assustar a gente. No mínimo eles estão dando uns bons amassos por ai. Eu quero ver o restante da casa. E vocês?

Alguns começaram a rir, outros apenas faziam de conta que não estavam com medo e que não sentiam a atmosfera terrível que a casa emanava. Meninas se agarram aos amigos, dentre estes uns sentiram a oportunidade de terminar a noite “dando uns bons amassos” também.

- Vamos continuar, chegamos muito longe pra desistir!

Allan e sua vela negra foram em direção a um corredor que ficava exatamente no meio da sala.  O corredor terminava na pequena cozinha, ao lado da qual ficava o banheiro. Nas laterais do corredor ficavam os dois únicos quartos da casa. Do lado esquerdo de quem ia em direção a cozinha ficava o quarto da garota, do direito o dos pais. Não houve organização. Cada um se sentiu livre pra explorar a casa do modo que mais lhe agradasse. Os guarda-roupas ainda tinham as vestimentas de seus donos. Gavetas ainda possuíam objetos pessoais. Nos armários da cozinha ainda haviam talheres e tudo que uma cozinha precisa ter. Havia comida estragada na geladeira. O mau-cheiro fez com que ela fosse fechada sem que se olhasse direito seu interior. Tudo foi fuçado e revirado.

A bebedeira não permitia a Allan pensar direito. Nem mesmo sabia o nome da garota agarrada a seu braço, mesmo tendo estudado com ela um ano inteiro. Estava parado no meio do corredor. Ao seu redor pessoas se tornavam borrões.

- Você está bem meu amor? – a voz era distorcida, distante.

O rosto da garota era apenas uma mancha.

- Estou sim, eu só bebi demais...

Era mentira. Em algum lugar de sua alma, Allan sentia isso. Nada estava bem. Haviam forças na casa. Forças tão antigas quanto o próprio homem. Entre as figuras deformadas passando para lá e para cá, o diabo de mentira se destacava. A expressão abobalhada era agora a face apavorante do próprio senhor dos vales sombrios do inferno.  A tontura. A estranha tontura. Vozes de crianças. Diferente da imagem borrada dos vivos, lá estava à menina morta agarrada ao braço do menino gordo. As duas crianças tinham um olhar triste. As roupas brancas tinham manchas de sangue. Todos se foram. Restava apenas Allan, as crianças mortas e a escuridão. Pétalas brancas caiam do nada, tornando-se vermelhas ao tocar o chão. As crianças começaram a dançar, ao som de uma música que só podia ser ouvida em seus corações. Gargalhadas e sorrisos. Um amava o outro intensamente. Num rodopio os dois já não eram mais crianças. O casal apaixonado rodava e rodava. A bela moça não se importava com o quanto seu amado era feio. O garoto era obeso. Os cabelos curtos e bagunçados faziam contrastes com os longos e bem escovados cabelos loiros da garota. As roupas agora eram acinzentadas, mas as manchas de sangue continuavam lá. Manchas eternas do pecado original. Os dois espectros se beijam de modo pornográfico. Uma força invisível suga o garoto feio para escuridão. A garota grita. Tudo começa a pegar fogo.

- Allan, Allan!!!

A bela feiticeira está pronta pra começar a chorar. Allan volta vagarosamente de seus delírios.

- Calma! Eu estou bem.

A feiticeira abraça Allan com força. Por um instante achou que iria perde-lo para sempre.

- Me desculpe, eu não sei seu nome...

- Não tem importância, só me abraça...

A excursão pela casa assombrada continua. Todos passam por Allan e sua amada sem lhes dar importância. O diabo de mentira, no entanto observa a tudo e a todos. Seu garrafão de vinho ainda intocado. Logo chegaria à hora.

- Allan vamos embora! Esse lugar faz mal pra você...

- Não se preocupe, vai ficar tudo bem!

Mais uma vez algo no fundo da alma dizia a Allan que aquilo era mentira. “Deixe de bobagens, meu velho! Você só bebeu demais”, disse a si mesmo. Allan não podia ir embora. Precisava ir até o fim. Arrastou sua amada para o quarto que eram dos pais da garota assassinada. Um arrepio percorreu sua espinha. A doce feiticeira apertou sua mão com força. Inacreditável como gestos simples são capazes de nós encher de força pra caminhar. O conforto não durou muito. De repente tudo ficou cinza como se Allan estivesse preso em um filme preto e branco. Podia ouvir as pessoas ao seu redor, mas não as via.

- Cuidado Drácula! Você tá mesmo chapado, heim? 

- Desculpa...

Allan, nem mesmo viu em quem tinha tropeçado. Era como se Allan tivesse viajado no tempo.

- Allan querido...

- Eu só estou um pouco tonto... não me deixe cair.

Allan se apoiou em sua amada para não cair. Não era dono dos seus olhos. Aquele que conduzia sua visão estava parado nos pés da cama de casal, observando as duas pessoas que dormiam tranquilamente. O homem tinha por volta de setenta anos, cabelos brancos, barba por fazer. A mulher parecia um pouco mais nova, os cabelos tingidos de preto escondiam a idade e revelavam sua vaidade. O homem estava virado pra cima, boca aberta, fazendo um som medonho. A mulher estava encolhida em um canto, como se fosse um feto, enrolada no lençol branco. O homem disse alguma coisa. Allan não pode ouvir, mas sentiu a onda de ódio que tomou o dono de sua visão. Viu o machado se erguer e amputar num único golpe a perna direita do homem. O grito de dor acordou a mulher que caiu da cama. O assassino não deu importância. Dirigiu-se ao velho e tantas vezes quanto teve vontade golpeou com machado. Parou por conta do cansaço. Do homem velho restavam pedaços e uma poça de sangue, cujo cheiro fez o estomago de Allan embrulhar.  A mulher encolhida num canto do quarto, paralisada de medo encarou o assassino. Lágrimas e pavor compunham seu semblante.

- Por favor... não me mate!

O assassino deu um passo na direção da mulher, que correu. Bateu feio louca na porta do quarto da filha com as duas mãos. O assassino ria. A porta não foi aberta. Forçou a maçaneta. Teve a mão amputada. Correu pra cozinha deixando um rastro de sangue no chão. Calmamente o assassino a seguiu. Pegou a faca em cima da pia. Conseguiu acertar o assassino no estomago. O mostro lhe deu um soco. Caiu atordoada no chão. Seu medo aumentou ainda mais ao ver o assassino retirar a faca como se não fosse capaz de sentir dor alguma. O assassino olhou a faca suja com seu próprio sangue por um segundo e sorriu. Ficou em dúvida entre ela e o machado. Considerou que a faca seria mais divertida e começou seu trabalho. Os primeiros golpes não foram pra matar. Queria ouvir sues gritos. Vê-la sangrar. Quando ficou entediado cravou a faca no coração da vítima. Olhou por um instante o corpo. Uma nova onda de raiva o tomou ao se lembrar de como a velha falava mal de tudo e de todos. Desencravou a faca. Abriu a boca da velha morta e com calma cortou a língua. Virou o cadáver e enfiou a língua amputada no seu ânus. Gargalhou descontroladamente. Faltava uma. Foi até o quarto da garota. Gentilmente bateu na porta. Ficou paralisado diante da beleza que encarou quando ela se abriu. A garota estava vestida como se fosse para um baile. Seu perfume tinha cheiro de rosas. O vestido era do mesmo tom de vermelho de seu batom. O olhar era louco, maligno.

- Vamos ficar juntos para sempre, eu juro!

A louca beijou o assassino e ficou de quatro. Sorriu pornograficamente. Jogou os cabelos pra frente par deixar o pescoço livre para o golpe que a libertaria. Sua cabeça rolou pelo chão frio. O assassinou pegou a cabeça decepada na qual um sorriso doentio ficaria gravado pra sempre. Abraçou a cabeça e chorou. Foi para sala e se sentou de frente para TV. Colou a cabeça no colo e admirou por um segundo o seu olhar morto. Com os próprios dentes rasgou os pulsos. Veio a escuridão e o sono profundo.

- Hora de acordar seu dorminhoco!

Abriu os olhos bem devagar. Diante dele estava o corpo com a cabeça decepada.

- Como eu tinha te prometido, vamos ficar juntos pra sempre... Aqui no inferno...

Allan voltou a si. Horrorizado.

- Allan, o que foi?

- Vamos embora daqui agora mesmo!

- Tudo bem!

Havia chegado a hora, sentiu o diabo de mentira. Sem dizer uma palavra ofereceu a todos um gole do garrafão de vinho. Estavam bêbados demais pra questionamentos. Todo homem que deixa de questionar a si e a tudo que está ao seu redor é um homem morto. O diabo de mentira sorria por baixo da máscara vagabunda. Allan e sua dama foram os últimos. A bela feiticeira deu seu melhor gole no garrafão. Havia feito isso muitas vezes ao longo da vida tentando provar que bebia tão bem quanto qualquer homem.

- Sua vez meu amigo!

Aquela voz. Allan conhecia aquela voz.

- Está com medo? Corajoso ou covarde? Quem é você de verdade?

- Como é que é?

- Allan, não beba...

A bela feiticeira caiu nos braços de seu amado. Espumando, convulsionando. Allan olhou ao redor. Seus amigos estavam todos no chão, alguns já mortos, outros imploravam pra não morrer. O diabo de mentira gargalhou. Antes que Allan pudesse fazer qualquer coisa foi atingido na cabeça com o garrafão de vinho. Tentou se levantar. Precisava se levantar. Não havia como.

- Bêbado demais pra se defender meu amigo? Que bom!

O diabo de mentira retirou então sua máscara.

- Anderson?

- Não é óbvio? Quem mais seria? Achei que você fosse esperto...

- Seu desgraçado...

- Você devia ter bebido. Mas tudo bem. Vai ser mais divertido assim.

Anderson retirou um canivete do bolso. Caminhou lentamente até Allan que gritou em pânico. Até quis esfaquear seu inimigo lentamente, mas o ódio não permitiu. Toda sua fúria veio à tona. Conseguiu se conter antes que sua vítima desse os últimos suspiros. Concentrou seus esforços em arrancar os olhos. Nunca mais aquele olhar maldito que o enchia de medo o atormentaria. Deu mais trabalho do que imaginou, porém teve êxito. Chutou o cadáver sem olhos várias vezes. Os globos oculares caídos no chão pareciam olhar pra ele. Anderson estava louco. Apanhou os globos e os engoliu. Deu mais um chute no cadáver de seu inimigo e apanhou o garrafão de vinho. Olhou para os mais de quinze corpos espalhados por todos os lados e se sentiu orgulhoso. Foi um serviço bem feito. Ainda havia vinho envenenado no garrafão. Bebeu tudo e depois gargalhou. Jamais seria pego. Veio o sofrimento e depois a escuridão.

- Ei! Ei diabo de mentira! Acorda!

Anderson acordou assustado. A garota morta vestida de vermelho segurava a própria cabeça.

- Fica longe de mim!

- Eu vou! Na verdade tem um pessoal aqui querendo falar com você.

Da escuridão vozes clamavam por justiça.

- Assassino! Você tem que pagar!

Um a um eles foram surgindo.

- Não pode ser! Vocês estão mortos! Mortos!!! Não podem me fazer mal!

O último a surgir não tinha olhos. Ainda assim encarava Anderson como se pudesse vê-lo.

- Sim “meu amigo”! E você também está! Lamento informar, mas crime nenhum fica sem castigo...

- Galera, vamos começar a nossa festa! Quem vai ficar com as tripas?

Naquela noite o carrasco se descuidou de seu machado, e pagaria o preço por toda a eternidade.

 

Por Jeremias Alves Pires 


6 Comentários

  1. Grande Jeremias!

    Um texto repleto de reviravoltas , muito bem construído e... terrivelmente assustador e macabro!
    Você conseguiu me envolver na narrativa a ponto de visualizar na minha mente, cada cena, cada gesto, cada acontecimento.

    Loucura, vingança, alucinação , realidade..., maldições... devaneios...
    Sangue...vinho...
    Tudo junto e misturado, porém , escrito magistralmente.

    A lição que fica é que, além de não desprezarmos aos avisos das nossas consciências, devemos nos auto impor limites.

    Ultrapassar o desconhecido pode ser um erro fatal.
    Cada um do seu modo, Allan e Anderson, ultrapassaram os seus limites e pagaram caro...

    Estou estupefato!

    Parabéns!

    PS: Sugiro colocar uma observação de conteúdo para maiores de dezoito anos. em virtude de certas passagens no texto.

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    1. Oi... Muito obrigado pela analise. Vou por um aviso nos meus textos... rs. Essas dicas que vocês dão ajudam muito a nós autores da mind.

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  2. Muito bom o conto... você mostra aqui como o terror é uma vertente que você domina muito bem.
    Meus parabéns!

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    1. Valeu.... Tenho tentado outros estilos, mas o terror está na minha veia... rs.

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  3. Rapaz... tenho dois grandes amigos chamados Allan e Anderson. Pensei neles na hora... kkkk

    Que texto aterrorizante.

    Você é bem cruel na sua escrita. Ela faaz a gente perder o ar de tanta tensão!!!

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  4. Valeu meu caro. "A Festa", em especial foi escrita em um período muito dolorido da minha alma, então o texto acabou ficando forte pra caramba. A grande verdade sobre mim, é que escrevo por desabafo...

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