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Quintessência - #3

 

Capítulo #3: O Encontro

“Quintessência... diversas questões precisam ser resolvidas para alcançar a plenitude. ”

Dois anos. Tempo suficiente para o dedicado rapaz. Tempo que o mesmo usava em busca de se aperfeiçoar nas artes marciais, no domínio da espada, na agilidade e sobrevivência; além de também amplificar a sua sintonia espiritual com o seu mentor. Passava horas a fio focado.

Mas enquanto treinava para ser um perfeito guerreiro, também progredia dia após dia como humano. Todos os dias fazia suas preces pelo bem de seus entes queridos, vivos ou não. E também era um protetor para a pequena Yuna, que desde o incidente com a criatura maligna que capturava espíritos, permaneceu com ele no templo. Durante esse tempo, eles se alimentavam dos vegetais e tubérculos que cresciam aos arredores do templo; provavelmente plantados pelos antigos moradores e que sobreviveram graças ao clima puro do local e também, segundo a crença de Ken, pela bênção de Genbu.

Yuna era uma criança, mas sempre se mostrava interessada e solícita quanto ao seu “tio Ken”. Ajudava com o que podia: desde os afazeres domésticos até os treinamentos. Vez por outra se arriscava a imitar tudo o que o rapaz fazia, tendo sucesso ou não; fossem os movimentos de artes marciais, fosse o manejo da espada (para o qual ela usava um cabo de vassoura) ou até as meditações que geralmente a deixavam entediada e por consequência a faziam desistir, ou cair no sono. Até mesmo Ken se admirava com a coragem e audácia da pequena Yuna.

KEN – Por que você quer tanto aprender essas coisas, Yuna?

YUNA – Porque eu quero ser forte. Se eu for, ninguém mais vai me machucar: nem a mim nem a Mima. E também, porque eu admiro muito você, tio Ken!

Ken ficava prosa ao ouvir isso. Ele nunca se viu como uma espécie de ídolo para ninguém, mas sem dizer uma palavra, prometeu a si mesmo que faria o possível para jamais decepcionar sua aprendiz. A gata Mima era cada vez mais afeiçoada a ambos, e sempre acreditou-se que gatos tinham uma sensibilidade para coisas além do que os olhos comuns podem ver.

Então, Ken sentiu que seu tempo de permanência naquele santuário havia terminado. Ele chamou Yuna para conversar, e a menina prontamente se dispôs com a sua companheira de sempre nos braços.

KEN – Yuna, amanhã eu devo voltar para junto dos meus. Tenho uma grande responsabilidade, você sabe. Eu nunca disse a você, mas tenho duas irmãs me esperando em algum lugar da cidade.

Yuna não sabia como lidar com aquilo. Sua pouca idade lhe fazia pensar em inúmeras coisas naquele momento. Mas ela tinha uma certeza: não queria mais ficar sozinha

YUNA (temerosa) – Você vai me levar?

KEN – Você quer ir comigo?

YUNA – Sim, mas eu não sei se suas irmãs vão gostar de mim e da Mima. Eu não quero ficar sozinha de novo, tio Ken.

Ken olhou para os olhos encharcados de Yuna e sorriu. Realmente, valia a pena também proteger aquela criança tão devotada e corajosa; valia a pena manter ela consigo, porque assim ele teria mais motivos para sempre seguir em frente.

KEN – Não seja por isso, Yuna. Minhas irmãs adoram crianças. Sakura, por exemplo, só tem corpo de mulher: ela procura sempre sorrir e é divertida. Tomoe, a minha irmã mais velha, é mais séria, e ela não gosta muito de gatos; mas também é uma pessoa espetacular e não enjeitará você ou a Mima por via das circunstâncias.

Yuna se alegrou e Ken abraçou calorosamente as duas. Já era hora de dormir, e Yuna se acomodou junto com Mima, não demorando a pegar no sono. Ken, por sua vez, recolheu-se ao seu canto e desembrulhou a tabuleta, apertando-a contra o peito.

KEN – Mestre Genbu, rogo que me guie pelo caminho certo amanhã. Dai-me o necessário para proteger a Yuna, e a Mima também.

Logo, o rapaz adormeceu. No outro dia, ao acordar, se deparou com as coisas arrumadas: Yuna tinha acordado mais cedo, se antecipado e feito todos os preparativos para a partida, o que o deixou bastante satisfeito. Do lado de fora, batatas assavam nas brasas da fogueira.

YUNA – As batatas são para a viagem, tio Ken. Vamos só esperar que elas fiquem no ponto, depois arrumamos e vamos embora. Mas... você sabe para onde ir?

KEN – Ainda não sei, Yuna. Mas confio que o Mestre Genbu mostrará o rumo a ser tomado. Vamos descer a montanha logo que terminarmos o que falta. Enquanto isso, vamos fazer uma prece aqui.

Ken e Yuna então fizeram uma prece no altar, agradecendo por sua permanência ali naquele lugar. Era provável que eles não voltariam mais ali, mas Ken sabia que a gratidão era essencial para a evolução de cada um. Quanto mais se é grato, mais se é conquistado. E isso ele estava ensinando à Yuna.

Enfim, o momento de partir havia chegado. Com as batatas devidamente arrumadas na bagagem, e todos os preparativos feitos, eles deixaram o santuário e resolveram descer a montanha pelo lado oposto ao que haviam subido na chegada. Yuna parecia empolgada em sair dali depois de passados dois anos junto com o Ken. Ken estava preocupado e ao mesmo tempo ansioso para voltar para junto de suas irmãs e continuar a missão que lhe foi dada por Genbu. Mima apenas os acompanhava; ora no colo de Yuna, ora nos ombros de Ken.

Mesmo do outro lado só se via um vale denso, e para achar a descida era necessário ainda passar pela nascente da cachoeira que ficava a cerca de 150 metros do santuário. Ken sempre com a espada na mão, e Yuna com o cabo de vassoura e um pano amarrado na ponta, no qual ela havia armazenado as batatas assadas.

Eles chegaram à nascente, e viram a descida oposta da montanha. Lá ainda se via o vale, mas bem ao longe podia se ver uma praia com um farol em uma de suas extremidades.

KEN – Não vai ser moleza, mas acho que se chegarmos até aquela praia, nós vamos conseguir pegar o rumo da cidade.

YUNA – Tio Ken, é muito longe daqui! Levaremos dias até lá!

KEN – Lá embaixo existe um vale, e uma enorme floresta. Mas, é assim que tem que ser. Eu nunca disse que seria fácil, Yuna.

YUNA (motivada) – É... mas mesmo assim, estou com você, tio Ken! Só tem uma coisa que me incomoda e eu quero saber... por que não voltamos pelo mesmo caminho até o santuário?

KEN – O rumo que temos a seguir é este, Yuna. Não voltaremos por aquele caminho, porque ele não faz sentido agora. Não me peça para explicar isso, mas é o que Mestre Genbu quer.

A menina não questionou mais nada, apenas acatou as palavras do seu companheiro de aventuras e seguir ao seu lado. A descida era íngreme e cheia de espinheiras, mas Yuna, esperta como era, usava seu cabo de vassoura para afastá-las sempre que era inevitável o contato com elas. Volta e meia se via algum roedor correndo por entre os arbustos, o que despertava a curiosidade de Mima; porém sua dona era cautelosa e evitava que o interesse aguçado da felina resolvesse desviar-lhes do foco. Pássaros e insetos, como borboletas, abelhas e joaninhas também eram vistos frequentemente durante a descida.

Não levaram mais do que uma hora para chegar ao pé da montanha. Ken e Yuna evitavam falar, pois ambos sabiam que a disciplina era fundamental quando a situação era inesperada. Mima volta e meia miava quando seus instintos aguçavam. E então, eles adentraram o vale.

Lá, as árvores eram imensas e geralmente cobriam o céu. A vida animal ainda podia ser vista, tão cautelosa quanto os visitantes. Em outros tempos, Yuna com certeza ficaria interessada em se aproximar dos bichos, persegui-los, e brincar por ali. Mas então, ela era uma criança focada e determinada a seguir o exemplo de Ken; ele nunca havia dito tal coisa, mas ela se considerava a sua discípula. Em dado momento, após horas caminhando, ambos resolveram dar uma pausa em uma clareira.

KEN – É possível que sejamos os únicos loucos a entrarmos aqui. Qualquer um se perderia.

YUNA – E como sabe que não estamos perdidos?

KEN – Do alto da montanha, eu analisei. O que temos de fazer é sempre seguir em frente até chegarmos na floresta perto da praia. “Sempre em frente”, não se esqueça.

YUNA – Sempre em frente, tio Ken.

Yuna pegou duas batatas da bagagem, uma para si e outra para Ken. A dela, tirou pedacinhos para Mima; mas a gata não apreciava muito vegetais. Era difícil aquela reserva ser o bastante para chegarem ao objetivo; mas era o que tinham, e o que podiam levar.

Após a breve refeição e o breve descanso, eles seguiram adiante. Aquela tarde foi bem longa, mas Ken sabia que sequer havia chegado na metade do caminho; até porque, mesmo com as árvores cobrindo, podia se ver uma fumaça distante subindo aos céus. Já começava a escurecer, e Yuna começou a ficar assustada, pois era a primeira vez que ela passaria a noite dormindo numa floresta. Chegou um ponto de que o único som que se ouvia era o das cigarras anunciando o fim da tarde e, ao escurecer de vez, os grilos cantavam livremente; fora isso, todos os outros que os acompanharam durante o dia pareciam terem ido descansar.

Com a escuridão chegando junto com o frio influenciado pelo ambiente, Ken resolveu fazer uma pequena fogueira no local mais aberto possível justamente por receio de começar um incêndio. Ele e Yuna sentaram-se próximos a fogueira e se acomodaram juntos.

YUNA – Acho melhor ficarmos juntos aqui, tio. Uma floresta à noite não é segura para pessoas.

KEN – Eu sei disso. Se você dormir, pode ficar tranquila que eu tento vigiar o seu sono enquanto eu puder.

Passaram um tempo ali, a menina deitada no colo do rapaz, enquanto abraçava a gata. Yuna começou a ficar sonolenta, mas algo não muito claro chamou sua atenção.

YUNA – Tio Ken, isso é um sonho ou você está me escutando?

KEN – Por que, Yuna?

YUNA – Se não estou sonhando, acho que tem alguém ali na frente.

Ken imediatamente ergueu a cabeça, e de fato havia um homem ali na frente deles, alto e imponente. Mas como estava escuro, mal dava para vê-lo bem, já que ele não estava tão próximo deles.

KEN – Quem é você? Está perdido?

HOMEM – O que um moleque como você e uma criança fazem aqui?

KEN – Moleque é o diabo que o carregue! Por que você não mostra a sua cara?

HOMEM – Afinal, por que estão aqui?

KEN – Não vou responder mais nada enquanto você não se mostrar!

O homem então deu mais uns passos adiante e se revelou. Era um homem alto, bem mais velho, com algumas cicatrizes no rosto. Foi possível ver graças à luz da fogueira.

HOMEM – Cheguei até vocês porque, um pouco mais à frente, vi um brilho vindo desta direção, pensei que fosse um incêndio ou algo assim. Bem, e quem vocês são?

KEN – É, você não tem cara de bandido não. Meu nome é Ken, e essa aqui é a minha escudeira, a Yuna.

HOMEM – Entendo. Bom, você também não parece perigoso. Eu sou Joji, é um prazer conhecê-lo.

E o homem, por mera formalidade, se aproximou do rapaz para apertar-lhe a mão. Bastou o contato de ambos, para que mais uma vez o tempo parasse e eles pudessem ouvir aquele mesmo mantra ressoar em um tom mais suave envolvendo-os num turbilhão de sensações. Os olhos de ambos cintilaram, e é como se eles pudessem ver um céu estrelado ao seu redor: e imediatamente aquelas estrelas começaram a se mover trazendo a realidade de volta e revelando-se como vagalumes.

KEN – Não nos conhecemos, cara... mas até parece que, você... eu...

JOJI – É claro, admito que estou espantado com isso.

Ambos começaram a ver os vagalumes que surgiram de repente ali. Yuna abriu os olhos ainda sonolenta, e se encantou por aquela visão. Nem Ken, nem Joji sabiam explicar exatamente aquilo, mas seus espíritos haviam entrado em sintonia a partir daquele momento; e então, entraram em transe.

GENBU (para Ken) – Meu guardião, enfim, encontraste um companheiro.

SEIRYU (para Joji) – Sim. Assim como tu és o meu, este rapaz é outro guardião.

KEN – Então, foi por isso que nos encontramos aqui.

JOJI – É claro... depois do que aconteceu, eu fiquei aqui nesta floresta.

SEIRYU – Assim escrevemos, uma vez que aceitastes o nosso caminho. Vossa reunião foi obra nossa; e agora devem continuar juntos.

GENBU – São espíritos distintos, porém de grande valor; e sabemos que conseguirão grandes êxitos juntos como guardiões. Mas jamais devem se esquecer...

SEIRYU – ...as decisões sempre serão vossas, e mediante cada uma delas, nós mostraremos o caminho.

A breve conversa logo foi interrompida, e eles voltaram a si.

KEN – Mestre Genbu... Seiryu... é isso! Você é um guardião assim como eu, então, eles nos colocaram aqui. Me pergunto o que virá em seguida.

JOJI – Ainda preciso entender muita coisa. Mas, se você é um guardião assim como eu, certamente há um motivo para isso tudo. E teremos a chance de descobrir isso juntos, se você quiser. (se sentando do outro lado da fogueira) A propósito, Ken, certo? Pode me responder porque você está aqui?

KEN – Eu estou indo em direção àquela praia. Preciso chegar na cidade, e procurar pelas minhas irmãs.

JOJI – Irmãs?! Bem, você tem alguma ideia de onde elas possam estar?

Ken meneou com a cabeça, e olhou para o rosto de Yuna, que já havia voltado a dormir. Ele realmente não sabia por onde começar; apenas que teria de ir para a cidade. Joji compreendeu aquela reação, e começou a observar melhor o rapaz. Ele realmente parecia cansado e perdido; mas de qualquer forma não demonstrava a menor hesitação.

KEN – É, eu não faço ideia; mas confio no Mestre Genbu. É estranho falar disso com outra pessoa assim, porque só quem sabe disso são minhas irmãs... Mas enfim, eu noto que você veio da direção para onde vamos. Pode nos dar uma força? E além disso, o que você faz aqui na floresta?

Joji abaixou a cabeça, e pensou em tudo o que havia acontecido mais cedo. Pela força das circunstâncias, ele era capaz de filtrar suas emoções de modo a parecer frio; sua antiga profissão exigia tal postura, e ele acabou adotando isso para a vida. Ele acreditava que sempre deveria estar firme, aconteça o que acontecesse.

JOJI – Francamente, eu nem sei como eu vim parar aqui. Eu prefiro não falar sobre o que aconteceu antes, me desculpe.

Naquele momento, Joji retirou um revólver de dentro do sobretudo, e ficou observando-o.

KEN – Então, você anda armado?

JOJI – É, tem muita gente que quer a minha cabeça, rapaz. E você, uma espada também é uma arma!

KEN – A espada é uma relíquia familiar. E eu também preciso dela para seguir o meu caminho; na verdade, muito do que eu sou ter a ver com isso.

JOJI – Sabe manejá-la bem?

KEN – Claro que sei! Aprendi muito no seio familiar, e mais ainda sozinho lá no santuário onde fiquei desde a última vez que vi minhas irmãs.

JOJI – Eu também sei usar bem qualquer arma de fogo. Afinal, eu sou um ex-policial: aprendi muito para fazer o meu trabalho. Bem, vejo que você está bem cansado, Ken. Durma, eu ficaria de vigia aqui.

KEN – Você vai mesmo ficar?

JOJI – Não tenho nada a perder, tenho? É melhor, eu consigo lidar com o sono melhor do que você, aparentemente. Descanse, e amanhã será um novo dia.

Com isso, Ken ainda observou o homem, mas a expressão acolhedora de Joji o tranquilizou, e ele se acomodou ao lado de Yuna, adormecendo em seguida. Joji permanecia com a arma nas mãos, e observava tudo ao seu redor: Ken, Yuna, a fogueira, os vaga-lumes. Volta e meia um ou mais morcegos sobrevoavam o local, mas Joji era um homem de fibra e não se assustava com facilidade.

As únicas coisas que de fato o incomodavam eram os fatos ocorridos anteriormente: o sequestro armado por Kido, que resultou num confronto entre ambos ocasionando a morte de uma das reféns e o suicídio do criminoso. Tais lembranças o incomodavam; apesar de ter conseguido resgatar a pequena Kokoro, a visão da inerte Hotaru caindo nas chamas não lhe saía da cabeça. Quanto mais pensava naquilo, mais se sentia incomodado e apertava o revólver nas mãos evitando dispará-lo.  Em dado momento, o manto do sono começou a envolvê-lo, e ele adormeceu.

 

Joji estava naquela floresta novamente e, podia ver claramente Ken e Yuna repousando; mas qual não foi sua surpresa ao ver que ele também repousava do outro lado da fogueira. De repente, uma jovem surgiu por detrás dele, emanando uma energia acolhedora. Ele não a conhecia, mas se tratava de Kaoru, a finada irmã de Ken.

KAORU – Saudações, Joji Sasaki. Sei que, apesar do seu estado físico, você não está bem; por isso fui incumbida de vir falar com você.

JOJI – Ei, espera, nós já não nos conhecemos? Mas, você parece mais jovem...

KAORU – Na verdade, nunca nos conhecemos. Quem você conhece é a minha irmã gêmea, Sakura. Eu sou Kaoru Mizushima, e não faço mais parte do plano terreno há muito tempo. Este rapaz que dorme aqui é meu irmão caçula, Ken.

JOJI – Então, você é irmã das senhoritas Sakura e Tomoe, que estão na escola da Kaname? E elas são as irmãs que ele procura?

KAORU – Exatamente, Joji. Por isso tive a autorização superior para que você o conduza de encontro a elas. Mas não é só por isso que estou aqui. Eu vim acompanhar alguém que com certeza você conhece muito bem.

Então, um rapaz surgiu por detrás das sombras e parou ao lado de Kaoru. De fato, Joji o conhecia muito bem; e ele não pôde conter a emoção. Por vezes, as pessoas acabam cedendo a postura firme quando algo muito profundo se revela.

JOJI – Osamu?!

OSAMU – Enfim, meu irmão, posso falar com você novamente.

Joji não sabia o que pensar, como reagir, ou o que falar. Já eram passados oito anos desde a última vez que tinha visto o irmão mais novo com vida; um outro fato que pesava em sua consciência.

OSAMU – Joji, eu sei que você não se conforma com o que houve no passado. Sei que não aceita as coisas como aconteceram, e além dessa culpa, também lhe pesa o que aconteceu hoje. Sabe, meu irmão, por vezes você quase se desviou do caminho por conta desse pesar; mas quero que compreenda que o destino existe, e muito dele depende de nossas escolhas.

JOJI – Eu perdi você, Osamu, porque fui incapaz de deter o Kido! Se não fosse por isso, eu poderia ter protegido você! Nosso pai não teria morrido de desgosto e... agora... ele não teria causado a morte da Hotaru!

OSAMU – Entenda que, minha morte terrena foi consequência de minha prepotência. Eu já era adulto, e minhas decisões, por mais incoerentes que fossem, não estavam em suas mãos. Infelizmente, o papai jogou a responsabilidade em cima de você por querer culpar alguém. Mas hoje eu posso garantir que no plano superior, ele compreende tudo corretamente.

JOJI – Então, você o viu por lá?

OSAMU – Vi sim. Fui eu quem o recebi, irmão. Ele já está bem.

JOJI – Você também viu a Hotaru? E... Reina?

OSAMU – Não. Não as vi. E isso é algo que está além de nossa compreensão, mesmo lá, onde podemos entender melhor muitas coisas que no plano terreno jamais poderíamos. Meu irmão, quero que retire esse fardo de culpa que carrega, para que possa viver em paz e também seguir o seu caminho escolhido. Sim, eu sei muito bem sobre o seu dever como guardião de Seiryu: afinal de contas, você recebeu minhas chaves quando eu morri naquelas chamas.

JOJI – Me perdoa?

OSAMU – Você fez o seu melhor para todos ao seu redor. Infelizmente, nem todos entendiam; e eu era um deles. Eu precisei morrer para entender os seus sentimentos, e o quanto você é um homem incrível. Continue trilhando esse caminho, meu irmão. Sei que nunca disse isso em vida, mas agora eu digo sem vacilar: eu te amo, Joji. Me orgulho de você, e sou grato por ter sido o seu irmão caçula.

JOJI – Eu também te amo, meu irmãozinho.

As palavras de Osamu ecoavam por cada parte de Joji como se o curassem de feridas profundas que há muito sangravam. Pela primeira vez em muito tempo, tanto que ele sequer lembrava quando, Joji se sentiu em paz. Um fardo enorme havia cedido e se dissipado a partir dali.

KAORU – Joji, você não está mais sozinho. Quando conhecê-lo melhor, verá que Ken poderá ser como um irmão mais novo para você. Minhas irmãs também são pessoas maravilhosas, pode ter certeza. Todos vão cuidar e proteger você, em nome dos laços criados.

JOJI – Obrigado, Kaoru. Nem nos conhecemos, mas você fez mais por mim do que qualquer um nessa vida.

KAORU – Agora, depois de curar essas feridas, você poderá fortalecer seus laços com o seu mentor, Seiryu, e também com os seus companheiros. A plenitude é o primeiro passo para alcançar a evolução e...

Naquele momento, aquela visão começou a esvanecer. Joji começava a despertar, cutucado e chamado pela pequena Yuna com o cabo de vassoura.

JOJI (gritando) – Kaoru! Osamu!

Ken não pôde evitar a surpresa ao ouvir Joji dizendo o nome de sua finada irmã. Logo ele se levantou de onde estava deitado e se aproximou do homem.

KEN – Você disse “Kaoru?!” Foi isso mesmo?!

JOJI (ainda sonolento) – É... ela estava aqui. Ela é a irmã gêmea da Srta. Sakura que trabalha na escolinha da Professora Kaname...

KEN – O quê?! Você conhece a Sakura?! E a Tomoe também, não é?! Por que não me falou?!

JOJI – E como eu saberia? Eu nem imaginava que você era o irmão delas. Elas estão morando e trabalhando na escolinha que eu falei... a sua irmã, Kaoru, me pediu para levar você até lá...

Ken não poderia ter mais sorte, ele pensava. Ficou tão feliz que imediatamente abraçou o seu mais novo companheiro. Mas aquele abraço era especial: era como se revigorasse a ambos.

KEN – Pronto! Vamos partir, Yuna! O moço aqui sabe onde minhas irmãs estão e vai nos levar lá!

JOJI – É claro. Mas você, sua pestinha, não volte a me cutucar com esse cabo de vassoura; porque da próxima vez eu ponho ele atravessado dentro da sua blusa.

KEN – Vai ficar igual a um espantalho! Hahahah!

Yuna se zangou e começou a sibilar a madeira contra Ken, que se defendia com a espada embainhada. Joji se divertia com aquela situação, e parece que tudo a partir daqueles momentos teria um sabor e uma visão diferentes de antes.

De repente, os olhos de Ken cintilaram, e ele se lembrou de algo.

KEN – Espera! Mestre Genbu... é verdade! Não precisamos percorrer este vale até o fim, caminhando! Eu tenho quatro chaves de Genbu, e posso usar uma delas para isso!

JOJI – É claro! Eu também posso usar uma chave de Seiryu!

Dito isso, os olhos de Joji também cintilaram. Ken segurou a gata Mima, e Joji, segurou Yuna no colo. Ambos se posicionaram de frente para o caminho a seguir, e gritaram simultaneamente.

KEN – Wei!

JOJI – Kang!

E ambos saltaram adiante, sobrevoando em segundos o que se levaria dias para passar. Logo, chegaram próximos ao limite da mesma, antes da estrada e, consequentemente, da praia.

Os escombros do farol estavam sendo revirados mediante o ocorrido no dia anterior. A perícia investigava minunciosamente, e então Joji se aproximou. Lá estava o mesmo casal de policiais do dia anterior, prestando auxílio nos procedimentos.

JOJI (para a policial) – Oficial Risa, bom dia. Como estão as coisas por aí?

OFICIAL RISA – Bom dia, Joji durão. Primeiro, uma das reféns de ontem, Kokoro Ito, está no hospital; mas fora de perigo. Ela inalou fumaça, mas vai ficar bem. A Prof.ª Kaname Baba também está no hospital em observação por conta da coronhada, mas até então, fora de perigo.

OFICIAL TETSUO – E aqui, Joji durão, só encontramos algumas armas queimadas, lixo e um corpo carbonizado.

JOJI – Um corpo?!

OFICIAL RISA – Sim, um corpo. Normalmente seria difícil identificar pelo estado, mas não é difícil saber de quem se trata. É do criminoso, sem dúvida, já que ele estava com uma arma junto; mas os exames vão comprovar.

JOJI – Não tinha outro corpo nos escombros?

OFICIAL TETSUO – Ainda não terminaram de vasculhar, mas nem há muito mais o que procurar. Posso afirmar que só havia um corpo ali.

JOJI – Então, o que aconteceu com a Hotaru? O que será que aconteceu com o corpo dela?

OFICIAL TETSUO – Ontem mesmo a área foi isolada e vigiada até que a equipe chegasse. Mesmo tendo sido um incêndio, seria improvável um corpo desaparecer sem deixar algum vestígio, mesmo que fosse só a ossada.

OFICIAL RISA – Ou seja, podemos concluir que a outra refém, a Srta. Hotaru, está desaparecida. Mas não se esqueça, Joji durão, de ir na delegacia prestar depoimento sobre o ocorrido.

Aquilo foi um choque para Joji. Ele simplesmente saiu caminhando, desnorteado, sem compreender o que afinal havia acontecido. Como o corpo de Hotaru poderia ter desaparecido, se ele a viu cair nas chamas com seus próprios olhos? Então, ele lembrou das palavras de Osamu: se ele não a viu no plano superior, onde ela poderia estar? Ken e Yuna ficaram ao longe, na beira da estrada, esperando Joji voltar.

JOJI – Bem, eu deixei meu carro aqui perto. Vamos pegá-lo, e eu levarei vocês até a escolinha.

KEN – O que aconteceu, Joji? O que te fez ficar pálido desse jeito?

YUNA – Tio Joji, está se sentindo mal?

Joji não respondeu. Apenas caminhou até onde o carro estava estacionado, e ambos o seguiram. Ao chegar lá, colocaram Yuna e Mima no banco de trás do carro, quando de repente, se ouviu barulho de tiros.

Ambos olharam em direção aos escombros do farol, e lá havia um monstro, semelhante a um grifo, mas muito mais bizarro, atacando os policiais. Risa e Tetsuo reagiam atirando contra a criatura, mas mesmo alvejada, ela continuava avançando. O seu bater de asas gerava uma pressão de ar tão forte que os derrubava.

Naquele ritmo, todos seriam feridos ou até mesmo mortos. Ken e Joji não podiam vacilar, foram para trás do carro, onde ninguém poderia vê-los, e se concentrando, trajaram suas armaduras como outrora. Ambos ficaram espantados ao contemplarem a armadura um do outro, mas entenderam que aquele momento não era para distrações. Logo, saltaram até o local onde acontecia o ataque.

JOJI – Seja lá o que isso for, coisa boa não pode ser! Seiryu, me conceda o seu poder!

E investiu contra a criatura com um potente chute voador que bastou para lhe quebrar uma das asas. Ken então, resolveu agir.

KEN – Mestre Genbu, agora eu preciso da sua benção. Vou combater esse mal que por algum motivo, ataca essas pessoas!

Ken saltou contra a criatura e lhe aplicou um forte soco, que rachou o bico da mesma. A criatura gritava em agonia, e então resolveu atacar com suas garras da frente; que por azar foram quebradas ao atingirem o forte escudo nas costas de Ken, que parecia um casco de tartaruga.

Aquele monstro não era páreo para ambos, mas eles ainda não tinham dimensão do poder que possuíam. Com as asas e garras quebradas e o bico rachado, era questão de tempo até ser eliminada. Mas de repente, surgiram das sombras dela cerca de dez espectros que avançaram contra os dois guardiões. Os espectros também não eram fortes, eram criaturas amorfas que vestiam uma espécie de manto e empunhavam sabres.

Ken e Joji conseguiram lidar com eles sem grandes dificuldades; entre socos e chutes a medida que eles avançavam. Ao caírem, geravam uma espécie de fogo-fátuo e desapareciam. O monstro então voltou a avançar, mesmo debilitado.

KEN – Joji, acho que já chega disso!

JOJI – Sim!

Ambos se concentraram em um golpe definitivo contra aquela criatura. Naquele momento era importante decidir quais poderes utilizar, e consequentemente definir a chave do qual eles viriam.

KEN – Wei!

Ken deu um salto, o mais alto que conseguiu, retirando o casco de suas costas e o arremessando com toda a força, de modo que o mesmo foi impulsionado com uma enorme força e seu impacto partiu o monstro em dois.

JOJI – Di!

E Joji pôs ambas as mãos sobre o solo, gerando uma força que materializou raízes energéticas que envolveram ambas as partes do monstro e o explodiram. Com isso a grotesca criatura havia sido derrotada. No local da explosão, encontraram apenas algo escuro que viram se tratar de um cristal sem vida; e logo o mesmo se tornou pó, misturando-se à areia da praia.

Só então, eles se deram conta de que os oficiais Risa e Tetsuo estavam no chão a alguns metros de distância, e os haviam os observado com toda a atenção; enquanto os outros presentes, ou estavam desmaiados, ou tentavam se proteger.

OFICIAL RISA – É a segunda vez que eu vejo essa figura de armadura verde, mas parece que agora ele veio acompanhado. O que são eles, afinal?

OFICIAL TETSUO – Se só nós falássemos, ninguém acreditaria. Mas se não fosse por eles, com certeza aquele monstro teria acabado com todos nós.

Risa nada disse. Ela então se levantou e puxou o gatilho da arma, mas logo foi interrompida por um dos oficiais que estavam naquela operação.

OFICIAL – Tenente Risa, o corpo removido dos escombros, desapareceu!

OFICIAIS RISA E TETSUO (espantados) – Como?!

A distração bastou para que Ken e Joji saíssem dali subitamente e voltassem para o carro, onde entraram e partiram esperando não chamarem atenção. Yuna havia ficado todo o tempo dentro do mesmo, com Mima nos braços.

KEN – Tudo bem aí, Yuna?

YUNA – Tudo sim, tio Ken; só estou com muita fome. Espero que vocês estejam bem.

JOJI – Estamos sim, mocinha. Logo chegaremos e comeremos algo, acho que estamos todos famintos.

KEN – Joji, agora que estamos aqui e aquela situação esquisita acabou, pode me explicar sobre o que aconteceu ali?

JOJI – Não faço ideia de como aquele monstro surgiu, Ken. Mas por incrível que pareça, eu não hesitei, porque de alguma forma me senti pronto para combate-lo.

KEN – Eu também não, mas... espero que nossos mentores possam explicar sobre isso. Mas além dessa questão: o que você tem a ver com aqueles policiais lá? E mais, o que você tem a ver com aquele farol destruído?

JOJI – Agora eu posso te contar um pouco, enquanto não chegamos na cidade. Quanto a sua primeira pergunta, aqueles dois são velhos conhecidos. Como eu mencionei antes: sou um ex-policial, e eles foram meus colegas durante um certo período. Já quanto a outra pergunta...

Joji então começou a explicar a situação envolvendo o incidente no farol, desde o sequestro orquestrado por Kido, até o momento em que Seiryu se comunicou com ele, possibilitando-o de resgatar Kokoro e, em seguida, como ele foi parar na floresta. Ken ficou estarrecido com tantas informações, e sua simpatia pelo novo companheiro só aumentava: ele compreendeu que ambos tiveram que passar por trágicos infortúnios e mesmo assim, foram dignos de serem escolhidos por Genbu e Seiryu como seus guardiões.

JOJI – Agora o que me preocupa é sobre a Hotaru. O que aconteceu com o corpo dela? E porque sumiram com o cadáver do Kido?

Ken nada disse, apenas olhou adiante enquanto passava pelas paisagens. Ao mesmo tempo que partilhava das dúvidas de Joji, ele também esperava o tão esperado reencontro com suas queridas irmãs.

 

CONTINUA...


4 Comentários

  1. Salve Lee Yu!
    O capítulo começa narrando sobre a sólida amizade entre Ken e a pequena Yuna.
    É interessante essa relação de confiança e desconfio que não está no texto à toa.

    Yuna deve ter algum segredo ,e algum vínculo espiritual com Ken.

    Posso ter viajado na maionese, mas sinto que, desta narrativa tem surpresas.

    Depois, na foresta,o encontro de Ken, com Jooji, o outro guardião.

    A aparição dos espíritos de Ossamu ( seu irmão) e Kaoru ( irmã de Ken) mostra que os laços espirituais entre eles começam a se ligarem através das entidades Seyriu e Gembu.

    Creio que é aqui que a história começa pra valer.

    Excelente capitulo!!

    Meus parabéns!

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    1. Com certeza, Yuna terá uma importância na história, assim como Kokoro. E eu sempre procuro mostrar que, não basta ser um guardião apenas, mas ter também a humanidade necessária para sustentar essa obrigação; pois como na vida, nós escrevemos o nosso próprio destino e conquistamos coisas de acordo com nossas ações.
      Muito obrigado por me acompanhar, Jirayrider!

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  2. Excelente trabalho, gostei muito da relação de Ken e Yuna, é interessante ver essa relação difícil entre criança e adulto, como por vezes as crianças erram em suas birras e outras os adultos em considerar que crianças devam ou conseguem agir com a mesma resolução (ou não) dos adultos, e trabalhar em cima dessa linha tênue é muito legal! Um destaque especial para as criaturas divinas que guiam seus "pupilos" sempre interagindo com eles e trazendo auxílios, confortos, opções! Acho que a saga tá se encaminhando em um rumo muito legal cara, e creio que saga será muito poderosa, pois detalhamento e descrição de tudo está sendo muito bem trabalhado e levado em conta, estou realmente confiante! Parabéns pelo trabalho meu amigo, que siga em frente nesse mesmo poder!! \0/

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    1. Assim seja, meu amigo! Fico muito feliz pelo fato de meu trabalho estar agradando.
      Sim, acredito que antes de um herói, é necessário haver uma essência e, nesse caso, humanidade.
      Farei sempre o meu melhor para despertar mais e mais o interesse de todos.
      Gratidão!

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