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Caçador Noturno. Um conto de Natal

 



Caçador Noturno: um conto de Natal!

Atenção!
Texto com palavras de baixo calão em alguns diálogos, que pode incomodar alguns leitores sensíveis.

Ato 1

Nicolau de Oliveira (Nico)


Todo o ano, era a mesma coisa...

A virada de mês de novembro para dezembro causava um turbilhão de emoções em Nicolau de Oliveira, ou simplesmente Nico, já que ele odiava o seu nome, assim como odiava o final de ano, particularmente, o Natal.

Também pudera...

Mãe, nunca conheceu...

O que dirá, pai?...

Abandonado por sua mãe, ao nascer, Nicolau de Oliveira foi resgatado dentro de um saco de lixo, por moradores de uma rua localizada no centro de São Paulo, que o levaram a um hospital e lá o deixaram.

Só não morreu por milagre.

Um médico, o chamou de Nicolau uma alusão a São Nicolau, já que ele foi encontrado na noite de Natal. Nas condições em que foi encontrado, um verdadeiro milagre!

Mas, muito outros milagres, ele teria que enfrentar...

Sem ninguém para adotá-lo, muito em função do racismo vigente e mal disfarçado numa sociedade hipócrita e falsa moralista, só lhe restou o orfanato.

Até os 18 anos, lá ele viveu, quando decidiu encarar o mundo de frente.

Sempre polido e educado, rapidamente ele conseguiu alguns empregos em lanchonetes, padarias e bares.

Mas, o salário ganho a custa de uma jornada puxada de 6X1, as vezes, 7X0, para ganhar um trocado a mais, mal dava para pagar o seu quarto pulguento próximo à “cracolândia paulistana”.

Inconformado, Nico decidiu que não seria mais um na multidão.

Ele iria virar o jogo da sua vida!

Com esse espírito, ele juntou umas reservas do seu misero salário e resolveu se matricular num curso técnico de informática.

Muitas vezes, nem o dinheiro da passagem ele tinha.

Comer, então?...

Muitos dias, ele passava só com água e um pacote de bolachas de R$ 1,99 no estômago.

Após um desmaio em pleno curso, um dos sócios da empresa, sensibilizado, o chamou para conversar.

Daí para um emprego decente de auxiliar administrativo, foi um pulo.

Finalmente, um salário um pouco melhor e trabalho de segunda a sexta, tendo dois dias de folga.

Folga essa que ele utilizou para entrar numa academia de Jiu-Jitsu, algo que gostava.

Do moquifo, onde vivia, ele se mudou para uma kitnet.

Pequena, é verdade...

Mas, o suficiente para as suas necessidades.

Mesmo sendo um sobrevivente, e não ter aderido ao crime, o que geralmente acontece, Nico se sentia deslocado e despertencido de tudo e de todos.

A solidão o atormentava.

No final de ano, a sensação era pior.

A falta de um abraço de mãe, ou qualquer outra demonstração de carinho e afeto lhe tornara um homem cedo demais, ao mesmo tempo que lhe endureceu o coração.

Nico não sorria...

Tão pouco, chorava...

Ele só vivia..., ou melhor..., sobrevivia...

Mas, um acontecimento iria mudar sua vida...



Ato 2

Renata Silveira dos Santos (Sophia_Lovers)


2020, o terrível ano da Pandemia da Covid-19 foi complicado para a jovem estudante de enfermagem, Renata Silveira dos Santos.

Filha única do senhor Júlio dos Santos e da senhora Rosalina Silveira, em questão de cinco dias, o terrível vírus, apesar de todos os cuidados que sempre tomava levou embora tudo o que ela tinha ...

Muito em parte pela teimosia dos próprios pais que, influenciados pela postura do então mandatário da nação, desacreditavam da doença e não aderiram ao isolamento social imposto.

Infelizmente, a desinformação somada com a teimosia, fizeram com que o casal pagasse com a vida, deixando Renata sozinha no mundo.

Renata perdeu o chão.

No início, foi morar com os tios.

Mas, a idolatria que seus tios faziam figura do então mandatário do país, que ela julgava ter sido o responsável indireto pela morte de seus pais, tornou-se impossível a convivência.

Sem brigar, ela decidiu, morar provisoriamente na casa que era de seus pais.

Mas, as lembranças dolorosas da partida tão violenta, quanto precoce dos pais, lhe atormentavam a mente.

Lembrá-los entubados, lutando para respirar lhe causava as piores sensações possíveis.

O tênue liame entre a razão e a loucura, cada vez se mostrava mais assustadoramente presente.

Não foi uma nem duas vezes que ela pensou dar um fim em tudo.

Faltou-lhe coragem...

Renata acabou por decidir vender a casa.

Se ficasse ali, ela tinha a certeza que não permaneceria viva mais algumas semanas.

Por sorte, encontrou um comprador.

Com o dinheiro, ela se mudou para um pequeno apartamento situado na região do Anhangabaú.

Concluído o curso de enfermagem e recebido a sua inscrição no COREN (*01) em pleno olho do furacão da pandemia, ela foi para a linha de frente.

Trabalhar era forma de tentar se manter sã.

Mas, a profissão escolhida não ajudava.

Pelo contrário, só reforçava o seu trauma, ainda mais num hospital público, carente de melhorias por parte dos governantes.

Mas, Renata não tinha escolha.

Mesmo com as reservas da venda da casa, ela sabia que, como diz o ditado, “dinheiro na mão, é vendaval”.

Milhares de mortes de pacientes depois, foi a vez de Renata cair doente.

A Covid, não foi letal a ela, mas causou estragos, afetando o seu paladar e gerando problemas respiratórios recorrentes.

Até o final de 2021, quando a pandemia arrefeceu devido às vacinas, foram lutas diárias de Renata, para também tentar sobreviver ao caos que sua vida se tornara.

Em 2022, as coisas começaram a mudar.

Rapidamente, ela conseguiu um emprego numa clínica particular, o que melhorou consideravelmente as suas condições de trabalho, além da remuneração, é claro.

Focada, Renata decidiu ingressar na graduação da enfermagem, o que lhe abriria muitas portas num futuro próximo.

No tempo livre, ela decidiu ocupar a mente com a escrita, uma paixão cultivada desde a infância, entrando no mundo das fanfics, pegando personagens famosos de novelas, séries ou filmes e criando histórias focadas no romance.

Ocupar a mente, sem dúvida, era uma forma terapêutica de fugir um pouco do trauma e da solidão que sentia.

Sob o nickname de Sophia_Lovers, suas histórias, no site Lovefics, logo alcançaram uma excelente aceitação dos leitores.

Mesmo abordando romances, suas histórias estavam longe de serem clichês. Sua linguagem direta e sem rodeios sobre amor e sexualidade angariava cada vez mais um número maior de adeptos.

O seu ápice como fictor ocorreu já no ano de 2023, quando ela publicou uma fic sobre um personagem misterioso que desafiava as autoridades da cidade de São Paulo, dividindo opiniões.

Seu nome?

Caçador Noturno.

Mas, quem e o que era esse “Caçador”?

E por que despertava tanta polêmica?


Ato 3

O Caçador Noturno

Desde que o mundo é mundo, mitos e lendas urbanas sempre existiram.

Personagens reais ou não que dominavam o noticiário e o imaginário da população.

A bola da vez era o chamado “Caçador Noturno”, um misterioso homem coberto de um capuz cinza, com uma máscara vermelha, que fazia justiça com as suas próprias mãos contra a criminalidade da cidade de São Paulo.

Embora não matasse suas vítimas, geralmente ladrões ou assediadores de mulheres, ele deixava-os em situação vexatória, nus, amarrados nas mãos e nos pés, feridos no braço, pernas ou, nos piores casos, na região genital quando se tratava de assediadores, com um disparo certeiro, efetuado por uma pistola de alta precisão e um recado colocado ao lado da vítima com os dizeres:

“Do Caçador Noturno à policia: menos um criminoso na área... Até a próxima!”

Em um mês, houve cerca de 50 ocorrências de pessoas, que testemunharam de alguma forma a atuação do Caçador Noturno.

Como tudo no Brasil gera polêmica, a ação nada convencional do justiceiro mascarado, repercutiu de forma viral nas redes e nos meios de comunicação.

Até um jornalista famoso, em seu jornal vespertino sensacionalista, tentava ganhar “Ibope” com o caso.

-Me ajuda aí, ô!!!

-Justiceiro, é?...

-Justiceiro é uma ova!!!

-Quem não deve, não teme!

-Dê as caras, seu “vagabundo”!...

Muitos consideravam-no um herói...

Outros, um bandido...

Outros, ainda, embrutecidos e emburrecidos por sua visão política extremista, seja de direita ou esquerda, criavam teorias conspiratórias mirabolantes, acusando o lado ideológico rival de estar financiando as suas ações, com pretensões nada “republicanas”...

Alguns chegaram a acreditar que Caçador Noturno, era um terrorista com a missão de criar o caos.

A polícia, desafiada e pressionada em descobrir, além da identidade da nova lenda urbana, bem como seus objetivos, criava teorias que mais confundiam do que esclareciam o caso.

Mas, nada de capturá-lo.

O Caçador Noturno, numa linguagem popular, era “liso e ligeiro".

Na sede da empresa de T. I., Next Future Connection, não se falava outra coisa:

-Ei, Nico! O que você acha desse tal de Caçador Noturno?

Com cara de desinteressado, Nico responde:

-Na boa, veio?...

-Um babaca!

-Me admira as pessoas perderem tempo com isso...

Jonathas não se dá por satisfeito:

-Na moral, Nico!

-Você tá é com inveja...

-Quem não queria ter uma fama, assim tão instantânea?...

Nico dá de ombros, dizendo:

-Não tô interessado...

-Tenho mais o que fazer da vida...

Porém, quando chegou em sua kitnet e se esparramou na cama, Nico diz pra si mesmo e as paredes como testemunha:

-Merda...olha o problema que eu criei pra mim mesmo!

-Esse negócio de ridicularizar os covardes que abusam de mulheres, deixando-os pelados com um tiro nos bagos, é um exagero...

-Eu deveria ser mais cauteloso com isso...

-Mas, fico putaço com esse tipo de coisa...

-Agora não adianta voltar atrás...

-O Caçador Noturno virou realidade...

-É uma forma que tenho de pôr pra fora toda a minha revolta com essa podridão...

-Às vezes, acho que deveria deixar essa bizarrice de lado...

-Fazer uma terapia..., sei lá...

-Mas, me sinto bem em salvar as vítimas das mãos desses canalhas...

-Fazer o trabalho que a polícia é paga pra fazer e não faz...

-Principalmente, pros pobres e marginalizados desse país...

-Eu fui salvo da morte, ao nascer...

-Alguém ouviu meu choro num saco de lixo e me socorreu...

-Defender essas pessoas que sofrem todo o tipo de violência , é o mínimo que posso fazer para justificar minha miserável existência...

Após um grande suspiro de lástima, Nico conclui sua fala:

-E pensar que tudo começou numa noite de Natal...

Flashback...

Natal de 2021...

Ainda ressentidos da pandemia, era naquele momento que o comércio dava os primeiros sinais de recuperação, após quase dois anos de restrições sanitárias.

Como de costume, Nico nessa época murchava...

Ele queria que o dia 31 de dezembro chegasse logo...

Cada dia era penoso...

Sufocante...

Aquele 24 de Dezembro, em especial, ocorria como todos os outros...

Com muita tristeza e solidão...

Não pertencer a uma família, não ter ninguém pra conversar ou socializar, trocar presentes que seja, era o grande trauma de Nico.

Os colegas de serviço, até que tentavam enturmá-lo, mas seu comportamento distante e um pouco arredio, os afastavam.

No churrasco de confraternização de final de ano, Nico fez questão de não participar.

Mas, ficar em casa, olhando pro teto, não seria solução...

Nico, decidiu andar...

Eram 10 da noite...

Ele começou a sua caminhada na Avenida Augusta, descendo a via sentido à Paulista.

As lojas já fechadas...

A calçada, quase deserta.

As pessoas já estavam em suas casas, ceiando com os familiares.

Alguns fogos ecoavam no céu poluído de São Paulo.

Os únicos transeuntes encontrados no caminho eram um outro tipo de pessoas...

Os marginalizados e invisíveis...

Mendigos, drogados, embriagados, diversas garotas de programa a cada esquina mal iluminada, disputando clientes com travestis...

Um senhor, sem dentes na boca, que aparentava 60 anos de idade, quando deveria ter, no máximo, uns 35 anos, todo sujo e com as necessidades fisiológicas bem à mostra em sua roupa, desafinava a plenos pulmões:

-Então, é Natal...

-E o que você fez ?

-Bebi muita pinga...

-Me “fodi’... outra vez...

Mais a frente, uma senhora com uma Bíblia rasgada na mão, pregava a um ser invisível:

-E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará! (*02)

-Irmão...arrependei dos seus pecados...

-Jesus está a porta!

-O fim do mundo se aproxima!

Nico, ao ver aquela miséria humana, se condoeu...

Aquele cenário o deixou mais deprimido e revoltado.

Pois, ele viu policiais passando com viaturas, fingindo que nada viam...

Mas, ele não tinha o que fazer...

Ele continuou a andar...

Duas quadras a frente ele foi abordado por uma menina:

-Tio, você tem um trocado?

-Eu tô com fome...

Nico, carregava uma pequena mochila nas costas.

Dentro dela, um suco de laranja em caixinha, um pacote de bolacha recheada de morango e um pacote de salgadinhos de batata frita.

Era tudo o que tinha.

Ele não pensou duas vezes...

Entregou para a menina, que em vista da fome, teria um banquete.

A menina agradece:

-Feliz Natal, tio...

Pela primeira vez em anos, Nico sorri.

Acariciando os cabelos desgrenhados da menina, ele diz:

-Feliz Natal, meu anjo! Se cuida!!!

A menina sorri e sai correndo, para degustar a comida recebida.

Nico prossegue em sua caminhada e alguns metros a frente, é abordado por uma profissional do sexo:

- E aí querido?

-Vem fazer um amorzinho gostoso comigo!

-50 reais e você vai se divertir muito comigo...

Educadamente, Nico recusa a proposta e segue...

Ele já estava chegando perto da Paulista, quando um grito chamou a sua atenção.

Numa esquina escura, uma mulher, provavelmente, uma garota de programa, estava literalmente sendo enforcada por um homem com pinta de aliciador de garotas, visivelmente em estado alterado.

-Sua vadia...

-Tu nem pra puta serve...

-Cinco horas no ponto e nenhum cliente?

-Quer morrer sua incompetente?

A garota, aparentando uns 17 anos, mal conseguia balbuciar uma única palavra:

-Me sol...ta!!!

O homem a esbofeteia:

-Tu não tem escolha, sua lixo!

-Ou você garante um programa agora, ou você não verá o amanhã...

Nesse momento, o aliciador sente um toque de leve no seu ombro.

Ao virar o rosto, um soco pesado o leva ao chão...

Atordoado, ele tenta ver quem tivera a ousadia de atacá-lo.

Antes de tomar um chute na cara e perder os sentidos, ele só consegue ver um homem alto, negro, torso nu, com uma camisa cobrindo amrrada no rosto, de modo a deixar somente um dos olhos à mostra.

Diante da garota assustada o homem diz:

- Feliz Natal, miserável!

-Você terá uma surpresa quando acordar...

Após deixá-lo nu e amarrado nas pernas e nos braços, o homem, no caso, Nico, se dirige à garota:

-Se quer essa vida, é um direito seu e vou respeitar...

-Mas, me prometa que nunca mais se submeterá a um esgoto como esse...

Assustada a garota diz:

-Sim...Vou dar o fora dessa região...Muito obrigada....

Assim que a garota saiu do local, Nico pensou consigo...

-Isso eu posso fazer...

-Já que não há justiça pra essa gente...

-Vou fazer justiça com meus próprios punhos...

-De agora em diante, São Paulo terá um protetor, um guardião... terá o Caçador Noturno...

-Os covardes que se cuidem...

Fim do flashback.

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Desde aquela noite de Natal, Nico fazia as suas patrulhas periódicas.

Ele, no mercado negro, decidiu adquirir uma pistola semiautomática e passou utilizar um uniforme estilizado e misterioso ao mesmo tempo.

Usando um capuz e uma espécie de manta cinza e uma máscara vermelha, que só deixava descoberta a boca, Nico decidiu dar vida ao personagem criado por ele.

O curioso era que ele nunca atirava pra matar. A sua meta era, além de ferir, humilhar o criminoso e entregá-lo de bandeja para a polícia, mostrando o quanto era ela omissa e incompetente em proteger os desvalidos marginalizados da sociedade.

O seu modus-operandi intrigava defensores e detratores de sua conduta.

Era difícil entendê-lo.

Ele sempre mirava braços ou pernas, ou a região genital, em caso de estuprador ou assediador sexual, com o objetivo de ferir o agressor e não permitir uma fuga.

Em seguida, utilizando os seus conhecimentos em artes marciais, imobilizava os bandidos, usando uma espécie de corda resistente, que prendia braços e pernas, além de atar a boca, fazendo com o que o criminoso ficasse em posição fetal.

No caso de estupradores, ele fazia questão de despi-los, como forma de humilhação suprema.

Naquela noite de Natal de 2022, enquanto fazia uma retrospectiva de sua ação, Nico fala consigo mesmo:

-Falta alguma coisa ainda...

-Bem ou mal, gostando de mim ou não, a polícia sabe que minha ação justiceira ajudou a reduzir os índices de criminalidade no centro histórico...

-Eu só não consegui atuar na Cracolândia ainda...

-Mas, eu vou dar um jeito nisso...

-Nem que pra isso, eu tenha que me infiltrar lá ...

-Se eu conseguir pegar alguns dos cabeças do tráfico, já estarei feliz...

-Essa será a meta para 2023...

-Esses miseráveis que se apropriam de vidas alheias, vampirizando-as, conhecerão a fúria do Caçador Noturno...

-Isso vale para policiais corruptos e coniventes...

Promessa a si mesmo feita, promessa a si mesmo cumprida...

Em um ano de diligências, foram 15 traficantes vítimas de sua ação e 7 policiais.

Essa ação mexeu com a polícia.

A imagem institucional abalada e interesses escusos em jogo, davam a tônica de uma reação, que nem sempre, ou quase nunca, se pautaria pela ética.

O Caçador Noturno era um inimigo declarado.

Precisava ser eliminado...

Muitas emboscadas foram feitas...

Atento ao movimento da polícia, Nico não caiu em nenhuma...

Ele até tinha ciência que poderia ser pego e tudo isso acabar...

Mas, o desafio ao perigo, era um combustível de alta octanagem.

O Caçador Noturno desafiava a lógica.

Quando ele desconfiava de uma emboscada policial, ele silenciava suas ações.

Entre maio e junho de 2024, por exemplo, não houve nenhum relato ou ocorrência envolvendo O Caçador Noturno.

Quando se pensava que ele havia parado e a policia afrouxava suas patrulhas, lá estava ele de novo...

Atuando e surpreendendo...

Por sua postura introvertida e fechada, Nico jamais levantou quaisquer suspeitas de que seria ele o misterioso justiceiro.

E chegamos ao mês de dezembro de 2024...

Mais um dezembro emocionalmente difícil para Nico.

Mas, o destino estava-lhe reservando uma grande peça...

Bem na noite de Natal...


Ato final

Os caminhos que se encontram.

Com mais de 5 mil visualizações, a Fic “ O Caçador Noturno: meu romance com o justiceiro urbano”, uma fic baseada num fictício romance de Sophia_Lovers com a enigmática lenda urbana, rendeu a Renata Silveira dos Santos, o prêmio de “Revelação do Ano”, surpreendendo a própria Renata, que jamais esperou tamanha repercussão.

Quando começou a escrever fics, ela fazia mais por diversão e hobby, servindo como um processo terapêutico para aliviar suas dores causadas com a perda dos pais.

Como o site Lovefics estimulava seu casting de fictors com premiação em dinheiro em caso de grande visualizações e comentários, a obra de Renata, ou melhor, Sophia_Lovers, seguiu a política do site e recebeu um prêmio de 3 mil reais.

Juntando esse prêmio com algumas economias guardadas ao longo dos anos, Renata se deu o direito de participar de uma viagem para um Cruzeiro de luxo de um cantor sertanejo famoso, no inicio de 2024, revigorando-a após esse período turbulento que ela viveu desde a morte dos seus pais.

No Cruzeiro, ela pôde finalmente, ter um momento de paz.

Aproveitando aquele momento inédito se descanso, ela começou a refletir se valia a pena a continuar com a escrita.

Prestes a concluir a faculdade de enfermagem e com grandes perspectivas profissionais no radar, Renata ficou preocupada.

Seu sustento vinha da sua profissão e ela aprendeu a gostar do que fazia, mesmo lidando com o trauma da perda dos pais para a Covid-19.

As fics eram prazerosas de se escrever e o processo criativo, de certa forma, amenizaram sua dor e tristeza.

Mas, ele conhecia a fama do responsável pela Lovefics, o autodenominado Thunder@bolt.

O cara, embora tivesse fortes patrocínios para o projeto Lovefics, dada a sua condição privilegiada e dos muitos contatos no meio, que possibilitaram o pagamento de premiações, sempre exigia mais e mais do seu time.

Ambicioso, seu objetivo era tornar o mundo das fics, algo até então, sem fins lucrativos, feito por escritores apaixonados e idealistas, em um negócio profissional e rentoso através da produção em larga escala, como forma de desbancar o mercado tradicional de livros, atraindo cada vez mais leitores.

Com uma estratégia de marketing agressiva e cooptação de grandes talentos, Thunder@bolt vislumbrava revolucionar o mundo das fics, considerado por ele amador.

O fato era que Renata temia ser pressionada a produzir em larga escala, ainda mais sobre um personagem que ninguém havia descoberto a identidade e essa pressão não era algo que Renata estava preparada para lidar.

Mesmo mantendo sua real identidade no anonimato, o assédio do site Lovefics, interessada em views e monetizacão dos seus canais de divulgação, seguia pedindo por mais trabalhos relacionados a figura do enigmática e misterioso Caçador Noturno.

E isso a deixou irritada.

Surpreendendo os leitores e o site, assim que retornou da sua viagem do Cruzeiro, Renata, a Sophia_Lovers, anunciou uma parada temporária nas publicações.

O líder do site Lovefics, o também fictor Thunder@bolt não aceitou e numa conversa privada com Renata, decidiu retirá-la definitivamente do site, alegando ingratidão diante da “generosidade” dele, que lhe abriu muitas portas e foi traído, depois que Renata alcançou o sucesso.

Renata sabia que aquela narrativa inventada por Thunder@bolt, era leviana e mentirosa, mas decidiu acatar, até porque no seu processo criativo, quem determinava o seu ritmo de produção seria ela mesma.

Ela não aceitaria intromissões, mesmo que custasse a perda de leitores e do meteórico sucesso alcançado.

E assim, temporariamente, Sophia_Lovers, saiu de cena, deixando órfãos uma legião de fãs, focando na sua verdadeira profissão: a enfermagem.

Mas, o destino, como que zombasse de sua cara, acabaria por lhe pregar uma peça que nem a melhor fic idealizada por ela, poderia prever...

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24 de dezembro de 2024, uma terça feira.

Os funcionários da clínica onde Renata trabalhava, organizam um almoço de confraternização de final de ano.

A confraternização foi muito animada e Renata, acabou sendo a vencedora de uma prenda, onde ganhou uma belíssima cesta de Natal.

Embora se mantivesse sóbria, em meio a bebedeira de alguns colegas, Renata não escapou de algumas cantadas, as quais ela, educadamente, dispensou.

Nenhum dos “boys” presentes lhe interessavam.

Regina, uma de suas colegas mais próximas, já meio “alta” das grandes quantidades de cerveja ingeridas, não deixou de perceber e, de modo discreto, cochichou no seu ouvido:

- “Miga’, sua boba!...

-Sou sua amiga, mas tenho que te dizer....

-Você é muito careta!

-Os boys na sua e você nem dá bola pra eles...

-Para de bancar a certinha e vá viver...

-O que tem se divertir?

-Tu não bebe, não fuma, não faz um “vuco-vuco” com ninguém...

- Não vive...

-O tempo passa, viu?

-Você não pensa em ter alguém, não?

-Se continuar assim, tu ficará solteirona...

Renata corou...

Apesar da completa indiscrição, ela percebeu que Regina tinha uma certa razão...

Foi quando ela se deu conta, que ela precisa de alguém pra chamar de seu...

Um love lhe cairia bem naquele momento da sua vida.

Mas, quem?

Certamente, não seria aqueles presentes naquela festa.

Eles nada tinham a ver com ela.

Disfarçando o golpe que sentiu com a fala tão direta, Renata responde:

-Tudo a seu tempo, Regina...

-Vai pintar...

-Não tô com essa pressa toda...

-O mundo não vai acabar amanhã...

Regina respondeu com ironia:

-Mas, pra isso, você precisa se mexer ...

Renata finge ficar brava:

-Regina, você bebeu demais...

-Tá falando o que não deve...

-Depois a gente conversa...

Por volta das 9 da noite, Renata deixa o local, situado numa chácara na cidade de Cotia, e retorna pra seu apartamento com seu carro recém adquirido.

O que ela queria era descansar, já que não teria pra onde ir naquele Natal.

Mas, para seu azar, quando faltavam menos de um quilômetro para chegar no seu apartamento, um pedaço de metal não percebido, jogado na via, furou o seu pneu direito dianteiro, o que a obrigou a parar.

Indignada, Renata soltou uns palavrões:

-Que “porra” é essa?

-“Puta que pariu”!

-E agora?

-Era só o que me faltava...

-Essa foi pra “foder” meu já maravilhoso Natal...

-Nunca troquei um pneu na vida...

Renata decide descer.

Antes não tivesse tido essa infeliz ideia.

Sem que ela percebesse, um sujeito mal-intencionado, observava, escondido numa praça escura localizada quase de frente ao local onde o carro de Renata, um HB-20 vermelho, furou o pneu.

Na verdade, aqueles pedaços de metal eram jogados propositadamente por ele, para fazer suas vítimas.

Se fosse homem, seria um assalto, mas se fosse mulher, outros planos o sujeito tinha em mente.

Ao ver a jovem, meio desorientada, sem saber como agir, o sujeito pensou:

“Que delícia!”...

“Hoje eu terei um banquete...Meu Natal não poderia ser melhor!!!... ”

Sorrateiramente, ele foi se aproximando.

Sua libido em alta...

O corpo físico já dava mostra e a boca chegava a salivar.

Mas, o que sujeito não imaginava era que, do mesmo modo que ele observava a jovem azarada, ele era observado, por ninguém menos que o Caçador Noturno, que havia decidido fazer uma patrulha no local.

Quando ele tentou surpreender Renata, o surpreendido foi ele.

Um vulto encapuzado desfere uma violenta voadora nas costas, derrubando o potencial algoz de Renata, que assustada, teve o instinto de gritar, mas não conseguiu.

O meliante nem teve tempo de visualizar o agressor

Paralisada, ela só conseguiu ver a rápida ação do personagem-título de sua principal fic.

Ao vivo e a cores, o Caçador Noturno estava diante dos seus olhos!

Em menos de dois minutos, o meliante, estava desmaiado, amordaçado, amarrado nos braços e nas pernas, completamente nu, numa vexatória posição.

Assim que conclui o “serviço “, o Caçador Noturno, pede a chave do carro de Renata, para pegar o estepe e trocar o pneu furado.

Renata assente.

Rapidamente ele efetua a troca.

Seu pensamento estava a mil.

O coração pulsava descompassado.

Algo nunca antes sentido, uma emoção nunca antes vivenciada, como uma corrente elétrica de altíssima voltagem, rasga internamente o seu corpo.

O Caçador Noturno era do jeito que ela visualizara em sua fic.

A fic em que ela se apaixona por aquele personagem...

Ironicamente, em plena noite de Natal, a vida imitava a arte!

Renata admirava a atitude do seu salvador...

Sim!

Se não fosse ele, às quase 10 da noite, ela certamente seria abusada, isso se coisa pior não ocorresse.

Assim que conserta o pneu O Caçador vira as costas para Renata , dizendo:

- Numa cidade como São Paulo, uma mulher bonita como você não pode dar um vacilo desse ...

-Tome cuidado!...

-E a propósito...

-Um Feliz Natal!...

O misterioso justiceiro fazia menção de se retirar, quando Renata, num ímpeto de loucura e atrevimento, diz:

-Espere!

-Você é o Caçador Noturno, não é?

Surpreso com aquele reconhecimento, o justiceiro, ainda de costas, diz:

-Isso é só um título...,pouco importa ...

-O importante é que esse covarde não te fez nenhum mal...

Após uma breve pausa , o Caçador Noturno faz menção de se retirar:

-Bom, eu preciso ir...

-Enquanto as famílias comemoram o seu sagrado Natal, eu tenho outras ocorrências para atender...

-Não posso ficar aqui e correr o risco de ser descoberto pela polícia...

Renata, sem medir as consequências do seu impulso, corajosamente, ela propõe:

-Desculpe ser atrevida, mas, entre no meu carro e venha passar o Natal comigo...

-Assim como você, eu vivo sozinha...

-Seria legal ter uma companhia...

-Nem que for pra beber uma taça de vinho...

Aquela proposta inusitada, surpreendeu o justiceiro.

Ainda mais vinda de uma garota tão bonita.

Mas, o Caçador soube manter o foco da sua missão:

-Você tem noção do que propôs, garota?

-Você nem me conhece...

-Não sabe se sou de confiança...

-Não é porque te salvei, que sou bom...

Renata não se deu por vencida em sua loucura.

Ao entrar no carro, e abrir a porta de passageiro, ela diz:

-Por trás dessa máscara existe um ser humano maravilhoso, tão solitário quanto eu...

-Vamos, venha!...

-É Natal...

-Deixe a polícia trabalhar um pouco!

O Caçador agradece, mas rejeita:

-Desculpe desapontá-la, mas quem sabe um dia?...

-O dever me chama...

-Vítimas como você tem aos montes e é preciso impedir que as estatísticas policiais aumentem nessas datas comemorativas....

-A propósito, qual o seu nome?

Sem graça, e percebendo que nem tudo na vida funciona igual a uma fanfic , Renata responde:

-Renata...

-Renata Silveira dos Santos ...

-Então... eu vou indo...

-Me desculpe a ousadia...

-Que você tenha, do seu jeito, um Feliz Natal...

-Saiba que eu te admiro...

-Fique bem!

Surpreso, o Caçador só assente com a cabeça e vê a porta do carro de Renata se fechar e ela partir.

Assim que se vê só, ele pensa:

“Se eu fosse um cara sem foco, certamente eu iria ceder a esse convite e, certamente não iria me conter”...

“Ela é linda e não é nada difícil se apaixonar por ela”...

“E pelo que vi, ela também se apaixonaria por mim”...

“Mas, não posso e não tenho o direito de envolvê-la na minha loucura”...

“Uma pena!”...

“Bom, vamos ao que interessa...Salvar inocentes e indefesos das mãos de canalhas”...

“O Caçador Noturno precisa seguir”...

No apartamento de Renata, ela toma um banho, e liga a televisão para assistir a programação natalina...

Mas, seus pensamentos estavam longe...

Especificamente na figura do misterioso Caçador Noturno.

Ao abrir o vinho que ganhara da confraternização de mais cedo e beber um gole da bebida, ela sorri...

-Renata, Renata...

-Que oferecida e assanhada, você!

-Você “fanficou”, hein garota?

-Estava na cara que ele iria recusar...

-Sua boba...

-Dei muita bandeira...

-Fui com muita sede ao pote...

-Me precipitei...

-Ele se assustou...

-Mas, não tem nada não...

-Hoje não rolou...

-Mas, não vou desistir tão fácil...

-Mesmo sem saber quem é ele, eu gosto dele...

-Pode ser louco isso, mas é o que sinto...

-Eu tive a certeza que ele é o homem que quero pra mim, assim que ele me salvou...

Ao erguer a taça pro alto , ela diz:

-Outros Natais virão...

-Feliz Natal, meu Caçador Noturno!

-Eu vou lutar por você!

-E isso não será uma fanfic!

-Tim-tim!...

FIM

 
Nicolau Ferreira (Nico)

 
Renata Silveira dos Santos 
(Sophia_Lovers)

O Caçador Noturno 

Notas

(*01) Conselho Regional de Enfermagem , órgão responsável pela emissão de certificados que permitem enfermeiros recém- formados exerçam a profissão;

(*02) Evangelho segundo João, cap. 8, versículo 32.


4 Comentários

  1. O que mais gostei nesse título foi como as histórias pessoas dos protagonistas foram bem boladas e escritas.
    Não fossem as fanfics e o lande do vigilantismo, seria uma ótima obra de romance entre duas pessoas que, por conta de suas vidas, estariam mergulhadas numa solidão quase sufocante e encontram um do outro uma saída para essa situação.
    Mandou bem amigo. Um Feliz Natal e boas festas!

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    1. Grande Norberto!

      Feliz Natal e Boas Festas!

      Agradeço ao apoio e os preciosos apontamentos que tornaram esse conto melhor que o escrito original.

      Talvez, eu prossiga nessa história no Carnaval kkkk.

      Tô com algumas ideias!

      Tamo junto!

      Gratidão!

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  2. A trama apresentada em "Caçador Noturno" mergulha nas complexidades de personagens profundos e com histórias impactantes. A construção do Nico, desde seu início de vida até sua jornada de superação, é desenvolvida com grande cuidado. O contraste entre seu passado doloroso e sua vontade de transformar sua realidade é palpável, gerando uma conexão imediata com o leitor. A inserção do tema natalino no contexto de uma vida difícil, mas com um toque de esperança e desafios, adiciona camadas emocionais ao enredo, tornando-o ainda mais envolvente.

    A transição para o momento de Renata também é habilidosa. A reflexão íntima dela, depois do encontro com o Caçador Noturno, é repleta de nuances que tornam a personagem ainda mais real e cativante. A forma como ela, apesar da rejeição, ainda se mantém determinada a lutar por seus sentimentos traz uma vibe de resiliência e esperança que se conecta perfeitamente ao espírito natalino da história. O uso das emoções e da vulnerabilidade como um ponto de construção de personagem é muito eficaz. Você construiu uma narrativa que, sem dúvida, é de difícil esquecimento.


    Jirayrider, meu amigo, ao ler esse conto, me vi completamente envolvido na alma de cada personagem. Nico, o garoto abandonado, e Renata, com sua coragem, me fizeram refletir sobre o que realmente importa no Natal: o que somos capazes de lutar, mesmo contra todas as probabilidades. Eu consigo sentir cada dor, cada esperança, e cada pequeno milagre que essa história carrega.

    Quando Renata ergue a taça e diz "Outros Natais virão", não consigo deixar de pensar no simbolismo dessa mensagem. Ela não está apenas brindando a um futuro incerto, mas declarando que não vai desistir do que acredita, daquilo que sente, e do amor que ainda está por vir. A determinação dela me tocou profundamente. Não é apenas um conto de Natal, é um reflexo do que todos nós precisamos para nos reinventarmos, para encontrarmos luz mesmo nas sombras mais densas.

    O Caçador Noturno, uma metáfora para o próprio Nico, é como aquele sonho distante que todos temos, mas que parece sempre fora de alcance. Mas é essa luta constante, essa busca incessante, que dá sentido ao caminho. Fiquei tão emocionado com a intensidade da história que, sério, poderia chorar agora, se fosse para dar mais um pouco de alma a esse texto.

    Renata e Nico, em suas vulnerabilidades, são a verdadeira mensagem de Natal. Uma história de resiliência, coragem e esperança que, com certeza, vai tocar fundo no coração de quem tiver o privilégio de lê-la.

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    1. Grande Artur!

      Fiquei emocionado com esse comentário tão e analítico e profundo como esse.

      Confesso que , ao escrever esse conto, não me dei conta desses aspectos tão bem destrinchados por você.

      Eu só queria mostrar um jovem chamado Nico, que foi abandonado ao nascer na noite de Natal e que não usou isso pra ir para o mundo do crime .

      Ao contrário, no momento certo, ele quis fazer justiça com as próprias mãos protegendo os marginalizados e invise6da sociedade, mesmo.wie fosse contra a polícia, considerada corrupta por ele.

      Na outra ponta, temos a história de Renata, uma jovem determinada que perdeu os seus pais para a Covid e, mesmo sozinha, não desanimou.

      Aqui, vale uma observação: tal como eu, escrever fanfics foi um processo terapêutico pra ela .

      No final, o caminho de Nico e Renata e se cruzam e graças às sugestões recebidas pelo Norberto , fiz um final , não tão feliz, como se poderia prever, mas que serviu como gancho para futuras histórias.

      Será que eles ficarão juntos algum dia?

      Veremos!

      Gratidão.

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