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Por Tras Dos Olhos Capítulo IX

Capítulo IX

Escriba

Por dois dias inteiros o grupo viajou em silêncio.

O céu era cinza, rachado por faixas negras que pulsavam como veias expostas. O ar estava seco, denso, cheio de um calor abafado que grudava na pele feito poeira de ossos. Cada respiração parecia arranhar a garganta. O grupo avançava em silêncio, envolto por um deserto urbano onde prédios retorcidos assistiam em silêncio à agonia dos vivos.

Ricardo mancava com dificuldade. A perna torcida fazia cada passo arrancar um gemido abafado. Hellen andava curvada, protegendo as costelas, e mancando devido a um corte profundo na coxa direita que deixava um rastro escuro de sangue seco. Baptiste tinha o rosto riscado por um corte profundo na testa e mantinha a mão esquerda enfaixada de forma improvisada, mas o sangue ainda escorria por entre as dobras do pano. Ana o observava com preocupação — ele não se queixava, mas o corpo dele tremia levemente.

Em um momento de hesitação, Ana tocou o braço de Baptiste, só por um segundo. Ele virou o rosto para ela e tentou sorrir, mesmo exausto.
Merci, Ana, — disse baixinho, com sinceridade nos olhos, finalmente quebrando o silêncio.

O mundo ao redor parecia suspenso num pesadelo em câmera lenta. Restos de carros derretidos nas calçadas, postes retorcidos como ossos quebrados, e vitrines congeladas em um tempo morto. Um manequim sorria dentro de uma loja abandonada, o rosto rachado, o sorriso intacto — como zombando da própria ruína.

Seguiram por uma estrada corroída, onde o asfalto rachado fervia levemente, soltando um calor invisível que ondulava no ar como miragens. À frente, entre as ruínas, erguiam-se os restos de uma antiga igreja. A cruz no alto estava de ponta-cabeça, mas incrivelmente intacta. O silêncio ao redor era espesso, estranho — um vácuo no ruído constante do mundo ao redor.

Ali — disse Silvia, com a voz rouca. — Vamos entrar. Não temos escolha.

Ricardo franziu o rosto de dor ao olhar para a construção.
— Parece armadilha... mas, se eu der mais dois passos com essa perna, topo até cochilar no colo de um demônio.

Hellen não respondeu. Apenas seguiu. O corte na coxa a fazia mancar, mas ela mantinha o queixo erguido, orgulhosa na dor. Baptiste a observou por um instante e murmurou:
Forte comme toujours.

A igreja por dentro era... incorreta.

Não havia poeira, nem sangue. As paredes estavam limpas, e velas acesas queimavam com chamas azuladas. Os bancos estavam perfeitamente alinhados, como se alguém os tivesse acabado de arrumar. O ar era fresco, mas carregado de algo invisível — uma sensação pegajosa de observação. Ana sentiu um arrepio. Aquilo não era real. Não podia ser.

Mas estavam feridos demais para se importar.

Silvia fechou a porta. Hellen se ajoelhou perto do altar e abriu a mochila com o que restava dos suprimentos. O grupo se espalhou, arfando, exausto. Um cheiro leve de incenso pairava no ar — algo doce, mas doentio, como carne queimada com açúcar.

Limpo demais — murmurou Baptiste, limpando a testa. — Trop parfait.

Ilusão ou não, é seco, e tá inteiro — disse Silvia. — Vai servir por agora.

Durante minutos — ou horas? — o grupo se dedicou a cuidar das feridas. O tempo parecia se dilatar naquele espaço.

Hellen examinou Ricardo primeiro. A torção era séria, mas não havia fratura.
— Vai inchar. E você vai andar como um velho bêbado por dias — disse ela, amarrando uma atadura com tiras de pano.

Melhor do que morrer jovem — resmungou ele, tentando sorrir, mas os olhos estavam apagados.

Silvia cuidou da mão de Baptiste. Estava com ligamentos tensionados. Fez uma tala com madeira e fita suja. Hellen lidou com as próprias costelas, apertando faixas ao redor do torso com os dentes cerrados, e depois limpou o corte na coxa — um rasgo feio, latejante, que ela nem tentou disfarçar.
— Sem infecção — murmurou aliviada.

Quando Ana se afastou, Baptiste a puxou de leve pelo braço.
— Está tudo bem com você? — perguntou.
— Por enquanto. — respondeu Ana.
Tu es forte... mais je m’inquiète quand même. Você é forte... mas mesmo assim me preocupo.

Ela sorriu de leve, os olhos se encontrando por um segundo a mais do que o necessário. O ar parecia mais denso naquele instante. Intimidade em meio ao caos.

Hellen fechou a mochila com um estalo seco.
— Acabou. Compressas, remédios, tudo. Não temos nada de medicamentos.

Silêncio.

Baptiste quebrou o clima, apontando para o teto.
— Escutem...

Todos prenderam a respiração.

Passos.

Risos.

Vozes.

Lúcio foi o primeiro a falar.
— Eu ouvi meu irmão.

Silvia virou-se, olhos arregalados.
— O quê?

Ele me chamou. Disse que estava aqui. Que eu podia subir a torre da igreja pra ver ele.

Ana gelou.
— Lúcio... isso não é real.

Era a voz dele! Ele me chamava de “baixinho”, como fazia antes! — o garoto tremia. — Ele tá aqui, Ana. Eu juro!

Então ouviram. Uma risada. Longe, mas cristalina. Um som que deveria confortar, mas gelava a espinha.

Nas paredes, começaram a surgir imagens. Memórias que não estavam ali antes. Fotos penduradas em molduras que não existiam minutos antes. Silvia, Jorge e Ricardo jantando juntos no bunker. Rindo. Jorge erguendo uma lata de cerveja. Ricardo sorrindo. Tudo tão vívido que doía.

Não... — murmurou Silvia. — Isso é mentira.

Que merda tá acontecendo? — disse Ricardo.

Ilusão — rosnou Hellen. — Esse lugar tá nos drogando com lembranças.

C’est un piège, — Baptiste murmurou. — Uma armadilha.

As velas começaram a crescer invés de queimar. As chamas subiam em espirais, tocando o teto e formando círculos. O som de um coral gutural, quase demoníaco, preencheu o ambiente, como se vozes saíssem da própria pedra.

Do altar, uma sombra emergiu.

Longilínea, sem rosto. Com uma pena na mão. Movia-se como fumaça densa, mas cada passo reverberava no chão.

Escriba.

Ele escrevia no ar com sua pena. Linhas negras flutuavam e se transformavam em cenas nas paredes — desejos, lembranças, mentiras.

Jorge sorrindo. A mãe de Ana preparando o café da manhã. Um pôr do sol. Uma infância feliz.

Silvia caiu de joelhos.
— Isso não... isso não pode...

Ana sentiu lágrimas quentes brotarem nos olhos. Era tão real. A voz da mãe. O cheiro do café.
Mãe...?

Mas então a imagem distorceu. A mão da mãe de Ana apodreceu diante de seus olhos. Os dentes caíram. A pele rachou. O café virou sangue.

O Escriba virou-se para ela. Ainda sem rosto. Ainda escrevendo.

Baptiste deu um passo à frente, com o punho cerrado.
Il nous tue avec la mémoire. Ele nos mata com lembranças.

O Escriba ergueu a pena e começou a escrever no próprio ar, na direção de Ana. As palavras se tornaram visíveis. “Ela deseja esquecer.”

NÃO! — Ana gritou, como se pudesse rasgar o ar com a voz.

O ar estalou como se o próprio espaço estivesse sendo rasgado. As palavras negras que o Escriba traçava no ar começaram a girar ao redor de Ana, orbitando sua cabeça como pequenos cometas de tinta viva. Cada uma parecia sussurrar, em dezenas de vozes:

Você está cansada.
Você quer dormir.
Você quer esquecer.

Ela sentiu as pernas cederem. O peso das memórias falsas — e verdadeiras — a esmagava. A imagem da mãe deformada ainda pairava à sua frente, como uma pintura que apodrece diante dos olhos. E mesmo assim, uma parte dela... queria voltar àquele momento. Um único instante de paz, mesmo que fosse mentira.

Silvia gritou.

NÃO OLHEM! NÃO ESCUTEM!

Mas já era tarde. As paredes tremiam com imagens vivas. Lúcio chorava, olhando para uma escadaria em espiral que não estava ali antes.

Ele está lá em cima... meu irmão... ele está esperando por mim...

Ele correu.

LÚCIO! — gritou Hellen, arrastando-se atrás dele.

Mas os degraus pareciam se multiplicar sob os pés do menino, e a torre da igreja, antes inexistente, agora se erguia em espiral até um teto que não tinha fim. A risada do irmão ecoava cada vez mais perto e, ao mesmo tempo, impossível de alcançar.

Baptiste se adiantou, agarrando Ana pelo braço, forçando-a a olhar para ele.

Tu dois te battre. Você precisa lutar. Agora.

Ela o viu, e por um instante, o rosto dele se distorceu — era o rosto de um homem que ela amara no passado, mas que estava morto. Um reflexo de algo que nunca aconteceu. Uma memória implantada. Uma armadilha.

O Escriba se aproximava. A pena flutuava em sua mão como se viva, gotejando tinta que queimava o chão em que caía. Seus pés não tocavam o solo, mas cada passo fazia os bancos tremerem. Um canto baixo e gutural surgia de sua boca invisível. Um feitiço antigo. Uma oração invertida.

Ricardo se ergueu, trêmulo, com a perna torta.

Quer me enganar com memórias? — cuspiu. — Então vê se escreve isso...

Sacou a pistola e disparou.

A bala atravessou o corpo do Escriba — ou pelo menos, deveria. A figura se desfez como fumaça, apenas para surgir ao lado dele, agora com a pena em riste.

Uma palavra foi escrita no ar: Desespero.”

Ricardo gritou e caiu de joelhos, os olhos arregalados. Algo invisível o esmagava por dentro. Ele se encolheu como uma criança, tremendo, murmurando:

Ela... ela me deixou... ela... por que ela fez isso...?

Ricardo! — gritou Silvia, correndo até ele. Mas ao se aproximar, viu outra palavra sendo traçada no ar: Culpa.”

Ela cambaleou. As imagens de Jorge e Rodrigo, Carlos e Júlia surgiram mais uma vez, agora encarando-a com olhares acusadores. Jorge sangrava no peito. Rodrigo tossia sangue. Júlia e Carlos pareciam zumbis. Todos diziam, sem som:

Por que você não nos salvou?

Silvia gritou, e então, com raiva, sacou a faca presa à bota e arremessou contra o Escriba.

Desta vez, a lâmina acertou algo. Um som seco. A pena caiu da mão dele, tremendo como uma ave ferida. O Escriba recuou, e por um instante, suas formas se distorceram — como se não fosse apenas um, mas muitos. Uma legião de sombras em um só corpo.

Hellen, ainda sangrando, agarrou a pena caída.

Se ele escreve a realidade... — disse ela, entre os dentes — então talvez nós também possamos.

Com a própria mão, traçou no ar uma palavra: Verdade.”

Nada aconteceu no início. Mas então as imagens nas paredes começaram a rachar. A foto de Jorge com a lata de cerveja se partiu como vidro. As vozes cessaram. O coral gutural parou por um instante. O Escriba congelou.

Baptiste aproveitou. Pegou um dos bancos da igreja e o arremessou contra o corpo do inimigo. A estrutura se despedaçou contra ele, mas a sombra urrou — um som ancestral, como mil vozes se desfazendo.

Ana se levantou. As palavras ao redor dela ainda orbitavam, tentando entrar. Esquecer.” “Desistir.” “Rendição.

Ela estendeu a mão para a pena. Hellen hesitou, mas entregou.

Ana, trêmula, levantou-a no ar e escreveu. Não com elegância. Não com perfeição. Mas com fúria.

Memória verdadeira.”

A pena brilhou.

Imagens tomaram conta da igreja — não ilusões. Mas memórias reais. O corpo de Rodrigo no chão ao lutar contra o Farejador. Jorge, sorrindo antes do seu sacrifício. Silvia abraçando Júlia e Carlos ao sair do bunker. As dores. As perdas. A luta. Tudo que o Escriba tentou apagar.

A sombra gritou.

O chão se partiu. As chamas das velas se tornaram negras, e depois se apagaram, uma a uma. O canto ficou agora mais agudo, desesperado. O Escriba se contorcia como se estivesse sendo desfiado por dentro. Tentava reescrever. Tentava apagar.

Ana escreveu de novo.

Fim da ilusão.”

O teto da igreja explodiu em luz. As paredes começaram a derreter, revelando tijolos rachados, madeira podre e corpos empilhados atrás do altar — o verdadeiro interior da igreja. Uma casa de ossos. Um templo do engano.

A figura do Escriba caiu de joelhos. Sem rosto. Sem forma. A pena virou cinzas. E então, num sussurro, ele se desfez. Como se nunca tivesse existido.

O silêncio retornou. O verdadeiro silêncio. Não o silêncio sufocante da ilusão, mas a pausa que antecede o entendimento.

Lúcio desceu, em choque, tropeçando nos próprios pés. Chorava sem saber por quê.

Silvia caiu sentada no chão. Hellen apoiou-se na parede, respirando com dificuldade.

Ricardo limpou o rosto com a manga da blusa. Baptiste ajoelhou ao lado de Ana.

Você foi... — começou ele.

Não. Eu só não aguentei mais mentiras — disse Ana, ainda olhando para onde o Escriba estivera. — E talvez seja isso que ele mais teme.
 

6 Comentários

  1. O conceito dessa criatura, o Escriba foi algo surpreendente e muito bem bolado!
    A forma como ele foi enredando o grupo, torturando-os com ecos do passadpo, rendeu cenas incríveis, mas o destaque foi para quando, finalmente ele foi derrotado e experimentou do próprio veneno.
    Mais um capítulo escelente! Parabéns!

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    1. Salve mestre. Confesso que este capítulo nem estaria na obra, mas acabei escrevendo ele e no final coloquei apenas como um capítulo tipo tapa buraco. De toda a história esse realmente não gostei muito, mas no final acabei inserindo.

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  2. Grande Marcelo!

    Você pode não ter gostado, mas achei esse capítulo fenomenal!

    A entidade Escriba foi um das mais sórdidas que a resistência enfrentou.

    Manipular as emoções, medos e traumas é algo nefasto e por pouco , a equipe não foi derrotada.

    A paixão de Ana por Baptiste está cada vez mais perceptível.

    Será que eles viverão para que, sabe, terem do direito de se relacionarem?

    Só você poderá nos dar as respostas.

    Parabéns!


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    1. Aí eu faço outra pergunta.... será que eles terão tempo para isso?.... obrigadão meu velho.

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  3. Maravilhoso episódio, e perfeito para mostrar que o que mais tem potencial para nos derrotar ou nos destruir, somos nós mesmos, no sentido de que, nossa consciência, nossos erros, nossas culpas, nossas dúvidas e nossos medos, são o que mais podem nos derrubar! Se tivermos coragem, firmeza, certeza de quem somos, abraçando nossos "eus" tais quais somos, reconhecendo os erros, as falhas, as dificuldades, que todos carregamos sem qualquer chance de errar nessa afirmação, somos donos de nossos sentimentos por não nos chocarmos quando coisas como essas nos surgem... O sentimento de "sei que sou falho, sei que errei e agora me resta apenas tentar reparar em maior número do que causei mal", ter essa certeza e essa determinação pelo menos, nos torna uma muralha diante de nossa consciência, que sim, ela é cruel quando quer! Me atrevo a dizer que o Escriba, nada mais era que a consciência de todos eles ganhando vida e os atacando, mas Ana, ela lembrou que errar todos erram e agora, era necessário seguir em frente, mesmo com as falhas, tentando ser melhor! Maravilhoso episódio Caolho, mandou bem pra caramba cara!! \0/

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  4. Pior que vou repetir esse episódio quase não entra na versão final da história. E sinceramente não gostei muito dele. Mas acabei optando por colocar. Enfim acabou agradando até mais do que imaginei. E isso foi bom.

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