CAPÍTULO II
Despertar
Um ano e oito meses se passaram, e Ana estava sentada no sofá, as luzes da sala apagadas.
A única iluminação vinha da televisão ligada em um noticiário qualquer, onde âncoras sorriam mecanicamente, lendo tragédia atrás de tragédia com vozes suaves demais. Mas ela não os escutava. Os olhos fixos no vidro da janela refletiam uma São Paulo que parecia apodrecer a cada dia.
Era fim da tarde. A luz lá fora era opaca, pesada, como se o céu tivesse desistido de brilhar. As cores da cidade pareciam drenadas, pálidas — como uma fotografia antiga. Mas não era só isso. Ana via as rachaduras.
Falhas quase imperceptíveis no ar, como se o tecido da realidade estivesse mal costurado. Às vezes, no canto do olho, ela via as linhas se movendo. Ondulações no espaço. Frestas entre o mundo real e o que fingia ser.
Na calçada do outro lado da rua, uma mulher empurrava um carrinho de bebê. Por um instante — apenas um instante — a mulher não tinha rosto. Onde deveria haver olhos e boca, havia apenas uma massa lisa, branca, pulsante. O bebê chorava, mas o som era distorcido, como um grito arranhado por dentro.
Ana levantou-se num salto. A figura já havia voltado ao normal. Ou… ao que fingia ser.
Nos dias anteriores, os sinais haviam se acumulado: sorrisos que não se estendiam até os olhos, reflexos no espelho que se moviam um segundo depois dela, vozes sussurrando ao fundo de uma multidão silenciosa. O Véu estava rasgando. E ela era a única que via.
Foi até o banheiro. Ligou a torneira. Lavou o rosto. Quando olhou no espelho, seu reflexo a encarava — mas não se movia com ela. E então sorriu.
Ana recuou com um grito preso na garganta. As luzes piscaram. Quando olhou de novo, o reflexo estava normal.
Normal?
Mentira.
Voltou à sala tremendo. O celular vibrou com uma notificação, mas ignorou. Sentou-se outra vez, com os joelhos juntos, os braços cruzados — encolhida. A cidade continuava a pulsar lá fora com seu ritmo morto, como um cadáver animado.
Foi então que ela sentiu.
Não foi um som. Nem uma imagem. Foi uma presença. Como uma pressão no ar. Como estar debaixo d’água. O ambiente ficou mais escuro, como se o sol tivesse sumido sem aviso.
Ela o viu.
Na rua, parado entre duas sombras, havia algo. Alto. Impossivelmente magro. Pele cinza arroxeada, esticada sobre ossos. Onde deveriam haver olhos, duas órbitas vazias e escuras — mas Ana sentiu que era ali que estava sendo observada. A criatura a encarava. Imóvel.
Por instinto, ela apagou a luz da sala e recuou até a parede mais distante da janela. Mas era tarde.
A coisa a viu.
Sorriu.
Não com lábios. Mas com toda a sua forma, que parecia se expandir, como um predador excitado. Um som agudo preencheu a sala por alguns segundos — um zumbido, quase imperceptível, mas que fazia os dentes de Ana doerem.
A criatura deu um passo em sua direção.
E outro.
E então desapareceu.
Ana correu para trancar todas as portas, as janelas, apagar as luzes. Respirava com dificuldade. As mãos tremiam.
O mundo havia mudado.
E agora ela sabia demais.
Ela estava marcada.
Caçada.
O silêncio que veio depois foi pior que o zumbido.
Ana estava de costas para a porta da cozinha, ofegante, com as luzes todas apagadas. Tentava controlar o pânico, mas seus músculos não respondiam. Tudo em seu corpo queria correr, gritar, fugir. Mas fugir para onde?
A campainha tocou.
Uma vez.
Duas.
Três.
Toques lentos. Rítmicos. Como batidas de tambor num ritual antigo. Ana engoliu em seco. O celular em sua mão vibrou, e ela olhou: nenhuma chamada, nenhuma notificação.
A campainha tocou de novo.
Ela deu um passo em direção à porta, mas parou ao ouvir algo atrás dela.
Um estalo. Como madeira se partindo. Vindo da sala.
Virou-se devagar.
A janela estava aberta.
Tinha certeza de que a havia trancado.
O ar estava mais frio agora. Um vento podre soprava pela sala, carregando o cheiro de carne velha, mofo e…. Enxofre?
A escuridão no cômodo parecia viva. Tremeluzia. Mexia-se como se tivesse fome.
E então ela o viu.
A criatura estava dentro da casa.
Ajoelhada, no teto.
Como uma aranha feita de ossos.
Lenta, girou o pescoço — um movimento impossível — e seus olhos vazios a encontraram. As articulações se dobraram ao contrário. Um som de estalos e estiramento de pele encheu o ambiente.
Ana gritou e correu para a cozinha.
Bateu a porta, trancou.
Ouviu as garras riscando a parede, depois o teto.
Pelo buraco da fechadura, viu uma sombra se arrastando no corredor.
Pensou rápido. Pegou uma faca da gaveta. Não parecia ser suficiente — mas era o que tinha.
A lâmpada piscou. Algo gotejou do teto. Sangue?
Ela olhou para cima.
A coisa estava ali. Pendurada no teto da cozinha, com os membros longos e retorcidos, a cabeça girada de ponta-cabeça, sorrindo com uma boca que se abria de orelha a orelha, cheia de dentes finos e intermináveis.
Ana golpeou com a faca — mas a lâmina atravessou o ar.
A criatura desapareceu.
Silêncio.
Girou em círculos, com os olhos arregalados.
E então foi arremessada contra a parede.
Algo a segurava pelo pescoço, invisível. Seus pés não tocavam o chão. Ela se debatia, as unhas arranhando o braço de uma força que não via.
“Você
acordou.”
A
voz veio de todos os lados. Grave, áspera. Como se mil línguas
falassem em uníssono dentro de um poço.
“Agora vê o que sempre esteve aqui.”
Ana cravou a faca no vazio — e acertou algo.
Um grito horrível explodiu no cômodo. A criatura se revelou parcialmente, piscando entre formas, como se estivesse entre duas dimensões — uma monstruosa e outra ainda mais terrível, feita de puro desespero.
Ela caiu no chão, tossindo, mas não hesitou: correu para o fogão, pegou álcool, jogou em direção à criatura e acendeu o fósforo.
Fogo.
A criatura recuou, urrando. As chamas a afetavam. Ela gritava — um som que parecia um lamento e um riso ao mesmo tempo.
Ana aproveitou e correu. Destrancou a porta da frente, desceu as escadas do prédio correndo, tropeçando, ainda com a faca nas mãos.
Quando chegou à rua, o céu estava completamente escuro.
Era noite — embora fossem apenas seis da tarde.
Ela olhou para trás, ofegante.
A criatura não a seguiu.
Não ainda.
Mas a presença ainda estava lá.
Ela sabia agora. Algo estava à espreita. E havia muitos mais como ele.
E ela…tinha sido vista.
Ana corre.
Descalça, coberta de fuligem e sangue que não sabia se era dela ou da criatura.
As ruas de São Paulo passavam como borrões. Faróis, buzinas, motos zumbindo — o mundo seguia seu curso indiferente. Ela corria contra a maré da cidade, desesperada, tropeçando na calçada.
Atrás dela, a coisa vinha caminhando.
Sim, agora caminhava.
Pernas longas demais, braços que arrastavam no chão, como se a gravidade não afetasse do mesmo jeito. O rosto não era o mesmo de antes. Mudava a cada instante. Agora tinha os olhos de sua mãe. Agora o sorriso do motorista que a atropelou. Agora o rosto vazio de um cadáver.
Ana gritava.
Pedia ajuda.
“Me ajudem! Ele tá vindo! Tem uma coisa atrás de mim!”
As pessoas paravam.
Olhavam.
Mas só viam Ana, sozinha, gritando para o vazio.
“Drogada.”
“Tá louca.”
“Alguém chama a polícia.”
Um homem tentou segurá-la. Ela o empurrou com força, cortando a palma de sua mão com a faca. Mais gritos. Uma mulher começou a filmar com o celular.
Ana correu novamente. A criatura vinha atrás, sem pressa, como se soubesse que o tempo estava a seu favor.
Um cachorro latiu na calçada.
E o latido parou abruptamente.
Ana olhou para trás. O cachorro estava caído. Olhos secos. Boca aberta. Como se a alma tivesse sido arrancada.
Ela virou em uma rua estreita. Um beco. Escuro. Fechado.
Errado.
Sem saída.
Olhou em volta, ofegante. Portas trancadas. Janelas vazias. Ninguém ali.
Ouviu o som.
As garras arrastando no asfalto.
Passos.
E uma voz.
“Você vê. E mesmo assim nega.”
A criatura parou na entrada do beco. O poste de luz piscou — e apagou. Agora era só Ana e o escuro.
Encostou na parede.
Lágrimas misturadas com suor e medo.
Levantou a faca com a mão trêmula.
“Fica longe de mim…”
A criatura sorriu.
“Você
acha que pode lutar.”
Deu
um passo.
“Você
acha que tem escolha.”
Outro
passo.
“Sua alma é minha.”
A criatura salta no ar em direção a Ana.
Caiu sobre o asfalto com um estrondo, rachando o concreto. As garras cravaram no chão, levantando faíscas, e seus olhos — dois buracos ardendo em vermelho profundo — encontraram os de Ana novamente.
Ela se arrastou de costas, desesperada, os joelhos ralando no chão sujo da rua. Sentia o coração martelar no peito como um tambor de guerra, enquanto os sons ao redor se distorciam: buzinas, passos, gritos — tudo parecia distante, como se o mundo estivesse sendo engolido por um véu espesso de pesadelo.
— Sai! Fica longe de mim! — ela gritou, embora soubesse que ninguém entenderia.
E, de fato, não entenderam.
Um
senhor que passava do outro lado da calçada parou e a olhou com
desdém.
— Vê se para com essas drogas, moça! Tá parecendo
doida! — disse, antes de seguir seu caminho.
Outros a observavam com repulsa, alguns com medo, outros rindo. Para eles, Ana era só mais uma mulher surtando no meio da rua. Fugindo de coisa nenhuma.
Mas para ela, era uma luta pela própria vida.
A criatura avançou. Com um movimento seco, as pernas disformes dobraram e o corpo monstruoso veio em sua direção com velocidade não humana. Ana se levantou cambaleando, correu, virou uma esquina e entrou em uma viela estreita. Os pés escorregavam, os olhos procuravam uma rota de fuga, qualquer coisa.
Mas
ela não estava mais correndo apenas com o corpo.
Corria com
o instinto.
Corria com o medo.
Corria com uma lembrança
antiga, enterrada — algo que agora despertava.
A sombra da criatura se projetou sobre os muros ao redor. Estava próxima demais. Ana tropeçou em um saco de lixo, caiu, rolou no chão. Quando ergueu os olhos, ela estava ali. A criatura. Enorme. Agachada. O rosto agora mais nítido: não tinha olhos, apenas buracos que fumegavam; os dentes, longos e finos como agulhas; os dedos, esticados em garras de osso.
Ela
sorriu.
Um sorriso de quem já venceu.
— Você…. Viu, não é? — disse a criatura, com uma voz que não saía da boca, mas da própria mente de Ana.
Ela gritou e, num impulso, pegou um pedaço de madeira quebrada no chão e cravou contra o peito da criatura. A ponta se quebrou. Nem arranhou.
A criatura a segurou pelo pescoço e a ergueu no ar com uma força esmagadora. Ana se debatia, chutava, sufocava.
Ao se debater, Ana consegue se soltar. Rolou para o lado, levantou cambaleando, pegou uma barra de ferro enferrujada encostada no muro e, com um grito primal, golpeou com toda a força que tinha. Acertou o rosto da criatura, que cambaleou. Um filete de fluido negro viscoso escorreu da lateral do crânio distorcido, evaporando no ar com um chiado.
A criatura berrou. Era um som insuportável, como se mil vozes gritassem ao mesmo tempo.
Ana tentou bater de novo, mas a criatura agarrou a barra com uma das mãos deformadas e a jogou longe. Com a outra, cravou as garras em seu ombro, fazendo o sangue escorrer.
Ela gritou, sentindo a força esvair-se. A criatura a ergueu no ar, prestes a rasgar sua garganta com os dentes expostos.
Mas então…
BAM!
Um estrondo ensurdecedor cortou a noite.
A cabeça da criatura foi jogada para trás, despedaçada. Um buraco carbonizado apareceu onde antes havia seu crânio.
BAM! BAM! BAM!
Mais três tiros ecoaram pela viela. Fragmentos da criatura voaram pelas paredes. O corpo tremeu, recuou, tentou se desfazer em sombra — mas não teve tempo. Um quarto tiro, à queima-roupa, explodiu o peito dela, que foi lançado contra o muro. O concreto trincou com o impacto.
A criatura tentou rastejar. Seu corpo, desfazendo-se em cinzas negras, arrastava-se como uma massa de carne profana. Ela olhou uma última vez para Ana, que jazia no chão, semi-inconsciente, coberta de sangue.
E então, mais um tiro. O último. Silêncio.
Ana tentava se levantar devagar. A visão estava turva. Os sons estavam abafados.
Ela viu uma figura se aproximando. Alguém alto, de sobretudo escuro, a arma ainda fumegante nas mãos. O rosto ela não conseguiu enxergar. Estava coberto pela sombra da noite e pela inconsciência que se aproximava como um nevoeiro.
Mas antes de apagar, seus olhos focaram num detalhe.
No braço do homem, preso por cima da manga, estava uma bandana vermelha, suja de sangue e poeira. E sobre ela, em traço grosso e escuro, o símbolo do olho cortado por três linhas — o mesmo que havia visto no beco tempos atrás.
— Você acordou…. — disse ele, com a voz grave.
E então tudo escureceu.
6 Comentários
Caraca, prezado Caolho!
ResponderExcluirQue construção tensa , no melhor estilo de terror e suspense!
A conexão de dois mundos, a caçada espiritual de um demônio implacável e nefasto.
O medo e o pavor de Ana, diante do seu olhar especial , que ninguém mais poderia ver e , quando tudo parecia perdido e ela seria finalmente possuída pela criatura, ela salva pelo misterioso personagem do capítulo anterior, que lhe revela algo que mudará a sua vida , daqui por diante.
Espetacular!
Estou boquiaberto com a qualidade do seu texto.
Mandou bem demais!
Obrigado mais uma vez. Só posso agradecer por disponibilizar seu tempo para acompanhar essa história. Estou gostando muito de escrever ela e quero aproveitar o tempo que estou tendo livre esses dias e me dedicar a ela. Já estou inclusive com o terceiro capítulo em andamento....espero que gostem.
ExcluirMeus amigo! Que narrativa incrível!
ResponderExcluirAna já tinha me ganhado no capítulo anterior e nesse me cativou ainda mais.
Esse conceito que você está começando a arranhar, sobre esse "despetar para a verdade" é instigante e intrigante na medida certa! É o tipo de história que eu, como escritor, fiquei pensando "porque EU não tive uma ideia como essa?"
A forma como você foi "desenhando" o surgimento da criatura, toda a perseguição, que se inicia em um lugar pequeno e vai se expandindo até às ruas da cidade, a forma como você mostra toda a ameaça do monstro, em contraste com a reação dos "não despertados" foi extremamente agoniante.
Ou seja, me fez imergir absurdamente nessa história.
E que gancho final absurdamente foda!
Parabéns é pouco para definir como estou grato pela sua entrada no Mindstorm e por compartilhar um texto tão incrível com todos nós.
Tô aqui aplaudindoi de pé!
Imagina eu é que tenho que agradecer pela oportunidade de mostrar um pouco do que sempre fiz e pouco divulguei. Futuramente trarei também para o blog Rota Da Seda, quê é um romance histórico sobre a saga de dois irmãos que se aventuram na rota da seda, e claro o meu filho amado que escrevo a mais de dez anos, Psychers, uma história sobre seres poderosos que lutam pela sobrevivência em um mundo devastado pós guerra nuclear..... espero que gostem desses também.
ExcluirE que episódio perfeito, agora tudo veio à tona, agora o cara correndo faz sentido, as cenas que ela viu antes fazem todo sentido! Eu fiquei imaginando as cenas, e lembrei de um livro que li, onde um questionamento é feito sobre, "se o mundo é assim, cheio de espíritos o tempo todo, porque simplesmente não nos abrem os olhos e nos deixam ver como é ao invés de ficar tentando provar que é assim, sem que ninguém possa ver?" e a resposta foi "porque a exemplo do que aconteceria, se todos pudessem ver as bactérias, os vírus, os germes, as larvas e demais vida sem fim que coexiste conosco todo o dia, o ser humano não suportaria tal visão!" O livro me trouxe diretamente para essa reflexão, principalmente quando a criatura começa a falar sobre ela ter despertado, e isso simplesmente arrepia! Me lembrou muito também, Soul Reaver, a tela de descanso antes do jogo, quando as imagens ficavam trocando de rostos e voltando ao normal, cara, algo muito bem descrito e muito bem ambientado! Outra coisa que me chamou muito a atenção, e a gente meio que conversou sobre isso no MindSet, o quanto os "diferentes" são invisíveis ou mesmo ignorados, veja, uma pessoa em fuga e em pânico, o que os "normais" fazem? Bravatas, xingamentos, indiferença, deboche, como dizem sobre crianças, pra nós certas coisas não tem sentido, mas para elas faz toda a diferença, e no caso da Ana (e agora do cara da segunda-feira) fazia a diferença brutal entre a vida e a morte! Cara, excelente episódio, ficou muito bom, meus mais sinceros parabéns Caolho, mandou bem demais, prazerzasso te ter entre os escritores do MindStorm!! \0/
ResponderExcluirPrazer maior é ter comentários de pessoas como tu Aldo, que admiro por terem dado o passo inicial, e com certeza se as coisas não acontecessem da maneira que tinha que acontecer, essa história talvez nunca chegasse ao público.
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