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Por Trás Dos Olhos Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII

Sacrifício

O som das armas rompeu o ar como trovões. Balas zuniam, ricocheteavam nos ossos da criatura, rasgavam a pele costurada como papel molhado. A coisa gritou — ou várias coisas gritaram dentro dela. Uma cacofonia de vozes dissonantes, chorando e gargalhando ao mesmo tempo.

Tentáculos — mas não como os de um polvo — rastejavam pelas paredes como fios de carne esticados, deixando um rastro pegajoso no teto, sibilando palavras em línguas mortas.

O inferno tomara forma.

A câmara explodiu em caos.

Lúcio foi o primeiro a se mover, ágil como um gato, deslizando entre as sombras e disparando em movimento. Ele se esquivava com reflexos quase sobre-humanos, até que um tentáculo veloz o atingiu pela perna. Lúcio foi lançado contra uma pilastra de concreto. O som seco de ossos batendo no cimento ecoou no túnel. Ainda consciente, ele engatilhou a arma com a mão trêmula, mesmo com o ombro visivelmente deslocado.

Baptiste cobria Ana com precisão militar. Ele a guiava para trás, cada passo calculado. Um tentáculo quase o atingiu — por reflexo, ele atirou, o impacto estourando uma das bocas que se formavam no abdômen da criatura. O jorro ácido que escapou quase os atingiu, mas ele puxou Ana no último segundo.

Ricardo avançou, disparava rajadas com sua AK, cortando o ar. Seu foco era total.
— ALVO PRINCIPAL, NA BASE DO PESCOÇO! — gritou ele, a voz quase sobreposta ao barulho dos tiros.

Sílvia já havia identificado. Ela lançou uma granada em arco, o estopim cintilando por um segundo antes de explodir. O chão tremeu, a criatura foi jogada para trás — mas, em vez de cair, floresceu em desespero, seus membros se multiplicando, olhos se abrindo onde antes havia pele lisa, bocas gritando insultos e orações invertidas, dedos em toda parte.

Hellen se posicionou no flanco direito, seu olhar gelado como sempre. Ela tirou um coquetel incendiário da mochila, acendeu com o isqueiro trêmulo e lançou com precisão. A lateral do "rosto" da criatura pegou fogo — se é que aquilo podia ser chamado de rosto. Mas não gritou. Gargalhou.

Disparou com suas pistolas em um ritmo frenético. Mirava nos olhos, nos tendões, nos joelhos monstruosos que se formavam. Mas, ao tentar recuar, um dos tentáculos a pegou de raspão, abrindo um corte profundo na coxa. Ela gritou, mas se arrastou para trás, recarregando com mãos trêmulas e ensanguentadas.

Ana correu até ela, cobrindo com tiros.
— Te dou cobertura, aguenta aí!
— Eu me viro! — rosnou Hellen, empurrando Ana. — Fica na retaguarda, como devia.
— E deixar você morrer? — Ana mirou e disparou.
— Só não atrapalha — respondeu Hellen.
— Então cala a boca e atira — devolveu Ana, seca.

Jorge...

Ele era um farol em meio ao caos.

Mesmo com os olhos febris, a pele pálida e as veias negras como carvão, Jorge continuava lutando. Sua metralhadora tremia nas mãos, e ele não parava de apertar o gatilho. Um tentáculo acertou seu peito e o jogou com brutalidade contra a parede. Ele caiu... mas levantou. Sangue negro escorria da boca, o nariz partido, uma perna cambaleante.

E mesmo assim...
— F-f-filha da p-pu-pu... tu vai... v-vai ter que f-f-fazer me-me... melhor do q-que isso! — cuspiu, sorrindo com dentes tingidos de negro.

Ana correu até ele, o desespero estampado no rosto.
— Jorge, você precisa parar! Você tá ferido demais!

Ele a empurrou com suavidade.
— Eu j-já t-tô m-morto, A-Ana... s-só a-ainda n-não t-ter-terminaram m-meus p-pontos d-de v-vida... — disse, sorrindo.
— A-a-agora... s-sai d-d-daqui. P-p-pelo a-a-amor de...

Um grito de Sílvia cortou o ar:
— CÍRCULO! GIREM AO REDOR! ATAQUEM EM RODÍZIO!

O grupo reagiu. Mesmo feridos, formaram um semicírculo vivo. A criatura estava no centro — uma aberração de olhos, bocas e dedos. Jorge se arrastou para a lateral, Hellen recuou mancando, Ana cravou uma faca em um dos braços deformados que vinha rastejando pelo chão, arrancando um grito seco da criatura.

Baptiste pegou uma barra de ferro e golpeou uma mandíbula que tentava se formar — dentes espirraram no ar como cacos de vidro.

Ricardo foi agarrado por um braço e puxado para o alto. A criatura tentava engoli-lo inteiro. Ele urrou e disparou contra o que parecia ser uma garganta pulsante, se libertando com esforço. Caiu no chão e rolou, tossindo sangue.

A criatura rugiu — não de dor, mas de frustração.

E então...
Ela se transformou...

Como se a raiva desse à carne o poder de se multiplicar, ela se ergueu ainda mais alta, esmagando ossos sob seus membros mutantes. Duas novas patas brotaram dos flancos, garras negras como carvão se esticaram dos dedos, olhos inflamados se abriram no ventre e começaram a chorar sangue. E do centro de seu peito, uma mandíbula se abriu, revelando fileiras de dentes que giravam como lâminas.

T-tá... e-evoluindo! — gritou Jorge, tropeçando para trás.

Um novo grito — não humano — rasgou o ar e reverberou pelas paredes do túnel, um som tão profundo e antigo que os próprios ossos dos combatentes pareceram querer fugir do corpo. A criatura pulou no centro do grupo como um meteoro de carne viva. O impacto lançou todos contra as paredes e o chão.

Silêncio por um instante.
Depois, gritos.

Lúcio rolou para o lado, o ombro havia deslocado. Tentava alcançar uma faca presa na bota, mas seus dedos tremiam.

Sílvia se arrastava, a clavícula parecia estar quebrada, os olhos semicerrados pela dor. Cuspia sangue.

Hellen sangrava pela boca. Um tentáculo a havia prensado contra uma coluna. O impacto talvez tenha lhe custado uma ou duas costelas.

Ana estava soterrada sob escombros, tentando puxar ar entre os dentes cerrados, o braço esquerdo preso.

Ricardo... Ricardo gritava e atirava.

A criatura o agarrou com três braços, torcendo-lhe a perna em um ângulo estranho. Ele gritava de dor, por socorro, por Deus, por qualquer coisa. Um dos olhos da criatura o fitava de perto, como se saboreasse o desespero.

Baptiste tentou se levantar, sangue escorrendo de um corte na testa. Ele cambaleou, segurando a arma com uma mão — a outra parecia ter quebrado. Mirou... e clicou. Sem balas.

Silêncio, outra vez.

A criatura se ergueu no centro da destruição, majestosa e profana. Gargalhava. Um coro de vozes distorcidas — velhos, crianças, animais —, todos chorando, rindo, amaldiçoando.

Era o fim.

Até que...
Jorge se levantou.

Jorge cambaleava entre disparos, com a mão esquerda pressionando o flanco. O sangue escorria por entre os dedos. Tossiu, e um filete escuro manchou seu queixo.

Lúcio o chamou com desespero, mas Jorge só fez um gesto sutil — quase um adeus.

Quando cruzou os olhos com Sílvia, não disse nada. Mas havia algo ali.
A aceitação muda de quem já sabia.

Tremendo. Ensanguentado. Febril.

Ele se apoiou em uma pilastra, o rosto coberto de hematomas, o corpo vacilante. Mas, em seus olhos, havia algo além da dor. Havia aceitação. Coragem. Fúria.

Ele cuspiu sangue no chão, pegou algumas bananas de dinamite que estavam presas em sua cintura e arrancou o isqueiro do bolso.
— M-merda... — ele tossiu...

A-Ana, s-sua teimosa... m-me escuta, agora. T-t-todo mundo escuta...

Os sons de dor e grunhidos diminuíram, quase como se o próprio mundo ouvisse.

E-eu... e-eu já t-tô m-morto faz tempo. Essa c-coisa a-aqui dentro — ele bateu no peito com a mão trêmula — t-tá me c-comendo... p-pouco a p-pouco. Eu s-sinto. S-sinto os p-pensamentos s-sumindo. A-a alma esvaziando...

Ele encarou a criatura, que se virava lentamente para ele. Seus olhos — ou os muitos olhos — pareciam reconhecer o que viria.

M-mas eu ainda s-sou Jorge. Ainda sou d-da Terceira O-O-Ordem... e se o p-preço pra manter v-vocês v-vivos for a m-inha vida... então e-eu...

Com um esforço final, ele se endireitou, pés plantados com firmeza, como se sua carne exaurida se sustentasse apenas pelo que restava de sua vontade. O isqueiro acendeu com um estalo fraco, iluminando seus olhos vermelhos de febre.

A-Ana... f-fique v-viva. N-não m-morra. V-você a-ainda t-têm u-um p-propósito. A m-missão c-continua...

Ele sorriu. Um sorriso quebrado, sujo de sangue — mas ainda assim, humano.
— A-aqui s-se e-encerra a m-minha j-jornada... — passou o braço na boca, limpando o sangue.
— E-e a d-de A-Alaric, o g-guerreiro d-dos p-planos.
— Q-que n-nossos f-feitos s-sejam l-lembrados...

Sorriu.

Correu.

Correu com o corpo aos pedaços, aos gritos, como um animal ferido, como um herói improvável. A criatura o viu e recuou, por um segundo... um só segundo. Tarde demais.

O silêncio veio logo depois. Mas não o silêncio da morte. O silêncio do sacrifício consumado.
O silêncio sagrado dos que se vão... para que outros vivam.

JORGE, NÃÃÃÃO! — a voz de Ricardo ecoou pelo túnel, cravada de desespero.

Mas Jorge já havia pulado.

A criatura o engoliu num golpe só — dentes, carne, dinamite e tudo.

Antes que Jorge perdesse a consciência e dormisse nos braços da morte, ainda falou:
— Eu sou Alaric... o guerreiro dos planos.
— Minha lâmina brilha na escuridão. Minha coragem é minha armadura. Eu sou a luz que afasta as sombras.

Houve um momento de silêncio.
Um momento que pareceu durar uma eternidade.

E... então...

BOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOM!

O clarão veio primeiro — uma luz branca e doentia que engoliu tudo ao redor como se o mundo tivesse piscado.

Depois, o som: um estouro seco, abafado, que reverberou como se fosse ouvido debaixo d’água. O chão tremeu. O ar se partiu.

Um calor repentino varreu o corredor, seguido por uma ventania de estilhaços, poeira e carne distorcida.

Por um segundo, tudo parou.

A realidade pareceu perder o contorno: as paredes derretiam como cera, o teto pulsava como um órgão vivo. Partes da criatura se desfaziam no ar, fragmentadas em tentáculos que evaporavam como fuligem no vento.

E então, o silêncio. Um silêncio pesado, como se o mundo segurasse o fôlego.

Jorge havia sumido.

A criatura se desfez em pedaços.

Os túneis... começaram a desabar.

CORRE! — gritou Sílvia, puxando Ana dos escombros.

Poeira, rachaduras nas paredes, blocos de concreto desmoronando.

Baptiste pegou Ana no colo e correu pelo corredor.
Hellen ajudava Ricardo, que conseguia avançar mancando, seus olhos vazios pela dor.
Lúcio vinha por último, atirando contra qualquer sombra que se movesse.

Correram.

Por túneis sufocantes, entre gritos, poeira e gemidos de pedra.

Correram até os pulmões queimarem, até as pernas quase falharem, até, por fim, encontrarem a saída que dava em frente a um prédio em ruínas.

Quando a luz turva da superfície tocou seus rostos, desabaram.

Silêncio.

Somente o som das pedras ainda caindo ao longe.

Ricardo se ajoelhou, os olhos perdidos na poeira do túnel desmoronado.
JORGE... — murmurou. E então gritou: — JORGEEEEEEEEE!!!

Sílvia caiu de joelhos. Ana abraçou Baptiste.
Baptiste apertou os olhos com força, tremendo.
Hellen puxou o capuz sobre o rosto.

Lúcio, mesmo ferido, foi até uma parede e, com carvão, desenhou um olho riscado por três linhas. A marca da Terceira Ordem.
— A-a-algumas... b-b-batalhas... — disse ele com a voz falha —
são ganhas por apenas um herói.

Ninguém respondeu.
Só o vento sussurrava entre os escombros, carregando consigo o eco da presença de Jorge, gravado na memória de todos.


 

6 Comentários

  1. O nerd Jorge, vivenciando de fato o seu Alaric, tombou...

    Mas,salvou a todos daquela situação agonizante e desesperadora.

    Numa guerra, nem todos se salvam.

    Capítulo espetacular!

    Vejamos como a Resistência, com cada vez menos membros vai conseguir se manter de pé.

    Meus parabéns!


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  2. Rapaz! Aí está um excelente conto de sacrifício e heroísmo.
    Esse arco do Jorge foi incrível, uma construção impecável de um personagem que foi bem construído e que deixou e deixará sua marca em quem tiver a sorte e o privilégio de ler esse texto.
    Sobre os demais personagens, tô achando que a Hellen ainda vai dar trabalho...
    Cara, meus parabéns por mais esse excelente capítulo!

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    1. Ah então tu estás interessado na Hellen...vou matar ela no próximo capítulo....kkkkkkkk

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  3. É cara... Como eu disse no outro comentário, mestre de RPG escrevendo é tenso, a capacidade de nos colocar no cenário é nata, assim como a condição de nos fazer apegar ou odiar um personagem! Assim foi com o Jorge, quase invisível ao início, mas como se tivesse usado "Força dos Justos", se agigantou divinamente e, quando todos iriam ceder à dor, ao pânico e ao desânimo por conta da situação de sua saúde, ele foi no sentido contrário, justo quando tudo parecia perdido, como um verdadeiro paladino, ele fez o que todo heroi empático com a vida, ou que verdadeiramente ama seus amigos e sabe que, poderia permitir que eles vivessem com sua vida quase ao fim, optou pelo sacrifício heróico ao invés da covardia de se proteger atrás dos demais! Jorge parte da vida e habita agora a eternidade e ganha lugar no meu coração como um personagem épico, não por seus dons, mas por sua coragem e humanidade! De boas, triste pelo Jorge mesmo... Vou deixar uma mensagem pra ele:

    "Ele era apenas um rapaz — apaixonado por mundos que não existiam, por heróis que só viviam nos dados rolados em madrugadas de RPG. Mas, no instante em que a realidade exigiu um verdadeiro ato de coragem, ele deixou de ser apenas um sonhador. Quando o medo chegou diante deles e os demais não podiam mais interceder ou reagir, ele avançou. E no sacrifício, não buscou glória, apenas salvação para os que amava. Morreu como viveu nas mesas de jogo: honrando um ideal. E provou, no último gesto, que não é o poder que define um herói, é a escolha de se colocar entre o mal e os inocentes, mesmo sabendo que isso custará tudo. Pra sempre Jorge! Sem mais...

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    1. Fantástico simplesmente fantástico teu comentário. E eu tinha certeza quando terminei de escrever o arco do Jorge, que se um dia tu lesse iria te impactar.

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