Dando continuidade ao projeto Calendário Fantástico, consegui bolar um especial para o dia dos namorados, aproveitando para testar um tipo de narrativa a qual não estou acostumado, de uma forma não linear
Vejamos se consegui fazer algo interessante.
Portanto, sem mais delongas... Boa leitura!
Não tinha que ser assim.
O cappuccino estava perfeito, como Rebecca se lembrava, mas, apesar do sabor que preenchia suas papilas gustativas e parecia aquecer todo o seu corpo, a atenção da garota estava do outro lado da rua, que ela observava atentamente.
Não ia demorar.
A maioria dos homens que estavam na cafeteria não conseguiram deixar de reparar na bela morena, de ar compenetrado, que sorvia vagarosamente sua bebida, naquela manhã fria do inverno paulistano.
Cabelos encaracolados, corpo curvilíneo, lábios grossos, impossível não reparar, o que causou algumas discussões entre namoradas ciumentas e seus companheiros.
Ainda assim nada mais chamava a atenção de Rebecca, mas logo isso mudou quando ela baixou a caneca de café, se erguendo um pouco da cadeira onde estava sentada.
Logo um jovem surgiu na outra calçada, oferecendo ajuda a uma senhora que tentava atravessar a avenida com vários pacotes de compras nas mãos, que logo ele pegou, dando-lhe um braço para ajudá-la a chegar do outro lado.
Antes que qualquer um na cafeteria pudesse registrar, Rebecca já estava saindo, após deixar algumas notas amassadas sobre sua mesa, para pagar o que havia consumido, chegando até a faixa de pedestres em minutos.
— Aqui senhora, cuidado com esse pedaço erguido da calçada.
— Uau, eu não tinha visto isso, obrigada minha filha. Hoje encontrei dois jovens tão bons. E dos dois formam um casal tão lindo.
Na mesma hora o rosto do rapaz ficou vermelho como um tomate e, assim que deixaram a senhorinha diante da casa em que ela morava, logo se puseram a conversar animadamente, acabando por almoçar juntos, pegar um cinema à tarde, jantarem e, ignorando a velocidade com que tudo acontecia, passaram a noite juntos no apartamento dele.
Os dias seguintes se tornaram semanas, meses e logo um ano havia se passado.
— Felipe, você não acha que estamos indo rápido demais?
— Só porque estou pedindo para morarmos juntos e oficializarmos tudo? Até meus pais já estão me pressionando para não perder uma “moça tão boa, se você não casar com ela eu juro que te ponho de castigo pro resto da vida”. Palavras da minha mãe.
Novamente a passagem do tempo ficou turva e vieram o casamento, os três filhos, a idade avançada e o momento da despedida.
— Rebecca… Você sabe que… Sempre será minha namorada, não é?
E então ele partiu.
— Não tinha que ser assim…
Ela cerrou os olhos e tudo acabou.
XXX
A cerveja era sempre servido em uma caneca de madeira e bebida com cuidado por causa de uma pequena lasca em um ponto da borda, mas, mesmo assim, o líquido gelado e revigorante descia macio pela garganta da bela bárbara meio orc, que não desviava seu olhar para o lado de fora da Taverna, vendo o frio do inverso rigoroso e a neve que se acumulava.
Ao redor não eram poucas as paladinas, ou bardas, ou mesmo algumas arqueiras élficas que precisavam distribuir cascudos em seus companheiros e amantes, quando a atenção deles era atraído de imediato para a imensa e linda guerreira selvagem.
Cabelos num tom verde-escuro, presos em tranças dread, todos os músculos bem definidos, seios fartos, um corpo esculpido em meio a centenas de batalhas, cujas roupas mínimas de couro nem tentavam esconder algo.
Algo nela a diferenciava de seus pares, afinal a falta de paciência era um traço comum a todos os meio orcs, principalmente os que haviam optado pela vida de aventureiros, mas ali estava ela, olhos vidrados para o outro lado da pequena rua de terra, totalmente focada.
Alheia ao que sua presença e beleza ia causando aos demais frequentadores da Taverna Beholder Caolho, repentinamente e sem cuidado algum ela se ergueu, derrubando sua cadeira, enquanto algo finalmente parecia fazê-la despertar.
No outro lado da rua uma senhora perdia o equilíbrio e terminava por ser amparada por um aventureiro que, dando-lhe o braço a ajudou a atravessar a rua sem novas quedas.
Ninguém da taverna reparou quando a bárbara saiu correndo, tamanha a sua velocidade, deixando várias moedas sobre a mesa e alcançando o lado de fora em segundos, com seu machado em punho.
O aventureiro se colocou diante da senhora, acreditando estar sob o ataque de uma meio orc descontrolada, mas logo a verdade se revelou sob a forma de um diabrete que se mesclava à neve para atacar quem passasse por ali desprevenido.
— Nossa… Primeiro esse bom homem me ajuda a ficar de pé e agora sou salta por uma guerreira tão linda… Os deuses devem estar olhando por essa pobre velha hoje.
Em poucos minutos a senhora era deixada diante de sua casa, localizada nos arredores do vilarejo, se despedindo daqueles que a ajudaram.
— Vocês formam um casal lindo!
Os dois se entreolharam, conforme o rapaz ia pegando de dentro de sua capa um pequeno alforje cheio de moedas, que acabara de “coletar”.
— Olá, sou Phellips, o ladino.
— Rhebeka, a bárbara.
— Que tal um almoço caprichado? Eu pago.
Depois de uma lauda refeição, ambos aceitaram um trabalho para eliminar alguns goblins, que estavam ameaçando uma vila, um serviço rápido e fácil e assim que acabaram, em meio à caverna, com dezenas de corpos dilacerados das criaturas, o casal teve o melhor e mais selvagem sexo de suas vidas.
Os dias passaram rápido, as estações vinham e iam, as aventuras passaram de eliminação de pragas para batalhas épicas contra feiticeiros malignos e até mesmo dragões.
A juventude não duraria para sempre, por isso, após o grupo de aventureiros do qual faziam parte derrotar o grande rei demônio, o casal se refugiou em uma cabana nas montanhas, onde viveram em paz.
Pelo menos, até o momento em que tiveram sua última conversa.
— Rebecca… Você sabe que… Sempre será minha amante, não é?
E então ele partiu.
— Não tinha que ser assim…
Ela cerrou os olhos e tudo acabou.
XXX
O ar em Syrius Alpha era metano puro, mas isso não incomodava R’BCC, que sugava os líquidos nutrientes de uma rocha, mantendo seus órgãos sensoriais focados a alguns metros de distância.
Outros Huraks, seres amorfos que apenas se arrastavam, usando vários apêndices para diversas funções, tentavam chamar a atenção da fêmea alfa, ignorando outras ao redor, que se digladiavam para tentar chamar a atenção dos possíveis parceiros de acasalamento, mas R’BCC não se importava com nada daquilo.
Ela pacientemente apenas aguardava.
De repente ele surgiu descendo de um amontoado de pedras ali perto, seguindo em frente sem se importar com nada, o que fez a desejada Hurak sair de onde estava, rastejando o mais rápido que sua espécie podia, seguindo até onde uma armadilha fora armada para aquele que conquistara sua atenção.
Pouco antes do ataque do Gruot, um dos inimigos naturais dos Huraks, R’BCC saltou e atingiu a criatura, essa quadrúpede e feita de minerais, que se afastou correndo, surpreso por ter sido atacado pela primeira vez em sua existência, o que o deixara sem reação além de fugir.
R’BCC e F’TRS não perderam tempo, enrolando seus corpos gelatinosos, numa cópula violenta e barulhenta, que instigou os demais Huraks, todos enveredando pela verdadeira orgia que, se vista por outros olhos do alto, seria percebida como uma imensa capa com as cores verde e roxa mescladas.
Após vários ciclos de reprodução, o casal Hurak que iniciara todo um movimento que fez a espécie voltar ao topo da cadeira alimentar daquele mundo, se afastou enquanto R’BCC acompanhava os últimos momentos de vida de F’TRS.
— R’BCC… Vc sb q… Smpr sr mnh mnt, n?
E então ele se dissolveu ao vento.
— N tnh q sr ssm…
Ela baixou seus órgãos sensoriais e tudo acabou.
XXX
O cheiro adocicado da caneca de café não disfarçava os odores de óleo, que vinham dos veículos a vapor que passavam rápidos pela rua na frente da cafeteria, mas a jovem não se permitia ter sua atenção atraída por quaisquer que fossem as distrações ao seu redor.
Cheiros, ou mesmo sons, como os das válvulas de escape das imensas máquinas a vapor, ou mesmo as brigas entre os casais que estavam naquele momento no estabelecimento, quando muitos homens e algumas mulheres tinham sua atenção atraída pela bela ruiva.
Os longos cabelos cacheados caíam harmoniosamente por seus ombros, o corpete deixava sua cintura mais fina e seus seios mais empinados, a pequena cartola, caída de lado, a deixava ainda mais sensual, tanto quanto as sardas à mostra em seus ombros e por sobre seu nariz.
As pernas bem torneadas se destacaram quando ela se ergueu da cadeira, ao ver um rapaz do outro lado da rua, ajustando as pernas mecânicas de um velho, que mal se aguentava de pé, enquanto tentava chegar à calçada do outro lado.
O senhor acabou conseguindo, após se apoiar no jovem que o ajudara, mas quase foi atingido pelo braço de um gigante a Vapor que era usado para consertar a fachada de uma loja próxima.
— Nossa, obrigado mocinha! Nem vi de onde você veio… Pelo visto os deuses olharam para esse velho hoje, sendo ajudado por duas almas tão jovens e belas… Aliás, que casal lindo vocês formam…
— Olá, meu nome é Filipus.
— Eu sou Rebecca…
Ambos seguiram juntos pelas ruas de San Paolo, em poucos instantes as mãos estavam com seus dedos cruzados, chegando rapidamente até a casa da garota, onde ficaram praticamente enfurnados por quase um mês, até que foi necessário sair para comprar mantimentos.
Viviam como aventureiros, explorando áreas do país que, segundo os primeiros europeus a pisar naquela nova terra a mais de duzentos anos, eram impossíveis de acessar, graças aos povos nativos que viviam nelas e tentavam impedir a todo custo o “progresso”.
Algumas vezes até viveram entre os Tupã Ayre, ou filhos de Tupã, como os nativos se chamavam, rejeitando o nome dado por aqueles que eles chamavam de invasores.
Em 1715, mesmo com o Brasil sendo um dos países com a maior miscigenação apresentada, eram poucos os nativos que aceitavam viver nas grandes cidades, muitos vistos como prováveis terroristas.
O casal acusou, enfrentou e entregou dezenas de suspeitos ao longo dos anos, mesmo depois de terem oficializado sua união, diante do reverendo da Igreja do Vapor Universal, mas o tempo avançou de forma inexorável e logo estavam diante do maior pesadelo dos casais apaixonados.
Era chegada a hora de dizer adeus.
— Rebecca… Você sabe que… Sempre será minha querida, não é?
E então ele partiu.
— Não tinha que ser assim…
Ela cerrou os olhos, se preparando para sua própria entrega, porém seu destino mudou num intante.
— Não! Pelos deuses da vida e do amor! Não! Não ouse fechar os olhos!
A idosa senhora se colocou em pé, mostrando um vigor e uma agilidade que não condizia com sua idade avançada, ao sentir uma mão a tocar-lhe a face, realmente impedindo-a de seguir com o que sentia que precisava fazer.
— Finalmente te alcancei antes do fim, minha amada.
Diante de Rebecca estava um homem jovem, não chegara nem aos trinta, ela tinha certeza somente ao vê-lo, enquanto sentia um estranho calor se espalhando por todos seu corpo, deixando-a com as faces ruborizadas.
— Q-quem é você?
— Acredite, palavras não podem nem começar a explicar, por isso…
O jovem tomou a idosa nos braços e, sem que ela sequer sentisse a menor vontade de se soltar, logo ele tomava os lábios dela num beijo profundo, amoroso e cheio de desejo.
Assim ficaram por um tempo impossível de ser medido.
E então toda verdade se descortinou diante dos olhos fechados de Rebecca.
Ou melhor de Nádia Starblade.
Ela se lembrou de ser uma paladina, parte de um grupo de aventureiros, os Guerreiros dos Destino, onde se apaixonou pelo bárbaro Rhagazor, despertando o ciúme do clérigo Phillypus, que fomentou um ódio em seu coração por anos a fio, até que, um mês após a união matrimonial dos colegas de equipe, os visitou certo dia, com seu plano de vingança finalmente pronto.
O clérigo drogou as bebidas dos dois que, sem conseguir mover seus corpos, mantiveram-se conscientes de tudo, enquanto seu ex-colega realizava um ritual profano que faria com que as almas dos três vagassem pela eternidade, saltando de realidade em realidade, onde Nádia e ele sempre se encontrariam, vivendo uma intensa história de amor onde, após Phillypus se cansar e encerrar sua existência apenas decidindo que assim seria, a paladina logo se entregaria aos braços da morte para, logo em seguida, reiniciarem o ciclo em outra realidade.
Para Rhagazor o destino seria ainda pior, pois sua consciência sempre despertaria pouco antes da vida de sua amada se encerrar, cabendo a ele encontrá-la eternamente atrasado.
O que o clérigo não contava era com o fato de que, naquele mundo mergulhado no vapor, que movia desde pequenas espadaserras até gigantescos construtos de guerra, o bárbaro, agora conhecido como o general Straydog, teria sua consciência despertada antes do tempo, devido ao acúmulo de decepções, ao encontrar a amada morta aos pés de seu odiado inimigo por tantas vezes e realidades.
Sem que tivessem coragem de encerrar o beijo, ou mesmo de soltar o abraço, que tentava aplacar a agonia de terem sido forçados a viver tantas vidas de mentira, os dois ficaram vários minutos agarrados, até finalmente abrirem os olhos.
E eles ainda estavam juntos e, agora, ambos exibiam uma idade parecida, dois jovens cheiros de amor no coração, mas conscientes de que tinham um longoe e árduo caminho a seguir, para compensar toda dor que haviam encarado.
Bastou um olhar, não era possível encontrar palavras que pudessem descrever como estavam seus espíritos naquele momento e então o casal resolveu sair daquele casebre, mas não sem que antes o antigo Rhagazor, atual general Straydog, destruísse o local, até deixar apenas uma pilha de entulhos para trás, um marco do fim de uma maldição.
Ou será que não?
Passaram-se diversas estações, até que, certa madrugada, os pedaços do que um dia fora a morada de Filipus e Rebecca, começaram a se agitar, abrindo, por fim, caminho para uma mão carcomida, que deixava um rastro de vermes conforme os dedos se moviam, abrindo caminho para uma criatura que, um dia, fora um clérigo, mas que agora se erguia como um bruxo Lich.
Seus olhos mortos se ergueram na direção da Lua, soltando um lamento que ecoaria por anos, deixando claro que seu desejo de vingança era pleno.
— Não tinha que ser assim…
Fim?
2 Comentários
Olha....surpreendeu!
ResponderExcluirA história começou de um jeito com vários ciclos reencarnatórios de Rebecca e Filipe ( e suas variações nominativas) , repetindo incansavelmente o mesmo começo , meio e fim...
No quarto ciclo, eu me liguei que algo estava errado com o casal.
Algo não batia.
O final deu a resposta....
Uma maldição gerada por um triângulo amoroso de eras longínquas, onde a parte rejeitada, resolver fazer uma vingança absurda e que foi resolvida pelo verdadeiro amor de Rebecca de maneira muito original.
Ah...não posso deixar de citar as referências aos amigos Caolho (direta) e Aldo (indireta, através de um cenário muito parecido com Grund-Tharg).
Parabéns !
Excelente conto!
Muito obrigado pela leitura e comentário!
ResponderExcluirValeu mesmo pro ter curtido, eu tava meio inseguro com a estrutura desse texto, mas parece que acertei um pouco a mão.
A referência ao Caolho foi realmente clara e intencional, a do cenário criado pelo Aldo foi sem querer... hehehe
Brigadão mesmo