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Por Trás Dos Olhos Capítulo X

 

 

CAPÍTULO X

ECOS DO PASSADO

 

        O horizonte parecia mais torto naquela direção. As construções, já corroídas e distorcidas pelo toque do inferno, assumiam formas ainda mais grotescas. Paredes que respiravam, concreto que rangia como carne prestes a rasgar. Cada passo parecia mais pesado, mais errado. Até o vento parecia querer fugir dali. O grupo avançava em silêncio. As últimas quarenta e oito horas haviam sido uma sequência de sobrevivência bruta: emboscadas evitadas, demônios farejando à distância, uma corrida constante entre o Véu e a realidade quebrada. Encontrar aquele portal para o Véu — uma fenda disfarçada na carcaça de um prédio desabado — tinha sido um alívio necessário. Ali, pelo menos, suprimentos ainda existiam. Pão, enlatados, analgésicos, baterias. Coisas simples. Coisas que, aqui, valiam mais que vidas. Mas agora… agora tudo parecia diferente. Sílvia andava na frente. Sempre andava. Mas não daquele jeito. Os olhos, que normalmente escaneavam o entorno, agora estavam vazios, fixos em algo que ninguém mais via. A mandíbula cerrada, os dedos trêmulos segurando a arma — não de frio, nem de medo, mas de algo mais profundo, mais enraizado. Algo que parecia corroer de dentro. Ela não falava. Não explicava. Só caminhava. E o silêncio dela pesava mais do que qualquer criatura que pudessem encontrar.

Baptiste percebeu. Ana percebeu. Hellen percebeu. Até Ricardo — que já não tinha mais humor desde a morte de Jorge — lançava olhares estranhos na direção da líder. E Lúcio... bom, Lúcio só mantinha os olhos baixos, como quem aprende, rápido demais, que esperança é um luxo que não se carrega nesse mundo. Ninguém perguntava. Ninguém tinha coragem. Mas estava claro. Algo estava errado. Errado o suficiente para que até o ar ali parecesse mais espesso. Mais difícil de respirar. Então, quando chegaram ao topo de uma encosta — o que parecia ter sido, um dia, a cobertura de um shopping —, Sílvia parou. Olhou adiante, imóvel. E ficou assim, tempo demais.

— Qu'est-ce que c'est... — sussurrou Baptiste, quase para si.

Ana apertou os olhos, tentando enxergar através da neblina suja, das formas deformadas que se arrastavam no horizonte.

E foi quando ela viu. Ao longe, espalhados como sentinelas ao redor da antiga avenida rachada, símbolos riscados no concreto — olhos cruzados por dois cortes. E mais adiante, estandartes. Pedaços de tecido preto, rasgado, marcados por um símbolo que Ana não reconhecia... mas que, quando olhou para Sílvia, percebeu que ela sim reconhecia. Sílvia estava imóvel. Ombros tensos, respiração presa, olhando para aquele território como quem encara um fantasma que nunca pensou ter que ver de novo. E, mesmo sem entender, sem saber, Ana sentiu.

Aquele lugar não era apenas perigoso. Aquele lugar... carregava fantasmas que não pertenciam só ao mundo. Pertenciam a Sílvia.

Sílvia se virou, encarando o grupo. O rosto estava mais pálido que o normal, os olhos duros, quase vidrados.

— Escutem... — A voz saiu seca, baixa, porém firme. — Isso aqui... — ela olhou ao redor, como se cada sombra pudesse estar ouvindo — …é território da Segunda Ordem.

Silêncio.

— A Segunda... — começou Ana, mas a própria voz pareceu trai-la.

— A Segunda Ordem... foi corrompida — cortou Sílvia, olhando diretamente para ela, depois para cada um dos outros, um a um. — Eles... não são como nós. Não lutam mais pela humanidade. Não lutam por ninguém. Se entregaram. — Fez uma pausa, respirando fundo. — Eles servem aos demônios agora. Fazem... acordos. Sacrificam outros humanos pra permanecerem vivos. E... piores que demônios... são homens que escolheram ser demônios. O frio na espinha se espalhou como veneno.

— Atravessar aqui é nossa única opção. — Sílvia apertou mais uma vez a arma, que rangeu com um som metálico.

— Não podemos ser vistos. Não podemos ser ouvidos. Eles não nos dariam chance alguma. Nem sequer falariam. Ninguém respondeu. Apenas assentiram. Lentamente. Quase sem mover os lábios. Ricardo ajeitou o rifle nas costas. Lúcio, ofegante, apertou a faca contra o peito, como se o aço pudesse impedir que o próprio coração pulasse pela boca. Baptiste verificou cada carregador, cada faca, com precisão quase ritual. Ana sentiu a mão suar tanto que precisou secar na calça, mas mesmo o atrito do tecido parecia fazer barulho demais. E começaram a descer. As ruas eram ossos expostos. Carcaças de carros derretidos, esqueletos de prédios que se curvavam como árvores mortas, fios pendendo do alto como raízes negras. Cada passo era um teste: onde pisar, onde não pisar, o que podia ser só entulho e o que poderia ser uma armadilha — ou um cadáver prestes a se mexer. Hellen ia mais atrás, com o olhar de quem já não confiava nem na própria sombra. Sílvia levantou a mão, fechada em punho.

Parem.

Todos se colaram no que restava de uma parede quebrada, respirando raso. Ana apertou o corpo contra o concreto, sentindo a umidade escorrer pelas costas. O cheiro de podridão parecia mais forte ali. Mais... vivo. Sílvia se abaixou, olhou por uma fresta. Fez sinal com dois dedos, depois apontou pra frente, rente ao chão. Ana seguiu o olhar. Ali, pouco mais de trinta metros adiante, um pequeno acampamento. Três figuras. Homens — ou o que sobrou deles. Usavam mantos escuros, rasgados, com o símbolo da Segunda Ordem: um olho dois riscos. Pareciam humanos, mas algo... algo na postura, na pele cinzenta, nos olhos fundos e negros, dizia que já não eram mais só isso. Eles estavam agachados ao redor de uma fogueira improvisada. Um deles afiava uma lâmina manchada de sangue seco. Outro revirava uma mochila que claramente não era deles — restos de algum outro desgraçado que teve o azar de cruzar aquele caminho. O terceiro estava de pé, olhando pro nada, girando lentamente uma corrente entre os dedos, como quem espera alguma coisa acontecer.

Sílvia fez mais sinais. Rápidos. Precisos.

Dividir.

Dois pela esquerda, dois pela direita e dois na cobertura.

Eliminar.

Silencioso.

Ninguém questionou.

Baptiste olhou pra Ana, fez um leve aceno com a cabeça. Eles iriam pela esquerda. Hellen e Ricardo seguiram pela direita. Sílvia e Lúcio fariam a cobertura — o garoto parecia hesitar, mas bastou um olhar dela pra que ele simplesmente assentisse, engolindo o medo. Ana sentiu o coração disparar no peito. Cada passo era um grito abafado. Deslizou por trás de uma pilastra quebrada, depois por um carro corroído. As mãos seguravam a faca com tanta força que doía.

O vento soprou.

O homem da corrente parou de girá-la.

Ana congelou.

Ele olhou.

Não diretamente. Não na direção certa. Mas olhou.

Baptiste se abaixou, respirando tão baixo que parecia nem existir. Levantou lentamente o braço, faca em punho, e apontou pro alvo mais distante — aquele que mexia na mochila.

Ricardo já estava quase na lateral do grupo. Hellen se arrastava feito sombra.

Silêncio.

O mundo inteiro parecia conter o fôlego. Então, num movimento preciso, sincronizado, três sombras se soltaram da escuridão.

Ana sentiu a faca entrar na carne com um som seco, abafado. O homem se debateu, os olhos arregalados, mas Baptiste já estava sobre ele, tampando a boca, girando a lâmina no pescoço até a resistência sumir. Hellen cravou a lâmina no pulmão do segundo, empurrou, forçando o corpo no chão, segurando, segurando, até o som de algo se partindo preencher o vazio.

Ricardo errou. A mão falhou. A faca entrou, mas não fundo o bastante. O homem da corrente gritou.

Um grito curto. Cortado. Mas alto o suficiente pra fazer o sangue de todo mundo gelar. Sílvia não pensou. Levantou o rifle e atirou. O som explodiu no ar como uma sentença de morte.

— Merde... — rosnou Baptiste, se levantando. — Eles ouviram.

E, ao longe... passos.

Muitos.

Pesados.

Rápidos.

Eles estão vindo.

Corram! — gritou Sílvia, já puxando Lúcio pelo braço.

O mundo virou uma tempestade de ruídos. Passos, gritos, metal contra metal. O silêncio tenso se despedaçou num caos de disparos e ecos entre as ruínas. Baptiste recuava, atirando rajadas curtas, precisas.

Couvre! Couvre! — gritava, cobrindo a retaguarda enquanto Ana e Ricardo se arrastavam por entre destroços, tentando qualquer rota de fuga.

— Pela esquerda! — apontou Hellen, o rosto sujo de sangue e poeira. Mas não havia esquerda. Nem direita. Nem saída.

Sombras surgiam de todos os lados. Homens deformados pela corrupção, armados com rifles improvisados, lâminas serrilhadas, correntes e pedaços de metal amarrados como garras. A Segunda Ordem os cercava como lobos. O som de uma explosão, e o chão tremeu. Baptiste tentou mais uma vez, disparando contra um dos flancos. Acertou um, depois outro, mas a cada corpo que caía, três outros surgiam da névoa avermelhada.

Merde... merde... merde! — Ele tentou puxar o carregador, mas uma coronhada brutal veio do nada, direto na lateral do rosto. O francês caiu de joelhos, sangue escorrendo da boca. Ana levantou a faca, desesperada, mas um dos homens agarrou seu pulso e torceu com força suficiente pra fazer a lâmina cair no chão. Outro a chutou na barriga, derrubando-a. Lúcio tentou correr, mas tropeçou. Foi prensado no chão, uma bota pesada contra a nuca.

Hellen ainda tentou disparar, mas o rifle foi arrancado de suas mãos, seguido de um soco que rachou seu lábio. Sílvia… Sílvia não lutou. Ela ficou ali. Parada.

Imóvel. Como se seu corpo tivesse travado. E então… o som mudou. Passos mais lentos. Mais pesados. Um arrastar de botas misturado com o tilintar ritmado de correntes. Os homens abriram espaço. E ele surgiu.

Júlio.

O líder da Segunda Ordem. Alto, robusto, a pele marcada por cicatrizes que pareciam queimaduras antigas. Os olhos eram negros, profundos, como buracos sem fim. Vestia o mesmo manto rasgado dos outros, mas o dele era adornado com pedaços de ossos — dedos, dentes, fragmentos de crânios — presos como amuletos nas costuras. No peito, o símbolo da Segunda Ordem. Um olho cruzado por duas linhas serrilhadas, quase como garras, pintadas em sangue seco. Ele caminhou devagar até os prisioneiros, olhando cada um deles como se escolhesse mercadorias num mercado de carne. Parou diante de Sílvia.

Abriu um sorriso largo. Um sorriso podre. De quem já esqueceu como é ser humano.

Ora, ora, ora… vejam só, rapazes... quem resolveu voltar pra casa.

O grupo inteiro virou o rosto, como se aquele sorriso pudesse ser uma lâmina.

Sentiu saudade dos seus velhos amigos, Sílvia? — A voz dele era grave, arrastada, como cascalho sendo moído entre dentes. — Ou... finalmente percebeu que não se foge da própria natureza?

Sílvia não respondeu.

Não podia.

Os olhos de Ana se arregalaram. Ela olhou para Ricardo, que balançava a cabeça, atordoado. Hellen apertou os punhos, cuspindo sangue no chão. Baptiste, com o rosto inchado, rangia os dentes, encarando Sílvia como se não reconhecesse mais quem ela era. Lúcio… Lúcio simplesmente sussurrou, quase sem voz:

— ...Casa? Silvia?...

Júlio se abaixou, ficando na altura de Sílvia, e passou um dedo encardido pelo queixo dela, forçando-a a olhar em seus olhos.

Bem-vinda de volta, traidora.

 

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6 Comentários

  1. Bem...chegamos ao ápice, com a revelação de que a líder Silvia, pertencia à Segunda Ordem, que foi corrompida pelos demônios.

    A história ficou cabelos e eletrizante!

    Meus parabéns por esse trabalho 3 sucesso nas vendas.

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  2. Opsss.

    A história ficou cabulosa ( corrigindo)

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  3. Muito bom o episódio, levou tudo para um lado mais tenso da coisa com a Silvia tendo vínculos com a Segunda Ordem, mas muito mais que isso, a correria, o frenesi, a confusão, o desespero pela vida... Eu não pude deixar de comparar com o grupo do Rick diante do Negan com seu grupo capturado, a tensão foi a mesma, e em TWD foi pra mim um dos momentos mais tensos da saga, ou seja, realmente ficou muito bom cara, meus parabéns!

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