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HORIZONTE DE ESTRELAS - MISSÃO 01




MISSÃO 01

CARGA GELADA

 O casco da Estrela Perdida rangeu ao atravessar o campo de destroços orbitais, como se protestasse contra mais uma aterrissagem naquele pedaço esquecido da galáxia.

Estação Asterion-5 surgiu no horizonte — uma colmeia decadente de aço, vidro estilhaçado e antenas tortas. Seus anéis externos giravam de forma irregular, cuspindo faíscas onde drones tentavam, sem sucesso, manter os sistemas de gravidade estáveis.

Uma voz rouca e saturada irrompeu no rádio, acompanhada de ruídos eletromagnéticos:

Estrela Perdida, identifique-se e informe o motivo da aproximação.

Lúcia apertou o botão de transmissão com um suspiro resignado.

— Aqui é Lúcia Vega, código IR-12-77. Só uma parada rápida, abastecimento, manutenção... e talvez algo mais.

Talvez não é motivo, capitã.

Ela sorriu, seca.

— Então escreve aí: motivo... negócios.

Silêncio. Depois, o som abafado de uma trava se liberando.

— Autorizada. Hangar G-9. E... cuidado com o que procura, capitã.

O hangar parecia mais um depósito de sucata do que um espaço de atracação. O chão era de placas metálicas manchadas, algumas parcialmente derretidas. Gotas de algum fluido viscoso pingavam de dutos quebrados no teto, formando poças esverdeadas que evaporavam lentamente, exalando cheiro de ozônio queimado e ferrugem.

Ela desceu a rampa da nave ajustando a jaqueta, o coldre firme na coxa. Seus olhos percorreram o espaço, automaticamente mapeando saídas, rotas de fuga e rostos suspeitos — que, naquele lugar, eram todos.

Pelas passarelas superiores, circulavam trabalhadores de espécies diversas. Um par de Zurkani — criaturas anfíbias, altos, de pele azul petróleo, olhos opacos e tentáculos pendendo do queixo — transportavam cilindros de plasma refrigerado. Eles se comunicavam em estalos úmidos, como se mastigassem água.

Mais à frente, um grupo de Kaeliths, uma raça de insetoides bípedes, com carapaças douradas e braços múltiplos, disputava território com um mercador humano. Os Kaeliths tinham olhos compostos e mandíbulas que rangiam sempre que falavam — uma língua difícil de entender, cheia de cliques e sons guturais.

Duas figuras Hauraks observavam tudo à distância. Eram mamíferos de pelagem cinza escura, com rostos achatados, bocas largas que quase rasgavam os rostos de tão largas e olhos âmbar que refletiam a luz. Conhecidos como predadores, caçadores de recompensas, e às vezes... canibais.

Lúcia desviou por uma viela lateral, evitando os controles alfandegários, e logo surgiu diante da fachada do bar mais imundo da estação: O Nebulosa Distorcida.

O letreiro piscava, pendurado por cabos remendados. Uma jukeboxeletromagnética gemia um jazz sintético no fundo, distorcido, como se o próprio espaço-tempo estivesse bêbado.

O cheiro do lugar era uma mistura de álcool industrial, suor de espécies incompatíveis e graxa espacial. Mesas de metal enferrujado estavam ocupadas por todo tipo de lixo ambulante da galáxia. Uma Vharani — humanoide de pele negra opalescente, sem boca visível, mas com três olhos verdes na testa — bebia um líquido roxo que evaporava antes de chegar ao copo.

Atrás do balcão, um autômato de serviço modelo C4-RL0, com metade da carcaça faltando e fios expostos, limpava um copo que já não tinha salvação há décadas.

Lúcia caminhou até o balcão, pediu algo forte — nem se deu ao trabalho de perguntar o quê —, virou o líquido num gole só, e então se virou, apoiando os cotovelos na borda.

— Sabia que te encontraria aqui — disse uma voz áspera atrás dela.

Ela não precisou olhar. Reconhecia aquele tom de desonestidade a anos-luz de distância.

— Joseph... — disse, arrastando o nome. — Pensei que você tivesse finalmente encontrado um jeito decente de morrer.

Joseph Skarlo, mercador, trapaceiro, mentiroso profissional e ocasional fornecedor de problemas, sorriu com aquele mesmo sorriso torto de sempre. Era um humano magro, de barba rala, implantes cibernéticos desalinhados na lateral do crânio e olhos com lentes ópticas baratas que vibravam quando ele ficava nervoso.

Ele puxou uma cadeira, sentou-se e jogou um holo-dispositivo sobre a mesa.

— Preciso de alguém pra um serviço. Simples. Rápido. Pago na entrega.

Lúcia arqueou uma sobrancelha.

— Você e a palavra “simples” não deveriam estar na mesma frase.

— Ah, vai me ouvir ou não?

Ela pegou o copo vazio, girou entre os dedos, pensou por três segundos.

— Fala.

Joseph se inclinou, olhou pros lados, abaixou a voz:

— É uma carga. Pequenina. Discreta. Mas... valiosa.

— E?

— E... tem gente interessada. Muita gente. Do tipo que não gosta de dividir brinquedos.

Lúcia respirou fundo. Por um lado, aquele tipo de trabalho sempre acabava em tiros. Por outro, pagar as dívidas da Estrela Perdida não ia acontecer com transporte de minério.

Ela bateu o copo na mesa.

— Onde. Quando. E quanto.

Joseph sorriu, satisfeito, mas com aquele fundo de culpa que denunciava: havia mais naquela história do que ele estava contando.

Joseph girou o holo-dispositivo, ativando uma projeção azulada sobre a mesa. Um mapa tridimensional surgiu, destacando uma lua esquecida nos confins do setor Cignis IV, orbitando um planeta gasoso com anéis quebrados.

— Tá vendo aqui? — Ele apontou com um dedo ossudo. — Armazém orbital Zeta-9. É lá que a carga tá esperando.

Lúcia cruzou os braços, analisando.

— Parece… remoto. Pouco tráfego, pouco problema. O que é estranho vindo de você.

Joseph riu, mas seus olhos — ou pelo menos as lentes baratas que usava como olhos — não acompanhavam o sorriso.

— Relaxa, garota. É uma entrega. Só isso. Você pega, traz pra mim, e tá feito.

Ela o encarou por longos segundos. Aquele tipo de silêncio que faz até os ruídos do bar ficarem abafados.

— E quem tá de olho nisso, Joseph? — perguntou, séria. — Porque se tiver a Liga Mercante, o Sindicato Orlok, ou, sei lá, os Caçadores de Vhar, eu quero saber agora.

Joseph coçou o queixo, desconfortável.

— Nada que você não consiga lidar, Lulu.

Ela estreitou os olhos.

— Me chama de Lulu de novo e eu te faço cuspir cada dente de plástico que tem nessa boca.

Joseph levantou as mãos, rindo. — Tá, tá… Lúcia. Profissional como sempre.

Ela respirou fundo. Sabia que ia se arrepender, mas também sabia que não podia recusar. A Estrela Perdida tava com três sistemas à beira de falhar, o tanque quase seco, e uma dívida crescente com um cartel de mecânicos de meia reputação.

— Valor. — disse, seca.

Joseph deslizou o holo pra ela. Um número apareceu. Não era exorbitante, mas o suficiente pra manter a nave voando mais uns meses.

Lúcia fingiu pensar, mas no fundo já sabia a resposta.

— Fechado. Me passa as coordenadas.

— Ótimo. — Joseph relaxou, como se tivesse acabado de desarmar uma bomba. — Mas, olha… pega e sai. Nada de papo, nada de curiosidade. Pega. E. Sai.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— Já disse, Skarlo… não sou das curiosas.

Ela pegou o holo, se levantou e jogou alguns créditos no balcão.

— E se isso der errado, Joseph… — fez uma pausa, encarando-o. — Eu volto pra te procurar. E você sabe que eu sempre encontro.

Joseph apenas sorriu, sem graça, acenando enquanto ela saía.

Armazém Orbital Zeta-9

A Estrela Perdida flutuava lentamente na órbita do planeta gasoso Urath Prime, seus motores zumbindo enquanto desacelerava para acoplagem. O armazém Zeta-9 era pouco mais que uma plataforma flutuante, feita de módulos soldados de qualquer jeito, conectados por passarelas expostas. Placas de aviso piscavam em línguas diferentes: PERIGO: ZONA NÃO REGULAMENTADA.

O hangar estava vazio. Quase vazio. Um único operador, da raça Skevar, aguardava na doca. Eles eram seres de baixa estatura, pele grossa como couro envelhecido, olhos grandes, negros e brilhantes, e braços longos demais pro corpo. Pareciam uma mistura de morcego sem asas e lagarto velho.

O Skevar mascava algo que parecia um pedaço de metal enferrujado. Quando viu Lúcia sair da nave, levantou a mão, segurando um datapad.

— Entrega pro... pro Joseph Skarlo, é? — chiou, com a voz arranhada.

— É isso. — respondeu Lúcia, olhando ao redor, alerta. — Sem perguntas, sem problemas.

— Tá nos termos. — O Skevar gesticulou e duas unidades de carga suspensa flutuaram até ela. Cada uma protegida por campos de contenção azulados. Pequenas. Seladas. Sem qualquer indicação do conteúdo.

Ela franziu o cenho.

— Isso é tudo?

— Tudo. Assina aqui. — O Skevar estendeu o datapad.

Lúcia encostou a luva, registrando o código biométrico.

— Feito.

Quando os containers flutuantes entraram no porão da Estrela Perdida, ela deu uma última olhada nos sensores. Nenhuma movimentação suspeita… por enquanto.

Subiu pro cockpit, ativou os motores.

— Tá. Simples, rápido e... — apertou alguns botões — com sorte, sem tiros hoje.

O painel piscou, confirmando as coordenadas de retorno.

— Voltando pra Asterion-5. E Joseph... — murmurou, meio sorrindo, — espero que você esteja certo.

A nave acelerou, deixando pra trás o armazém solitário, sumindo no brilho pálido do planeta gasoso.

O hiperespaço se desdobrava à frente como um túnel líquido de luz e sombra. No cockpit, Lúcia tamborilava os dedos no painel, observando os sensores. Tudo tranquilo… até que não estava mais.

— Mas é claro… — resmungou, ao ver três pings vermelhos surgirem no radar. — Sabia que tava fácil demais.

As formas emergiram do hiperespaço com aquele clarão branco-azulado, abrupto e violento. Três naves. Pequenas, rápidas, com pintura desgastada, blindagem improvisada e marcas características de saqueadores: caveiras, dentes pintados, inscrições nas línguas mortas de algum canto perdido da galáxia.

No painel, uma comunicação se abriu, invadindo todos os canais.

— Aqui é Karrag, da Irmandade Varkul — a voz era grave, meio metálica, com um sotaque gutural. — Desacelere imediatamente, desligue os motores e entregue a carga. Se cooperar, talvez deixemos os órgãos no lugar.

Lúcia revirou os olhos, jogando-se para trás na cadeira.

— Irmandade Varkul... — suspirou. — Sempre achei que vocês fossem só lenda. Tipo higiene pública nesse setor.

O radar apitou. As três naves começaram a se posicionar em formação de cerco.

Ela puxou a alavanca lateral, trazendo os escudos pro máximo.

— Tá. Vamos brincar.

Os motores da Estrela Perdida chiaram quando ela acelerou, subindo na vertical em relação ao plano do hiperespaço, tentando quebrar o cerco. As naves piratas responderam imediatamente, soltando disparos de energia. Dois deles ricochetearam nos escudos laterais. O terceiro passou perto demais, arrancando faíscas do casco.

— Droga! — Lúcia apertou uma sequência de botões, jogando contramedidas — pequenos drones que liberaram pulsos eletromagnéticos, bagunçando os sensores dos perseguidores.

Por um segundo, funcionou. Um dos Varkul saiu da formação, desorientado.

Mas não o suficiente.

— Você é teimosa, humana! — voltou a voz do tal Karrag. — Mas seu casco não vai segurar por muito tempo. Entregue a carga!

Lúcia puxou o manche, fazendo a nave girar em espiral, desviando de uma saraivada de tiros.

— Droga e eu nem sei o que tem aqui… — rosnou, acelerando para o limite.

Um alerta soou. Um dos motores auxiliares começava a superaquecer.

Ela olhou para o painel, depois para o radar, depois para os próprios pés. Respirou fundo.

— Tá, Lúcia... respira... pensa. Eles são três. Você é uma. E você não tem armas suficientes pra bancar esse tiroteio.

Olhou pra frente, uma linha pálida no espaço indicando a proximidade de uma nuvem de destroços — restos de uma antiga estação mineradora, agora à deriva, pedaços gigantescos de metal girando lentamente, criando uma zona caótica de navegação.

Ela sorriu. Aquele tipo de sorriso que só alguém com problemas mentais ou muita confiança faria.

— Beleza… vocês querem brincar? Então... me sigam.

Puxou os motores no máximo, mirando direto na nuvem de destroços.

O alarme do sistema piscava em vermelho:

PERIGO — NAVEGAÇÃO IMPOSSÍVEL — COLISÃO IMINENTE.

— Eu sei. Cala a boca. — respondeu pro próprio sistema.

Atrás, os três caças hesitaram por um instante… e então vieram atrás.

O jogo tava só começando.

O campo de destroços surgia à frente como uma muralha disforme. Montanhas de metal torcido, placas de casco flutuando sem rumo, pedaços de estações, satélites, motores quebrados — tudo girando lentamente em um balé silencioso de morte e abandono.

O radar da Estrela Perdida apitava como louco, piscando dezenas de alertas. Nenhuma nave sensata atravessaria aquilo em alta velocidade. Nenhuma, exceto ela.

— “Se eu morrer aqui, pelo menos não vai ser entediante...” — rosnou, ajustando os estabilizadores manuais.

Atrás dela, as três naves da Irmandade Varkul mantinham formação, cuspindo rajadas de plasma verde que riscaram o casco da Estrela, arrancando faíscas, mas sem atravessar os escudos — ainda.

No rádio, a voz gutural de Karrag soou, cortando a estática.

“Última chance, humana. Entregue a carga e sua morte será rápida.”

Lúcia apertou o botão de resposta.

— “Adoro sua preocupação, Karrag... mas, infelizmente, hoje não é um bom dia pra morrer. Nem pra você, nem pra mim.” — Desligou antes que ele respondesse. — “Aliás, principalmente pra mim.”

Jogou o manche pro lado. A Estrela mergulhou por uma fissura estreita entre duas vigas de metal retorcido, uma manobra que beirava o suicídio. Faíscas de colisões laterais voaram pelo casco, e o campo gravitacional da nave gemeu, tentando estabilizar.

Atrás, um dos caças Varkul tentou seguir... e quase conseguiu.

Quase.

Uma antena de comunicação, ainda girando lentamente, cruzou o caminho. O caça tentou desviar, mas a asa direita foi arrancada com um estrondo surdo, e logo depois a nave se chocou contra um bloco de reator do tamanho de um prédio, explodindo em uma esfera azulada.

— “E um foi pro inferno...” — murmurou Lúcia, com meio sorriso.

Os dois restantes apertaram o cerco, jogando disparos atrás dela. O escudo da Estrela começou a ceder — primeiro 75%, depois 52%.

Um dos tiros acertou a lateral, arrancando parte de uma das antenas parabólicas.

— “Ah, ótimo. Lá se vai meu receptor de rádio. Como é que eu vou ouvir música agora?”

Ela puxou um manete lateral, liberando uma nuvem de microdrones de dispersão. Pequenos pedaços de metal magnetizado que confundiam radares e sensores ópticos.

Por alguns segundos, o radar dos piratas ficou cego. Lúcia aproveitou, mergulhando por baixo de uma placa imensa, depois girou a nave em 180 graus e deslizou rente à carcaça de uma antiga estação médica, agora nada mais que um esqueleto corroído.

As naves Varkul reorganizaram a formação, vasculhando o espaço.

No rádio, Karrag rosnou:

“Não pense que pode se esconder, pirata. Eu sinto o cheiro do seu medo.”

— “Errado. Isso não é medo. É só o cheiro do sistema hidráulico vazando. Mas vale a tentativa.” — respondeu, apesar do rádio estar desligado.

Ela apertou os olhos, avaliando o cenário. Havia uma velha turbina de dobra flutuando, semiativa. Em teoria, aquilo ainda tinha combustível no núcleo.

Sorriu.

— “Você vai me ajudar, meu amor.”

Disparou um tiro preciso com o canhão iônico lateral. O disparo acertou bem na câmara de ignição da turbina.

Por alguns segundos, nada.

Depois, uma explosão violenta. Uma onda de plasma se espalhou, empurrando destroços em todas as direções. Um pedaço de casco do tamanho de um cruzador acertou um dos caças Varkul em cheio, destruindo-o instantaneamente.

— “Dois...” — sussurrou Lúcia, ajeitando o manche.

O último caça se afastou, manobrando para longe da onda de choque, tentando reposicionar.

Karrag, furioso, abriu o canal de comunicação.

“Você vai pagar por isso, maldita! Eu juro pela cripta dos Varkul que vou arrancar seu coração com as minhas presas!”

— “Entra na fila, Karrag. É longa.”

Aproveitando o desequilíbrio do inimigo, Lúcia ativou os propulsores auxiliares e saiu do campo de destroços pela lateral, passando tão perto de uma placa giratória que chegou a raspar o casco. Faíscas dançaram pelo visor.

Atrás, Karrag hesitou por um instante. Avaliou. E, no fim, desistiu.

O radar confirmou: o sinal dele sumiu, pulando pro hiperespaço, provavelmente pra lamber as feridas e planejar vingança.

O silêncio voltou. Quase reconfortante.

Quase.

O painel acendeu outro alerta.

Avaria no condensador de fluxo — 67% de eficiência. Atenção: pane nos propulsores laterais.

— “Ah... você tá de brincadeira.”

Se jogou no assento, respirando fundo.

— “Ok... uma coisa de cada vez. Entregar a droga dessa carga. Depois, rezar pra que Joseph pague o suficiente pra consertar essa lata velha.”

Olhou para trás. A carga piscava. Inofensiva. Misteriosa. E absolutamente irritante.

— “Se você não valer cada maldito crédito, eu te jogo no núcleo de uma estrela, juro.”

Mas, no canto do visor, algo piscava. Pequeno. Vermelho.

Um sinal.

Um rastreador.

Alguém... ainda estava atrás dela.

O bip persistente do visor não parava. Pequeno, irritante, vermelho.

Lúcia socou o painel. Nada. Apertou comandos de diagnóstico.

Fonte do sinal rastreado: compartimento de carga 2.

— “Ótimo. Maravilhoso.” — soltou, rangendo os dentes. — “O que diabos...?”

Levantou-se, atravessou o corredor estreito da nave, chutando um painel caído no caminho. O cheiro de ozônio queimado e graxa velha dominava o ambiente. Quando abriu a porta do compartimento de carga, viu.

Na lateral da caixa metálica, escondido discretamente sob um fecho magnético, um pequeno dispositivo piscava.

Ela arrancou o rastreador com um puxão seco.

— “Filho da...” — apertou com força na mão, olhando pro objeto. — “Joseph. Você me rastreou. Você me colocou nessa maldita emboscada.”

Girou o dispositivo nas mãos, analisando. Tecnologia simples, barata. Nada militar. Nenhuma transmissão secundária ativa.

— “Ele só queria garantir que eu não desse no pé com essa carga... ou...” — estreitou os olhos. — “...ou essa porcaria vale muito mais do que ele me contou.”

O radar bipou novamente, mas dessa vez, não era perigo.

No horizonte, surgia a silhueta da Estação Argo 9. Uma espiral metálica gigantesca, com anéis externos girando lentamente, conectados por colunas verticais. Seu corpo principal parecia uma colmeia de aço e vidro, manchado pelo tempo, com placas de blindagem remendadas, estruturas antigas e milhares de luzes piscando na escuridão.

“Aqui é Argo 9. Identifique-se.” — a voz automática soou, metálica, sem emoção.

Lúcia pressionou o transmissor.

— “Estrela Perdida. Código IR-12-77. Voo comercial autônomo. Solicito docagem na baía 5 ou equivalente.”

“Autorizado. Direcione-se à doca 5-G. Mantenha velocidade abaixo de 15. Sistema de acoplamento automatizado ativado.”

— “É... automatizado. Claro. Como se alguma coisa aqui funcionasse.”

A nave manobrou lentamente. As garras hidráulicas da doca estalaram quando se fecharam ao redor do casco, puxando a Estrela Perdida até alinhar com o corredor pressurizado. Jatos de gás se espalharam pela lateral, estabilizando o encaixe. Um som oco ecoou quando os selos magnéticos se ativaram.

Doca 5-G — Acoplamento Completo.

Lúcia desligou os motores principais, escutando o silêncio se instalar dentro da nave, quebrado apenas pelos estalos metálicos de resfriamento dos propulsores.

Levantou-se, ajeitou a jaqueta, prendeu o coldre na perna e encarou a caixa.

— “Se você não for ouro, diamante ou um hiperduto de antimatéria... eu juro...”

Acionou a abertura da comporta.

O corredor de acoplamento era tão decadente quanto o restante da estação. Placas de aço amassadas, fios expostos, luzes tremeluzindo. Sons de martelos, vozes distantes em dezenas de idiomas, e o cheiro característico de ozônio, mofo e óleo velho.

Joseph já esperava.

 trambiqueiro acenou, sorrindo com aquele mesmo sorriso torto, metade charme, metade ameaça.

— “Ah, Lulu! Olha só... cheguei a achar que você não viria.”

Ela não respondeu. Apenas cruzou os braços, batendo o pé no chão.

— “Rastrear minha nave, Joseph? Sério?”

Ele abriu os braços, disfarçando.

— “Precaução, minha querida. Nunca se sabe... você tem uma reputação...”

— “Tua sorte é que eu tô cansada demais pra te atirar agora.”

— “Vamos, vamos... sem rancores. Trouxe a carga, certo?”

Ela acenou com a cabeça. Dois droides da estação flutuaram até a nave, engataram na caixa cilíndrica e começaram a puxá-la. Joseph acompanhava com os olhos, nervoso, como quem observa um cofre sendo aberto.

Um dos droides parou. A caixa chiou, as travas magnéticas se soltaram. As laterais se abriram.

De dentro... vapor branco. Nuvens frias se espalharam pelo chão.

E então...

Potes. Cilindros prateados, selados, cuidadosamente empilhados, cada um marcado com o logotipo holográfico de uma estrela sorridente.

Sorvete.

Sorvete galáctico. Sabor Vharani Blueberry, Asterion Vanilla, Pulsar Pistachio e até um exótico Antimatéria Crunch.

Lúcia ficou imóvel por três segundos. Piscou.

— “...Você... Tá de brincadeira...”

Joseph estalou os dedos pros droides, que começaram a empilhar os potes num carrinho flutuante.

— “Entrega feita. Bem na temperatura ideal, olha só. E... você reclamando. Eu disse que era uma carga simples.”

Ela arregalou os olhos, o sangue fervendo.

— “Simples?! Você me fez atravessar aquele inferno, fui atacada por piratas, quase morri esmagada por um reator desativado e... e... ERA SORVETE?!”

Joseph levantou o dedo, sorrindo.

— “Sorvete galáctico ultra-premium. Uma fortuna no mercado de luxo, minha querida. Você acha que é fácil conseguir Antimatéria Crunch? Tem gente que mata por menos.”

Ela apertou os olhos, cerrando os punhos.

— “Se você não me pagar... cada maldito crédito prometido, eu juro, Joseph... juro... eu vou fazer você comer cada pote. Sem colher.”

Ele gargalhou, puxando um dispositivo de transferência de crédito e jogando pra ela.

— “Tá tudo aí. Com bônus, vai. Você merece. Agora... vai descansar. Aproveita. Fica por aqui uns dias. Você parece... estressada.”

Ela pegou o dispositivo, olhou, conferiu. Dinheiro certo. Pelo menos isso.

Caminhou até a lateral da doca, respirou fundo, cruzou os braços.

Olhou pra estação. Argo 9. Não era bonita, nem limpa, nem segura. Mas... era abrigo. Por enquanto.

— “Certo...” — disse, mais pra si mesma. — “Vou ficar uns dias. Beber algo forte. Dormir. E tentar esquecer que quase morri... por sorvete.”

O som das docas, das vozes e dos anúncios holográficos se fundiu no fundo, enquanto ela seguia pro interior da estação.

O universo era um lugar estranho. E, francamente, Lúcia começava a achar que ele fazia isso só pra provocá-la.

 


8 Comentários

  1. Grande Caolho!


    Aqui, temos temos uma aventura espacial apocalíptica.

    Lúcia, em sua geringonça em forma de nave, tenta ir vivendo, se arriscando em missões que mais se parecem com ciladas para se manter.

    Achei interessante esse primeiro capítulo.

    Vejamos como se dará a odisseia de Lúcia, a Comandante da Estrela Perdida.

    Show de bola!

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    1. Obrigado, obrigado por acompanhar meu trampo. Esse é um novo gênero que vou tentar desenvolver, sempre quis fazer nunca me animei, e vai totalmente na contramão do que foi Por Trás Dos Olhos.

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  2. Uma estréia simplesmente incrível!
    Uma spare opera que não fica nada a dever para obras como Star War ou Star Trek, mas com mais personalidade e com uma ação extremamente bem desenvolvidas.
    Eu acho muito foda o seu poder se sintetizar algumas informações, como, por exempl oa descrição das raças aliens, conseguindo "desenhá-las" na cabeça do leitor em poucas linhas.
    Seu senso de dimensão de espaço também impressiona, eu conseguia ver direitinho por onde a Lúcia ia caminhando e o que tanto ela foi fazendo.
    A batalha espacial foi muito bem detalhada e o fim dos perseguidores foi emocionante demais.
    E... Tudo isso por sorvete!!!?
    Cara, essa revelação final foi incrível, me quebrou totalmente, e tava até esperando um bebê Yoda, mas... Sorvete?!
    Sensacional meu amigo, simplesmente sensacional!

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  3. Mas quem resiste resiste a um Antimatéria Crunch? Impossível....

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  4. Excelente episódio, me senti numa mescla de Guardiões da Galáxia com Han Solo, em uma nave aparentemente sucateada como a Milleniun Falcon, mas isso é sem dúvida um bom sinal, uma vez que eu curto ambas as citações! Curti o perfil da Lúcia, curte as descrições de raças alienígenas (eu apanhando pra criar as minhas na saga Nipo Ranger, e o cara desfila criatividade pra criar as dele) e também curti muito, as descrições do universo espacial desta maneira, ficou realmente muito bom, parabéns meu amigo! \0/

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    1. Vlw Aldo. Que bom que achaste um tempinho pra acompanhar essa série.

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  5. Tive a impressão de estar vendo uma versão feminina e jovem do Han Solo, ainda sem o Chewbacca. Texto muito bom, envolvente, detalhes certos no lugar certo. Parabéns e seguirei lendo.

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