A Estrela Perdida mancava pelo hiperespaço.
Sim, mancava. Porque, tecnicamente, uma nave não deveria ser capaz de mancar. Mas aquela era uma exceção muito teimosa às regras da física — cada salto parecia mais um suspiro de uma velhinha que não sabe se termina o cigarro ou simplesmente deita pra morrer.
Dentro do cockpit, Zurgo martelava um painel com uma chave de torque do tamanho da própria cabeça. — “Eu juro... se esse conversor explodir, eu explodo junto. Pelo menos economiza combustível...”
Mako olhava pras luzes piscando no radar, branco como farinha, braços cruzados. — “Sério... quem foi o gênio que projetou esse lixo voador? Isso aqui não é uma nave. É um obituário com motor.”
Lúcia apertava o manche, olhos semicerrados, mandíbula travada. — “Fica quieto, Mako. A gente tá a poucos minutos de Scylla Prime.”
Zurgo se virou, arregalando os olhos. — “A GENTE VAI PRA SCYLLA?!!”
— “Aham.”
— “SCYLLA PRIME?! PLANETA DOS PILANTRAS, TRAFICANTES, DESMONTADORES DE NAVE E LADRÕES DE ÓRGÃOS?! ESSE SCYLLA PRIME?!”
— “Esse mesmo.” — respondeu Lúcia, seca.
Mako gemeu, batendo a testa no painel. — “Perfeito. Absolutamente perfeito. A gente sobrevive a monstros alienígenas, quase explode, e agora vai morrer esfaqueado numa briga de bar.”
Lúcia nem piscou. — “Se a gente sobreviver à oficina do Krag, qualquer coisa depois disso é bônus.”
A Estrela Perdida fazia sons que, definitivamente, uma nave não deveria fazer.
O painel do cockpit piscava em cores que não estavam no manual. As luzes de diagnóstico alternavam entre vermelho, laranja e um tom de roxo ameaçador que, segundo Zurgo, “nem devia existir fora de uma supernova ou de uma rave muito ruim.”
O som dos estabilizadores traseiros rangia como ossos quebrando em loop. O motor lateral chiava, cuspindo gás de escape como se tivesse uma crise asmática interplanetária.
No visor frontal, uma única coisa se destacava: um planeta seco, poeirento, manchado de ferrugem, cercado por anéis de sucata e uma nuvem constante de lixo espacial.
Scylla Prime.
O tipo de lugar onde até o oxigênio era cobrado.
E caro.
— “A gente tá MESMO indo pra Scylla...” — Mako resmungou, braços cruzados, encarando o visor com o olhar de quem assiste um acidente em câmera lenta. — “...cê sabe que se a nave não matar a gente, o planeta mata. Ou alguém nele.”
Zurgo bateu no painel, literalmente. — “Pior... se esse gerador auxiliar travar, a gravidade some. E se a gravidade some, eu... EU... eu desisto. Viro nuvem. Fim.”
Lúcia não respondeu.
A mão apertava o manche, firme. O queixo duro. O olhar, focado.
— “Krag ainda tá lá. E ele ainda me deve dois reparos e meio. Aquele miserável me deve até os parafusos que roubou de mim cinco anos atrás.”
— “Krag?!” — Zurgo quase caiu da cadeira. — “O Krag-Desmonta-Até-a-Própria-Mãe?! Você vai botar a nossa nave... nas mãos DELE?!”
Lúcia deu um sorriso fino. — “Ele é o melhor. Ou o menos pior. Depende do ponto de vista.”
O radar apitou.
Um satélite quebrado flutuava a poucos metros da proa, girando lentamente, com pedaços de antenas e carcaças presas nos cabos.
Scylla Prime não tinha uma estação orbital. Tinha um campo de destroços, onde naves quebradas, abandonadas ou roubadas se empilhavam no espaço como lixo esquecido por deuses bêbados.
No rádio, uma voz soou. Rota, grossa, cheia de ruídos e com sotaque de quem fumava sucata no café da manhã.
— “Nave não identificada... escaneando. Se tiver armas ativas... a gente responde. Se não tiver... também responde. Bem-vindos a Scylla Prime, seus desgraçados.”
Zurgo se afundou no assento. — “Perfeito. Incrível. Maravilhoso. A gente escapou da morte pra... isso.”
Lúcia nem piscou. — “Desativa as armas. Ativa os protocolos de aproximação. Joga aquele código velho da última vez que estive aqui.”
Nyx processou, conectando-se ao terminal externo. — “Código aceito. Acesso liberado para plataforma 17-C. Observação: risco de roubo: 96%. Risco de morte por facada: 67%. Risco de assassinato geral: 88%.”
— “Só isso?” — Mako bufou. — “Tava achando que era mais.”
A Estrela Perdida deslizou lentamente pela órbita baixa, cruzando as nuvens de lixo espacial até atravessar a camada atmosférica — ou o que Scylla Prime chamava de atmosfera.
O céu era marrom.
O chão, vermelho-ferrugem, cheio de crateras, montanhas de sucata, prédios tortos, plataformas feitas de pedaços de naves recicladas, e torres com canhões giratórios que apontavam pra qualquer coisa que se mexesse mais rápido do que devia.
A plataforma 17-C parecia... segura.
Quer dizer... não estava pegando fogo. Ainda.
Zurgo olhou pela janela, olhando uma nave estacionada ao lado.
Ela estava literalmente segurada por cordas. CORDAS. Com ganchos de carga.
— “Isso não é um planeta... isso é um erro administrativo galáctico.”
Lúcia alinhou a Estrela Perdida, baixou a rampa e desligou os motores — que tossiram, chiaram e gemeram como um animal velho que finalmente ganhou permissão pra morrer.
Ela se levantou, ajustou a jaqueta, travou o coldre na perna e olhou pro grupo.
— “Certo. Bem-vindos a Scylla. Aqui...” — respirou fundo — “todo mundo quer te roubar, te enganar ou te matar. Às vezes, nessa ordem. Às vezes, tudo junto. Fiquem juntos. De olho em tudo. E não... não façam contato visual com ninguém que tenha mais de dois olhos. Confia em mim.”
Mako bufou. — “Perfeito. Tranquilo. Eu tava mesmo precisando de um banho de tensão e adrenalina. Relaxa que eu já tô quase com úlcera.”
Zurgo ajeitou os óculos, segurando o módulo como se fosse um recém-nascido. — “Eu não sei se fico feliz por não ter sido comido vivo na Kronos... ou triste por, aparentemente, estar prestes a ser esfaqueado por um mecânico que cobra até pelo olhar.”
Lúcia puxou a porta do compartimento de armas, conferiu o blaster, olhou pra eles e deu aquele sorrisinho torto, de quem sabe exatamente onde tá se metendo.
— “Bem-vindos de volta ao lado ruim da galáxia.”
A rampa se abriu.
O cheiro de ferrugem, ozônio, graxa queimada e falsidade escancarada invadiu a nave.
Scylla Prime.
O lugar onde esperança vinha desmontada, faltando peças, sem manual, e ainda custava caro.
O calor bateu primeiro.
Um calor seco, sufocante, carregado de poeira e cheiro de metal queimado. Depois, veio o barulho — aquele tipo de barulho que não é um som, mas um ataque sensorial.
Martelos pneumáticos, gritos em idiomas incompatíveis, alarmes, sirenes, geradores falhando, motores cuspindo faíscas, discussões acaloradas, explosões pequenas — e, de vez em quando, alguma explosão grande o suficiente pra todo mundo virar a cabeça, dar de ombros e seguir a vida.
Scylla Prime era isso.
Uma cicatriz no mapa da galáxia.
Um planeta onde as coisas vinham pra morrer — ou pra quem queria viver mais um pouco... de jeitos que os tratados intergalácticos considerariam profundamente imorais.
As ruas eram passarelas metálicas soldadas de qualquer jeito, plataformas flutuantes, corredores de carga, tubos reaproveitados de naves quebradas e estruturas que pareciam desabar a qualquer instante, mas nunca desabavam. Pelo menos... não hoje.
Vendedores de sucata brigavam por espaço, oferecendo peças roubadas, modificadas ou francamente amaldiçoadas. Hologramas tremeluzentes piscavam em neon sujo:
→ “ARMAS — SEM PERGUNTAS, SEM REEMBOLSO”
→ “IMPLANTES BIOLÓGICOS — QUASE LEGAIS”
→ “OXIGÊNIO PURO — PRIMEIRA HORA GRÁTIS*” (com um asterisco que nunca levava a lugar nenhum)
Do outro lado, um trio de mercenários Kaeliths (os insetoides de carapaça dourada) discutia com um Haurak — um mamífero enorme, peludo, de boca larga e dentes à mostra — que segurava uma caixa de munição e um bastão elétrico que parecia mais uma árvore podada.
— “TE FALEI, DOZE MIL!” — urrava o Haurak, saliva voando.
— “É PEÇA DE NAVE EXPERIMENTAL, SEU TROGLODITA, ISSO VALE VINTE!!!” — clicou o Kaelith, as mandíbulas tremendo.
BOOM! — Uma das tendas explodiu, lançando caixas, mercadorias e pelo menos dois corpos pra fora.
Ninguém sequer olhou.
— “Deve ter sido o reator de fusão da banca do Lorgan...” — alguém comentou.
Zurgo segurava o módulo apertado contra o peito, olhando em volta com aquele clássico olhar de pânico que ele carregava como assinatura.
— “Eu odeio esse lugar... odeio, odeio, odeio...” — repetia, quase como um mantra.
Nyx andava à frente, sensores rodando, calculando as probabilidades de cada esquina ser uma armadilha, um roubo ou uma tentativa de sequestro.
— “Risco de crime violento nas próximas duas quadras: 84%. Sugestão: manter formação defensiva.”
— “Aqui, Nyx...” — respondeu Lúcia, olhando pros lados — “...a única formação defensiva que funciona é parecer mais louco do que quem quer te assaltar.”
Eles atravessaram uma praça que, aparentemente, era feita só de containers empilhados, cercados por drones armados e pessoas discutindo o valor de... algo que parecia ser um fígado.
Zurgo não quis conferir se era realmente um fígado.
Preferiu não saber.
Mako chutou uma latinha de metal pelo caminho. — “Diz uma coisa, Lúcia... quem foi que te apresentou esse paraíso turístico, hein? Sério. Isso aqui tem tudo que um resort de férias oferece: calor, cheiro de morte, e a chance constante de levar um tiro. Sensacional.”
Lúcia respondeu sem olhar, olhos fixos numa plataforma suspensa, onde três robôs-lutadores quebravam um ao outro enquanto uma multidão apostava, berrava e jogava garrafas.
— “Fui apresentada quando precisei de um capacitor de dobra que não existia mais em lugar nenhum da galáxia. Krag conseguiu um... e depois roubou dois dos meus motores de gravidade como agradecimento.”
Zurgo bufou. — “Ah, ótimo. Um mecânico honesto.”
— “Honesto, não. Competente. São coisas diferentes aqui.” — rebateu Lúcia.
Eles passaram por uma oficina aberta, onde um grupo de Skevars — aqueles tecnomorcegos de braços longos — serrava o casco de uma nave inteira... com a tripulação ainda dentro, gritando e batendo nas janelas.
— “Cê acha que eles vão...” — começou Mako.
— “Não. Não olha. Não pergunta.” — cortou Lúcia, seca.
O cheiro piorou conforme avançavam. Mais óleo. Mais ferrugem. Mais... seja lá o que estivesse apodrecendo naquele tanque de contenção aberto.
E então, no fim da plataforma Gama-5, depois de uma sequência de degraus tortos, fios expostos, poças que ninguém em sã consciência pisaria, e dois drones de segurança meio desmontados...
Ali estava.
A oficina de Krag.
Letreiro piscando, pendurado de lado, com letras em neon azul quebrado que diziam:
“KRAG SOLUÇÕES TECNOLÓGICAS – Se Funciona, Tá Novo”
(E alguém, provavelmente um cliente insatisfeito, pichou logo abaixo: “E SE NÃO FUNCIONA, TAMBÉM.”)
O portão da oficina estava meio aberto, e lá dentro já se ouvia:
— “NÃO! NÃO PISA AÍ!!! AAAH, DROGA, ERA O GERADOR!!!” — seguido de uma explosão curta, faíscas, fumaça preta... e silêncio.
Zurgo engoliu em seco. — “Sabe... a gente ainda pode ir embora. Viver sem dobra não é tão ruim assim. É... é... vintage.”
Lúcia respirou fundo, puxou a jaqueta, ajeitou o coldre, estalou os ombros e caminhou.
— “Vem, Zurgo. Bora cobrar umas dívidas.”
O portão pneumático da oficina estava meio aberto, preso num dos trilhos, rangendo como um animal ferido.
De dentro, saía uma fumaça densa, carregada de cheiro de plástico queimado, graxa fervendo e algum tipo de metal derretido que, sinceramente, provavelmente não deveria estar sendo derretido.
Zurgo olhou, segurando o módulo apertado contra o peito. — “Isso... isso é seguro?”
Mako bufou, cruzando os braços. — “Se fosse seguro, não seria Scylla.”
De repente, um estrondo.
BOOM!
Uma coluna de faíscas subiu pelos conduítes da parede, seguida de uma voz rouca, grave, carregada de fúria:
— “NÃO! NÃO PISA NESSE CABO— AAAARGH!!!”
Mais fumaça. Mais estalos. Mais gritos.
Depois, silêncio.
— “Krag! Abre essa droga! Eu sei que você tá aí!”
Por um segundo, nada.
E então... passos.
Pesados.
Arrastados.
O portão tremeu, rangeu, e subiu meio metro, o suficiente pra deixar à mostra... ele.
Krag.
Quase dois metros e meio de músculo, gordura, próteses e mau humor. Um humano que já tinha perdido tanto do corpo original que, tecnicamente, ele era 60% sucata, 30% gordura e 10% dívida ambulante.
Um olho biônico girava no soquete, piscando luz vermelha. O outro era um olho natural — amarelo, irritado, inchado. A mandíbula esquerda tinha sido substituída por uma placa metálica, com pistões hidráulicos que rangiam toda vez que ele mastigava... ou xingava.
Ele olhou.
Viu Lúcia.
E estalou a língua. — “...tsc... Olha só quem o lixo espacial trouxe de volta.”
Ela cruzou os braços, aquele sorriso torto no canto da boca. — “Saudades também, Krag.”
— “Não trago. Pode devolver.” — respondeu, abrindo o portão inteiro.
A oficina...
Bom...
A oficina parecia uma nave acidentada que alguém tentou transformar num ferro-velho, mas desistiu no meio do caminho.
Partes de motores estavam penduradas por correntes. Um reator nuclear desmontado ocupava metade do espaço, cercado por cones laranja — como se aquilo fosse suficiente pra impedir um vazamento radioativo.
No canto, um droide sem cabeça soldava algo que definitivamente não deveria estar pegando fogo.
O chão estava tomado por ferramentas, peças, engrenagens, cabos, garrafas vazias e o que parecia ser... um braço.
Um braço biológico.
Sanguinolento.
Mako olhou. — “Isso é...?”
— “Não pergunta.” — respondeu Lúcia, seca.
Krag andou até uma bancada, pegou um pano sujo que parecia ter participado de uma guerra civil, e limpou a mão — ou tentou.
— “O que você quer, Vega?”
Ela deu dois tapinhas no módulo que Zurgo segurava, fazendo ele quase derrubar. — “Motor de salto. Quebrei um relé de fluxo gravitacional. E... a Estrela tá pedindo arrego.”
Krag bufou. — “Que novidade. Essa sua lata velha já devia ter sido aposentada há cinco dobros atrás. Onde é que tu arranjou esse módulo? Tá... parece até novo.” — ele se virou, olhando Zurgo de cima a baixo. — “Quem é o gnomo da graxa?”
— “Ei! Eu sou engenheiro mecânico, especializado em manutenção de—”
— “Fala só se eu perguntar, Smurf de oficina.” — cortou Krag, já pegando o módulo e virando de um lado pro outro, batendo nele como se testasse se tinha moedas dentro.
— “Funciona?” — perguntou Lúcia.
Krag girou o módulo, apertou um botão, olhou pra uma luz que piscou e depois bateu duas vezes com força no painel lateral.
O módulo respondeu com um estalo e um bip fraco.
— “Funciona... mais ou menos. Vai precisar de alinhamento. E de um condensador novo.”
— “Você tem?”
Krag coçou o queixo metálico, olhou pros lados, assobiou. — “Talvez. Por coincidência. Se você...” — fez uma pausa dramática, olhando fixamente — “...me pagar aquela dívida.”
Mako explodiu. — “AH, NÃO! ISSO DE NOVO?! ISSO AQUI VAI SER UMA SÉRIE DE CHANTAGENS, NÃO UMA MANUTENÇÃO!”
Zurgo encolheu, segurando a mochila como quem segura a própria vida. — “Eu não devia estar aqui. Eu devia ter ficado na nave. Eu devia estar em casa. Eu nem devia ter saído do planeta, na real...”
Lúcia respirou, olhou pro teto, cerrou os dentes. — “Krag, se você acha que eu vou pagar aquela droga de dívida, a gente pode encurtar a conversa AGORA.” — A mão já descia pro coldre.
Krag levantou uma mão, como quem diz “calma lá”, e riu.
Aquele tipo de riso que não era exatamente riso.
— “Relaxa, garota. Não sou eu quem te cobra. Mas sabe como é... Scylla não esquece. Tem uns nomes na sua ficha que... digamos... tão de olho.”
O silêncio caiu.
Pesado.
Nyx girou a cabeça devagar, processando, mas não disse nada.
Mako olhou pra Lúcia, depois pra Krag, e depois pros lados, como quem mede quantas saídas existem e quão longe ele consegue correr.
Krag estalou os dedos, deu dois tapas no módulo. — “Mas... negócio é negócio. Faço os reparos. Condensador, alinhamento, ajuste do campo gravitacional e... uns reforços nos estabilizadores. Sua nave tá mais torta que minha avó bêbada em dia de aniversário.”
— “Preço?” — perguntou Lúcia, já apertando os olhos.
— “Amizade.” — respondeu Krag, sorrindo. — “Mentira. Quatro mil créditos. E se quiser o alinhamento quântico no motor de dobra, são seis.”
Zurgo arfou. — “SEIS MIL?! POR ISSO?! ISSO É... ISSO É ROUBO! ISSO É UM ASSALTO!
Krag deu um sorriso torto de quem sabe tudo, de quem ouve tudo, de quem vê tudo... e cobra por isso.
Lúcia respirou fundo.
— “Faz. E faz rápido. A gente não vai ficar nesse buraco mais do que precisa.”
Krag estalou os dedos, girou uma chave de ignição numa parede cheia de disjuntores...
E uma explosão no fundo da oficina lançou uma roda girando na direção do grupo, que se abaixou por reflexo.
Krag nem piscou.
— “Normal. Isso sempre acontece. Bem-vindos à Krag Soluções Tecnológicas. Se Funciona, Tá Novo.”
Assim que Krag puxou a caixa de ferramentas e começou a xingar uma bobina que, segundo ele, estava “mais torta que promissória de político”, Lúcia virou-se pro grupo.
— “Zurgo, você fica. Krag vai precisar de ajuda... já que o último funcionário dele...” — fez uma pausa, olhando pro canto da oficina, onde uma mancha escura no chão indicava que algo muito, muito errado tinha acontecido ali. — “...teve um pequeno acidente de trabalho.”
Zurgo arregalou os olhos. — “Mas... e-eu... eu sou engenheiro, não necromante! Eu—”
— “Você vai. E respira. E sobrevive. Se você não morrer até eu voltar, ganha um bônus.” — Lúcia deu dois tapinhas no ombro dele.
— “E eu?” — perguntou Mako, desconfiado.
— “Fica. De olho. Se alguém tentar abrir a nave, arrombar, desmontar... você grita. Corre. E se der, atira. Nessa ordem.”
— “Ótimo. Perfeito. Melhor dia da minha vida.” — bufou Mako.
Nyx se aproximou, sensores girando, pronta.
Lúcia girou nos calcanhares. — “Vem, Nyx. Hora de procurar dinheiro. E rápido.”
Saíram...
O letreiro piscava, torto, meio apagado:
“GUILD CORE — CAÇADORES DE RECOMPENSAS AUTÔNOMOS – NÓS CAÇAMOS O QUE OS OUTROS NÃO QUEREM”
(E alguém rabiscou embaixo: “Ou não podem. Ou não sobrevivem.”)
O prédio era um amontoado de contêineres empilhados, soldados com placas de nave reciclada, e uma porta de aço oxidado que parecia mais um cofre velho de banco. O cheiro ali era uma mistura de suor, óleo hidráulico, pólvora e má decisão.
Dentro... o caos.
Telões holográficos com rostos, dossiês, mapas. Sons de sirenes, alertas, comunicações interceptadas. Caçadores de todo tipo — humanos, androides, reptilianos, anfíbios, até algo que parecia um polvo cibernético com pernas.
No centro, uma cabine blindada com janelas de vidro trincado.
Atrás dela... ele.
Tarkos.
Veterano. Velho demais pra estar ali, teimoso demais pra não estar. Um humano de meia-idade que parecia ter sido construído com couro, graxa e café queimado. O rosto cortado de cicatrizes, parte do crânio substituído por uma placa metálica, uma lente óptica implantada no olho esquerdo que girava constantemente, rangendo.
Nos braços, tatuagens antigas, desbotadas — “Corpo de Fuzileiros Planetários – 2ª Divisão — Desmantelada (duas vezes).”
Ele mascava um charuto eletrônico que soltava mais faíscas do que vapor.
Quando viu Lúcia... o sorriso torto se abriu.
— “Ora, ora, ora... olha quem resolveu aparecer nesse canto do universo. Vega. Nunca imaginei te ver por aqui... de novo.”
Lúcia soltou aquele meio sorriso cínico no rosto.
— “Tarkos... você tá ficando velho. O cheiro de carne queimada continua o mesmo.”
Ele riu. Um som rouco, meio engasgado.
— “E você... ainda tá devendo meio sistema solar pra alguém, aposto.”
— “Ainda não. E espero continuar assim.” — rebateu, secando. — “Preciso de dinheiro. Rápido. Trabalho pequeno, fácil, e que não envolva vender órgãos.”
Tarkos estalou a língua.
— “Pequeno? Fácil? Aqui?” — ele bateu no terminal. — “Tá no lugar errado, garota.”
Digitou algumas coisas no painel, a lente dele piscou, rodou, bipou. Ele parou.
Olhou pra tela.
Arqueou uma sobrancelha.
— “Hm...”
Lúcia arqueou a sobrancelha de volta. — “O que foi?”
Ele deu um sorrisinho. — “Só... conferindo se... alguém já não colocou preço na sua cabeça.”
Pausa.
A lente bipou.
— “Hã... olha só. Ainda não. Mas tá no caminho, Vega. Tá no caminho.” — ele sorriu de canto, acendendo o charuto de novo.
Lúcia soltou um suspiro pesado. — “Que surpresa...”
Tarkos bateu no teclado, abriu um holo na frente delas.
— “Tá. Eu tenho um. Não é grande. Não é fácil. Mas paga bem. E acho que você se lembra dele."
O holo girou.
Foto: Um humano. Meia-idade. Barba mal feita. Jaqueta de couro rasgado, óculos escuros espelhados. Um sorriso torto de quem acha que é mais esperto que o universo.
Nome: Lonestar.
Crimes: Contrabando. Roubo. Pirataria. E... — Tarkos virou o monitor, sorrindo — “Prostituição de dróides. Não pergunte.”
Nyx piscou, inclinando a cabeça. — “Definição de atividade: prostituição de dróides... não encontrada. Consultando... recomendação: não.”
Lúcia passou a mão no rosto. — “...ok. Tá. Onde?”
Tarkos girou o holo, mostrando o mapa de Scylla.
— “Montanhas do Sul. Na ravina de Skarn. Ele e o grupinho dele tão acampados lá, se escondendo desde que roubaram três cargas da CorpOrion e destruíram uma patrulha de interceptores.”
— “Grupinho?”
— “Quatro, cinco caras. Talvez seis. Talvez... mais. Sempre muda.”
Lúcia apertou os olhos, cruzou os braços. — “Paga quanto?”
Tarkos deu aquele sorriso de quem ama um negócio sujo.
— “Cinco mil vivo. Dois e meio morto. E... bônus se recuperar a carga que ele roubou.
— “Perfeito.” — Ela pegou o datapad que Tarkos estendeu. — “Trabalho aceito.”
Ele piscou, dedo batendo no monitor. — “Mas... cuidado, Vega. Lonestar não é mais o pirata que você conheceu. Dizem que ele agora tem... conexões. E gente grande começa a ficar nervosa quando se mexe nas peças erradas do tabuleiro.”
Lúcia girou o datapad na mão, olhando pro mapa, depois pra Nyx.
O sorriso torto voltou pro rosto dela.
— “Ah... gente grande sempre fica nervosa quando eu apareço.”
Nyx inclinou a cabeça. — “Confirmação: afirmação correta. Histórico consistente.”
Ela guardou o pad na jaqueta, olhou pra Tarkos por cima do ombro e mandou:
— “É melhor alguém avisar pro Lonestar... que a festa dele acabou.”
E saiu andando.
O barulho da rua voltou, pesado, sujo, pulsante.
Montanhas do Sul. Ravina de Skarn. Caçada aberta.
O datapad piscou na mão dela.
“ALVO ATIVO: LONESTAR – STATUS: VIVO OU MORTO.”
O sorriso no rosto de Lúcia ficou mais largo.
— “Vamos caçar.”
3 Comentários
Um capítulo excelente onde você apresenta um lugar simplesmente fantástico, que renderia muitas historias, SCYLLA PRIME. Eu simplesmente adorei, tanto esse lugar quanto os habitantes que você mostrou aqui.
ResponderExcluirEu curto também que as relações entre o grupo da Lúcia tbm ficam cada vez mais orgânicas e fáceis de se identificar.
O gancho para a próxima missão ficou excelente tbm.
Meus parabéns!
É meio clichê né. Aliás Horizonte De Estrelas é um amontoado de clichês em forma de história....mas que bom que tá gostando.
ExcluirNa gambiarra cósmica chamada SCYLLA PRIME, o grupo de Lúcia, que mal acabou de se safar de monstros devoradores numa nave fantasma, se vê numa nova enrascada.
ResponderExcluirTudo para manter a geringonça da Estrela Perdida minimamente operante.
Lucia é o retrato de muitos brasileiros: vende o almoço pra comera janta ou, vice e versa.
Sempre se metendo em confusões , a espera da próxima cilada cósmica.
Será que ela vai quebrar a cara?
Vamos que vamos!