Capítulo II - Atores vemos, costumes não sabemos (parte I)
Como diz o velho ditado, onde há luz há escuridão. E Asgard
não é a exceção que confirma a regra, definitivamente.
Asgard é uma sociedade ordeira, hierarquizada e bem
disciplinada, seu povo é pacífico, acolhedor e hospitaleiro, mas ainda assim
tem suas mazelas. E entre elas, a superstição de que gêmeos trazem má sorte às
famílias e as destroem como se fossem uma praga dizimando vilas inteiras ou o
ácido que corrói até mesmo as ligas metálicas mais fortes.
Acredita-se que tal superstição tem sua raiz no mito de
Balder e Hodr, os filhos gêmeos de Odin e Frigga. Segundo diz o conto das
Eddas, por conta de uma artimanha de Loki, o deus das trapaças e travessuras,
Balder foi morto pelo cego Hodr depois de ter sido atingido por um visgo.
E a coisa não para por ai: a superstição em questão com o
tempo virou lei em Asgard, e no reino nórdico por lei toda família que tem
filhos gêmeos deve escolher um deles e abandonar o outro. Quem ousa contrariar
a lei está sujeito a enfrentar sanções que vão desde o desterro a regiões
distantes e deportação para fora de Asgard até longos anos de prisão, reclusão,
perda de patrimônio da família e pesadas multas.
Uma vez abandonada no meio da floresta, questão de tempo é a
criança, longe dos cuidados da mãe, morrer de fome, frio e inanição, ou mesmo
virar a janta do dia de animais como ursos (tanto pardos quanto polares),
lobos, raposas (tanto vermelhas quanto árticas), carcajus[1]
e linces. Outras, pisoteadas por animais herbívoros como alces, renas e outros.
Animais carniceiros e aves de rapina como águias, corujas e falcões também se
aproveitam dos cadáveres dessas crianças para ter sua refeição do dia.
Como se vê, Asgard é o inferno terreno para gêmeos
rejeitados por suas famílias. Mas, por sorte do destino, algumas delas são
adotadas por aldeões das vilas próximas e graças aos cuidados dessa gente
caridosa logram sobreviver e até mesmo chegar à idade adulta. Em média, a cada
10 crianças abandonadas, no máximo uma ou duas sobrevivem.
Uma das mais eminentes e importantes famílias de Asgard é o
clã von Bygul. Tal como os Alberich, os von Bygul são influentes em Asgard há
várias gerações e reivindicam descender de um imigrante vindo da Noruega, mais
precisamente de uma região próxima a Bergen, chamado Lars Ragnarsson. Segundo
registros históricos ele também veio a Asgard no tempo do rei Olavo II (r. 1015
– 1028) fugindo de perseguições religiosas.
O atual patriarca do clã Bygul é um homem chamado Harald
Olafsson jarl[2] von
Bygul. Ele se casou no começo dos anos 1960 com uma mulher chamada Astrid
Stefandottir jarlkona von Garm. Tal como o marido, Astrid tem sangue azul (ou
seja, é também uma nobre) e pertence à família Garm, um ramo cadete[3]
da família igualmente eminente Fenrir. Ao se casar com Harald, Astrid adotou o
sobrenome do marido.
Como se vê, os nobres em Asgard também só costumam se casar
entre si. Isso não apenas é uma forma de costurar alianças entre famílias nobres
(por vezes até com famílias nobres de reinos vizinhos, como Vanaheim e outros),
como também para poder conservar a fortuna e o patrimônio da mesma.
Em Asgard não raro aristocratas se casam com parentes,
geralmente primos de segundo ou terceiro grau para cima. Por vezes, até mesmo
casamento entre primos de primeiro grau ocorrem. Dessas uniões consanguíneas e
do endocruzamento delas decorrente é comum o nascimento de indivíduos com
problemas congênitos tais como demência e hemofilia. O próprio Harald jarl von
Bygul tem um primo demente e um sobrinho hemofílico em seu círculo familiar.
Este último, filho de seu irmão mais velho, passa por grandes perrengues até
mesmo por causa de simples ferimentos, por mais superficiais que estes sejam.
Harald não é um sujeito qualquer em Asgard, muito menos os
von Bygul. Ele é membro da aristocracia fundiária de Asgard, tem grandes posses
e é o senhor de amplos feudos em Asgard. Além disso, ele participa da grande
Thing[4]
de Asgard e, como o político eminente que é, é muito bem relacionado com gente
graúda da política asgardiana. Por outro lado, Harald também tem alguns
desafetos na política, que geralmente fazem oposição a tudo o que ele propõe
nas reuniões da Grande Thing.
Ele é o típico nobre de Asgard, bem tradicionalista e rígido
quanto a várias questões, já que assim foi educado por seus pais, Ingvar e
Helga. Mas ele tem sido um ponto fora da curva, visto que ele, ao contrário de
outros nobres de Asgard, não é esnobe para com pessoas de situação social menos
abastada que a dele. E isso não passa despercebido por alguns de seus desafetos
na política. Desafetos esses que, por sua vez, adoram bajular os homens mais
ricos e abastados de Asgard.
Certo dia de primavera, Astrid descobriu que está grávida e tão
logo contou a novidade ao marido. Ela, grávida de três meses, logo mostra a
barriga ao marido, e os dois em seguida se abraçam. “Tenho certeza que o nosso
herdeiro será um garoto lindo e muito forte e saudável. Algo dentro de mim me
diz que um destino grandioso e único o aguarda“, diz Harald. Astrid responde
com um sim, e também compartilha da mesma sensação.
“Só espero que nós não tenhamos gêmeos”, diz Harald, um
tanto quanto preocupado e receoso. “Também espero o mesmo, querido”, Astrid
responde. “Gêmeos trazem má sorte as famílias e as destroem”, responde Harald.
“Mas será que isso é verdade mesmo, ou isso não passa de superstição antiga?”,
pergunta Astrid. Harald responde que sim, mas mal sabe ele que a semente da
dúvida a esse respeito dessa crença ancestral em Asgard foi plantada nas mentes
deles.
Enquanto conversavam, Harald e Astrid, da área externa da
residência deles, notam nos céus que duas estrelas em especial estão cintilando
nos céus. São elas Mizar e Alkor, as estrelas gêmeas da Ursa Maior. Os futuros
pais, pais de primeira viagem, sentem uma espécie de hipnose ao olhar na
direção dos céus, diretamente as estrelas gêmeas. Ao olhá-las até parece que as
duas estrelas têm algo a dizer ao casal.
Questão de pouco tempo foi a notícia se espalhar para
familiares mais distantes tanto de Harald quanto de Astrid. Todos eles se
animaram com a notícia e se perguntam se a criança vindoura dos von Bygul vai
ser menino ou menina.
[1]
Animal da família dos mustelídeos, também conhecido como glutão e em inglês
chamado de Wolverine. É encontrado na América do Norte, Escandinávia, norte da
Rússia europeia, Sibéria, Extremo Oriente Russo, norte da Mongólia e do
Cazaquistão e nordeste da China (Manchúria). Animal oficial do estado de
Michigan nos Estados Unidos.
[2]
Leia-se “iarl”. Nos idiomas escandinavos, assim como no alemão, no polonês, no
húngaro e outros idiomas europeus, o j tem som de i.
[3] Em
genealogia e história, termo que designa a linhagem masculina dos descendentes
mais jovens de um monarca ou patriarca.
[4] Espécie
de assembleia dos povos germânicos e escandinavos antigos e medievais, no qual
participavam homens livres para fazer leis, executar justiça e tomar decisões
administrativas. Por vezes, reis e comandantes militares eram eleitos nessas
assembleias.
1 Comentários
A construção narrativa desse capítulo tem duas coisas que me chamaram a atenção.
ResponderExcluirA primeira, como crenças limitantes, como a questão da maldição dos gêmeos pode causar problemas familiares e desgraças mil.
A segunda, como a luta de classes é algo que sempre existiu, independente da época.
As elites, de tudo fazem para se perpetuarem no poder.
Mas, voltando à história, sinto que a tempestade perfeita virá ao casal.
Tudo indica que eles terão filhos gêmeos.
Como lidarão com isso?
É o que estou ansioso pra ler!