MISSÃO 10
ENTRE TIROS E CAFAJESTES
O sangue de Lonestar ainda escorria do lábio quando Lúcia o empurrou contra a parede do compartimento técnico, as algemas de pulso estalando com o som seco da trava magnética. Ele riu. Mesmo com alguns dentes quebrados.
— “Você não vai sair viva dessa, Vega...”
Lúcia se abaixou até ficar olho no olho com ele.
— “Talvez. Mas você, com certeza não vai sair inteiro.”
Nyx estava parada à porta, os sensores girando em ciclos curtos.
— “Detectando movimentação nos corredores setoriais. Quatro... não, cinco sinais térmicos. Todos armados. Padrão de deslocamento hostil. Encurralamento tático em curso.”
Lúcia xingou baixinho, recarregando o blaster.
— “Vários mercenários. Três saídas bloqueadas. E um lunático preso que vale mais vivo do que morto.”
— “Eu prefiro pensar que sou valioso em qualquer condição,” comentou Lonestar, cuspindo sangue no chão metálico.
Nyx se moveu, rápida.
— “Eles estão sincronizando frequência de rádio. Preparando ofensiva simultânea. Trinta segundos.”
— “Droga...” Lúcia olhou ao redor. A sala era estreita, cheia de cabos soltos e dutos de refrigeração vazando vapor. Nenhuma rota clara de fuga. Nenhum milagre visível.
Então, ela sorriu.
— “Nyx. Plano improvisado número oito.”
A androide girou levemente a cabeça.
— “Iniciar sequência de distração e sobrecarga localizada. Confirmação?”
— “Confirma.” Lúcia virou-se para Lonestar. — “Hora do passeio, valentão.”
Antes que ele pudesse responder, Nyx abriu um compartimento embutido no braço esquerdo. Um núcleo de sobrecarga foi arremessado para o duto de ventilação mais próximo. Três segundos depois, o corredor ao lado explodiu em uma chuva de faíscas e fumaça metálica.
O estrondo ecoou como um trovão.
— “Contato visual perdido!” — gritaram as vozes nos comunicadores dos mercenários.
Lúcia puxou Lonestar pela gola.
— “Nyx, me abre uma rota. Qualquer uma.”
— “Corredor de manutenção secundário. Acesso via duto de refrigeração. Risco de queimadura de terceiro grau: 76%.”
— “Perfeito.”
Com força, ela arrancou a grade do chão. Vapor quente subiu, ardendo os olhos. Ela empurrou Lonestar primeiro.
— “Anda! Ou eu deixo você aqui com os amigos.”
Ele resmungou algo ininteligível e desceu. Lúcia foi logo atrás, com Nyx por último, fechando o alçapão acima deles com precisão cirúrgica.
O túnel era estreito. Escuro. O vapor cortava a pele como navalha. Mas era isso ou morrer.
O túnel de manutenção tremia a cada passo apressado. A tubulação vibrava ao redor deles, rangendo como se estivesse prestes a ceder. Luzes de emergência piscavam em vermelho, lançando sombras deformadas no vapor denso que se espalhava como névoa viva.
Lúcia mantinha o blaster à frente. Lonestar tropeçava atrás dela, amarrado, bufando como um animal. Nyx vinha por último, escaneando constantemente o ambiente, sensores zumbindo em ciclos curtos.
Atrás deles, o som.
Botas contra metal.
Vozes abafadas. Ordens sendo gritadas.
E tiros.
As primeiras rajadas de plasma explodiram contra as paredes do corredor, faíscas saltando perto demais da cabeça de Lúcia.
— “Merda!” — ela gritou, puxando Lonestar pelo colarinho e o arrastando adiante.
— “Eles estão ganhando terreno,” disse Nyx. “Distância: 37 metros. Quatro hostis confirmados. Um com armamento pesado.”
Nova rajada. Uma das tubulações explodiu a poucos centímetros da cabeça de Lonestar. Ele berrou.
— “Porra! Cês tão tentando me entregar morto, é isso?!”
— “É uma possibilidade em análise,” respondeu Nyx, fria.
Ela se virou de lado, colocando o próprio corpo entre Lúcia e os disparos que vinham de trás. A blindagem absorveu três tiros diretos com ruídos surdos. O quarto atingiu seu ombro, fazendo o metal soltar uma fagulha azulada, mas ela nem se abalou.
— “Avancem. Cobertura em andamento.”
Lúcia disparou duas vezes para trás, sem mirar — os tiros passaram longe.
— “Droga! Não tenho ângulo!”
Nyx não respondeu. Em vez disso, girou o corpo e apontou o braço para cima. Um disparo certeiro atingiu o duto de alta pressão acima da cabeça dos perseguidores.
O resultado foi imediato.
Um jato de vapor escaldante explodiu pelo corredor, preenchendo o espaço com uma nuvem branca fervente. Gritos ecoaram. O som de botas correndo virou o de corpos se chocando com as paredes, tentando recuar às cegas.
— “Obstrução térmica criada.” — disse Nyx, com a precisão de sempre. — “Temperatura interna do corredor: 312 graus Kelvin. Rota inutilizável para organismos não protegidos.”
Lúcia sorriu, ofegante.
— “Às vezes eu esqueço o quão útil você é.”
Nyx piscou os olhos de plasma.
— “Considerarei isso um elogio.”
Com os inimigos isolados temporariamente, elas avançaram pelas tubulações internas em zigue-zague, o som de seus passos abafado pelo chiado do vapor atrás.
Lonestar tropeçava, tossindo.
— “Cês vão me matar só com a caminhada...”
Lúcia deu um empurrão para que ele acelerasse.
— “A gente ainda nem começou.”
Do lado de fora, o céu estava estrelado sobre as montanhas.
E a fuga pelas ruínas... estava só começando.
O trio emergiu do subsolo cuspido pela escotilha de manutenção, arfando e cobertos de fuligem. O ar das montanhas de Scylla Prime parecia mais cortante depois do calor sufocante dos túneis — frio, seco, cheio do cheiro ancestral de pedra velha e morte recente.
A frente deles, as ruínas se estendiam como uma cicatriz aberta no flanco da montanha. Colunas partidas, lajes enegrecidas pelo tempo, torres há muito tombadas sob a vegetação. As motos estavam a menos de cem metros dali, escondidas entre dois obeliscos desmoronados.
— “Quase lá...” — Lúcia disse, ainda ofegante.
— “Você disse isso três explosões atrás,” respondeu Lonestar, mancando com as algemas apertadas. — “Não confio mais na sua definição de ‘quase’.”
— “Confia nos meus tiros, então.”
— “A julgar pelos últimos, prefiro confiar em uma hemorragia interna.”
Ela ia retrucar, mas o som interrompeu tudo.
Clac-clac. Clac.
Não um. Vários.
Posições elevadas. Rochas acima.
Nyx parou de andar.
Seus olhos de plasma acenderam com mais intensidade.
— “Movimento detectado. Setores angulados ao norte e oeste. Emboscada.”
— “Ah, ótimo,” murmurou Lúcia, puxando o blaster.
Então o inferno começou.
Rajadas de plasma cortaram o ar como chicotes incandescentes, traçando linhas mortais sobre as pedras. O primeiro disparo explodiu a menos de um palmo da cabeça de Lúcia, lançando fragmentos que cortaram sua bochecha. Outro atingiu o solo à frente de Lonestar, fazendo-o tropeçar com um grito.
— “Ok! Eu retiro o que disse! Prefiro seus tiros!”
Lúcia agarrou o colarinho dele e o puxou pra trás de uma rocha enquanto respondia:
— “Agora sim estamos nos entendendo.”
Nyx girou em movimento fluido, sacando o blaster embutido e lançando dois disparos concentrados. Um deles acertou uma coluna distante — o impacto arremessou dois mercenários do topo, que caíram girando no ar como bonecos de pano antes de sumirem na ravina.
O outro tiro destruiu parte da ruína à esquerda, soterrando dois inimigos com pedras do tamanho de motores auxiliares.
Mas outros surgiram. Mais cinco. Talvez seis. Um deles desceu pela lateral da colina com uma metralhadora leve de plasma, rugindo como um motor de caça.
— “Eu conheço esse cara!” gritou Lonestar. — “O nome dele é Hark. Sempre foi ruim de mira e péssimo em banho!”
Nyx respondeu sem emoção:
— “Confirmado. Análise olfativa sugere ausência de higienização há no mínimo nove dias.”
— “Ei, isso foi uma PIADA?” Lúcia olhou espantada.
— “Interpretação: tentativa de humor. Modo de imitação social em testes.”
— “Você tá ficando assustadoramente eficiente nisso.”
Tiros cruzaram rente à cabeça de Lúcia, que se jogou atrás de uma estrutura metálica tombada. Ela olhou por cima e devolveu uma saraivada, acertando um dos atiradores no ombro. Ele caiu com um berro, largando a arma.
— “Um a menos!”
— “Nove restantes,” corrigiu Nyx, recarregando o blaster com um clique seco.
Lonestar se esgueirava atrás dela, tentando se proteger.
— “Vocês têm um plano, né? Tipo... agora?”
Lúcia gritou sobre os sons dos disparos:
— “O plano é: sobreviver primeiro, pensar depois!”
Um dos mercenários se aproximava rápido demais pelo flanco direito. Lúcia girou sobre o joelho, mirou e... errou.
— “Droga!”
Nyx disparou um feixe de plasma que atravessou o mercenário como se fosse papel. O corpo caiu aos pés de Lonestar.
Ele olhou para o cadáver, depois para Nyx.
— “Quero deixar registrado que... eu me sinto seguro. Estranhamente excitado, mas seguro.”
Nyx apenas respondeu:
— “Você está algemado. Nenhum dos dois sentimentos é relevante.”
Lúcia gritou:
— “Nyx, foco!”
Mais tiros. Eles estavam ficando cercados.
Lúcia correu abaixada até uma das motos, ativando os sistemas com um toque rápido na ignição. A máquina vibrou, zumbindo sob a carcaça leve.
— “Nyx! Me dá fogo de cobertura!”
— “Posição defensiva assumida.”
A androide ergueu o braço e abriu fogo em três direções ao mesmo tempo. Um campo de plasma rodou ao redor dela como um escudo de energia, desviando tiros enquanto os contra-ataques atingiam com precisão matemática.
Lúcia montou a moto, puxou Lonestar com um movimento brusco e o jogou sobre a carona como um saco de proteína estragada.
— “Ai! Por que sempre tão carinhosa?!”
— “Porque ainda é ilegal te matar estando algemado. Mas tô avaliando exceções!”
Nyx saltou na outra moto, os olhos ainda escaneando ativamente.
— “Área segura detectada a sudeste. Rota estreita entre formações rochosas. Risco de colisão: 41%.”
Lúcia sorriu.
— “Adoro quando você me dá más notícias com essa voz de tutorial.”
Os dois veículos levantaram poeira e faíscas, disparando colina abaixo em meio a tiros, explosões e insultos gritados pelos bandidos. Atrás deles, a fumaça cobria os corpos e os cacos de uma emboscada que tinha falhado por muito pouco.
A noite em Scylla Prime — era escura, fria e cheia de problemas.
Exatamente como Lúcia gostava. As motos rasgavam o deserto como lâminas sobre areia quente. Atrás, o ronco grave de motores inimigos ecoava entre as formações rochosas, misturado ao assobio cortante do vento e aos disparos de plasma que cruzavam o céu em arcos incandescentes.
— “Esses desgraçados não desistem nunca!” — gritou Lúcia, desviando por pouco de uma rocha pontiaguda que quase decepava a lateral da moto.
— “É que o papai paga uma boa mesada pros seus filhinhos,” berrou Lonestar, curvado atrás dela, quase sendo arrancado pela velocidade.
— “Se você morrer antes de a gente te entregar, eu juro que te mato de novo,” respondeu Lúcia, cerrando os dentes e girando os controles num movimento brusco que lançou a moto num salto por cima de uma duna rachada.
Nyx vinha logo ao lado, estável como uma lâmina em linha reta, desviando dos tiros com precisão milimétrica. Os sensores em seus ombros piscavam em alerta constante.
— “Cinco perseguidores. Todos com veículos de combate modelo Tarras-X. Capacidade de aceleração superior à nossa. Sugestão: eliminar alvos antes de desfiladeiro.”
Lúcia grunhiu, sacando o blaster com uma mão só enquanto pilotava com a outra. Um disparo. Dois. O terceiro acertou um dos mercenários na lateral da carenagem, fazendo sua moto rodopiar no ar e explodir contra uma pedra angular que parecia saída de um templo alienígena.
— “Menos um!”
Lonestar riu, ofegante. — “Esse aí vai ter que pedir adiantamento pro inferno.”
Outro tiro passou rente ao capacete de Lúcia.
— “NYX!”
— “Alvo localizado. Eliminando.”
A androide se virou num giro lateral impossível, disparando uma rajada de plasma concentrada que explodiu a moto inimiga em pleno ar. Pedaços incandescentes caíram como chuva de cometa sobre a areia, deixando um rastro de fumaça negra.
Mas os outros três continuavam.
— “Esses malucos são treinados ou só burros?” Lúcia gritou, agora ziguezagueando entre formações rochosas que pareciam dentes de um gigante adormecido.
— “A maioria foi treinada por mim.” — disse Lonestar, com orgulho debochado. — “O resto... aprendeu observando o quanto eu era bom.”
Lúcia bufou.
— “Então parabéns. Você criou um fã-clube armado e vingativo.”
Um tiro de dispersão passou entre ela e Nyx, explodindo uma nuvem de areia tão densa que cegou momentaneamente o visor.
Nyx ajustou os sensores e ativou os escudos.
— “Alvo tentando manobra de cegueira tática. Revidando.”
O braço dela se abriu como uma flor de aço. Dois tiros foram disparados. Um dos mercenários tentou desviar mas a mira de Nyx era implacável.
— “Confirmada eliminação. Dois restantes.”
— “Dois?!” Lúcia rugiu, desviando de uma parede rochosa. — “Por que sempre sobram dois?!”
Lonestar inclinou a cabeça. — “Simetria. Estética. A galáxia tem senso de estilo.”
— “Cala a boca.”
A frente, o solo começava a se inclinar, e o brilho do horizonte desaparecia lentamente sob um véu escuro. O ar ficava mais rarefeito. E então Lúcia viu.
O desfiladeiro. Uma rachadura colossal no planeta, rasgando o terreno como se a própria crosta tivesse se partido em dois. Rochas afiadas nas bordas, dezenas de metros de profundidade. Um salto mal calculado... e fim.
— “Nyx!”
— “Analisando distância. Proporção de aceleração... possível. Margem de erro: 14%.”
— “Catorze por cento de erro em queda livre é o suficiente pra virar carne moída espacial!”
Nyx virou a cabeça para Lúcia, impassível.
— “Recomendação: acelere.”
— “Fácil pra você dizer, você não tem ossos!”
Os dois últimos mercenários surgiram atrás delas, com rifles apoiados nos ombros, atirando em modo automático. Plasma explodia em redemoinhos ao redor. Um disparo atingiu a lateral da moto de Lúcia, fazendo a carenagem chiar e soltar faíscas.
Lonestar se agarrou com força onde podia.
— “Se a gente morrer, posso te dizer que gostei da viagem.”
— “Se a gente morrer, vou te matar primeiro pra garantir que não fale mais nada.”
As motos aceleraram. A borda do abismo se aproximava como uma sentença. O vento uivava. O motor gritava.
— “NYX. AGORA!”
E então… Elas voaram.
4 Comentários
Cara, ficou muito bem escrita essa perseguição, com cada detalhe tão bem descrito que eu quase senti o vento resultante da aceleração dos veículos.
ResponderExcluirE os diálogos entre a Lúcia, a Nyx e o Lonestar são muito divertidos e construídos de modo que me remete muito aos filmes de ação dos anos 80. Sensacional.
E que gancho final perfeito! Consegui visualizar a moto iniciando o salto e a "imagem" congelando pouco antes de aparecer o "continua..."
Meus parabéns cara!
I believe i can fly...i believe i can touch The sky...
ExcluirEsse episódio foi do kct.
ResponderExcluirPassageiros da agonia é a melhor definição.
Episódio eletrizante e muito bem conduzido.
O que curti mais foi o desenvolvimento de Nyx que, somado ao as informações do capítulo anterior, ficou mais realista ainda.
Parabéns!!!
Quem será o próximo personagem a ter seu passado revelado...??? Não perca no próximo capítulo....
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