CINZAS DO AMANHÃ
O vento seco arrastava poeira radioativa pelo horizonte estéril. Não havia mais canto de pássaro, nem o zumbido insistente de insetos. O mundo, desde 2058, fora silenciado pela guerra. O céu, outrora azul, agora era uma mistura constante de tons alaranjados e acinzentados, obscurecido por nuvens tóxicas que jamais se dissipavam por completo. A cada sopro de vento, o cheiro metálico da radiação queimava as narinas, lembrando os sobreviventes de que o planeta não era mais deles.
A terceira guerra mundial havia terminado rápido demais. Misérias e ressentimentos acumulados por décadas explodiram em um único gesto: o disparo dos primeiros mísseis. Em poucas horas, metrópoles inteiras se tornaram crateras ardentes. Noventa por cento da população desapareceu em fogo e sombra. O resto... o resto nunca voltou a ser humano.
Agora, o que restava do mundo era um deserto árido, um cemitério sem fim. Estruturas corroídas pelo tempo e pela radioatividade ainda se erguiam como esqueletos de uma civilização perdida. Carcaças de carros enferrujados, arranha-céus partidos ao meio, estradas que levavam a lugar nenhum. No silêncio, os estalos ocasionais do metal dilatando-se ao calor lembravam o choro de fantasmas aprisionados no ferro retorcido.
E no meio desse inferno, a água se tornara mais preciosa do que o ouro um dia fora. Poças escuras e envenenadas cintilavam sob o sol escaldante, fatais para quem ousasse bebê-las. Apenas alguns poucos vilarejos, erguidos nos escombros de cidades, conseguiam reunir fontes subterrâneas ou sistemas improvisados de filtragem. Pequenas ilhas de humanidade cercadas por vastos oceanos de areia e morte.
Mas nem todos os sobreviventes eram humanos.
Havia os Androídes de Guerra — máquinas criadas para lutar, que haviam perdido seus mestres humanos e agora vagavam sem rumo. Alguns se tornaram guardiões silenciosos, protegendo ruínas. Outros, predadores implacáveis, incapazes de desligar a programação de combate.
Havia também os Mutantes, corpos destroçados e reconstruídos pelo veneno radioativo. Alguns apenas deformados, outros... monstros irreconhecíveis, capazes de rasgar carne e aço com as mãos.
E então, havia os Psychers. Homens e mulheres que a radiação não matou, mas transformou. Seus cérebros, antes frágeis, haviam despertado para o poder bruto da mente. Eles manipulavam o fogo, o vento, a terra, a eletricidade. Mas cada uso de poder os consumia, queimando-os por dentro, corroendo o que restava de sua sanidade. Eram armas vivas — temidos, caçados, idolatrados por alguns, odiados por outros.
A estrada quebrada diante do vilarejo de Torghan era um lembrete cruel desse mundo. Pedaços de asfalto rachado se perdiam entre dunas de areia escura. O sol castigava sem piedade. Os olhos de quem ainda ousava caminhar por ali ficavam secos em minutos, a pele rachava como barro malcozido.
E naquele dia, o silêncio foi quebrado por um grito.
Um viajante, coberto de trapos, corria pela estrada com passos trôpegos, perseguido por algo que se movia entre a areia. Seus olhos, arregalados pelo pavor, refletiam a consciência de que não chegaria vivo até o portão do vilarejo. A criatura que o caçava não era feita de carne comum: era uma fusão grotesca de ossos expostos e músculos negros, pulsando com secreções radioativas. Suas garras, longas e afiadas, deixavam marcas fundas no asfalto rachado.
Do alto das muralhas improvisadas de ferro, os vigias ergueram suas armas enferrujadas. Não havia munição suficiente, mas também não havia escolha. Cada ataque era uma questão de sobrevivência.
No entanto, antes que a criatura alcançasse o homem, uma onda de calor tomou o ar. A poeira suspensa se ergueu em um turbilhão incandescente. O monstro recuou, urrando, e o viajante caiu de joelhos.
De entre as sombras, uma figura emergiu.
Capuz baixo, olhos brilhando em tons escarlates, como brasas em meio ao crepúsculo. Não havia dúvida: era um Psycher.
Com um movimento da mão, ele invocou chamas que dançavam no ar rarefeito. O fogo não queimava apenas o corpo do mutante — queimava sua essência, seu grito ecoando como se a própria alma fosse incinerada. Em poucos instantes, a aberração não passava de cinzas espalhadas pelo vento.
Os vigias olharam com uma mistura de alívio e medo. Para eles, aquele ser era salvação e maldição ao mesmo tempo. Os Psychers podiam destruir monstros, mas também poderiam destruir vilarejos inteiros, se quisessem.
O silêncio voltou a reinar. Apenas o estalar da areia quente preenchia o ar. O viajante respirava com dificuldade, tremendo. O Psycher, sem dizer palavra, voltou o olhar para as muralhas de Torghan.
E naquele instante, todos sabiam: nada seria igual depois de sua chegada.
Os portões de Torghan se abriram lentamente, rangendo como ossos velhos. O sol ainda queimava o ferro, fazendo a estrutura soltar fumaça nas frestas. O viajante, ferido, foi arrastado para dentro pelos guardas. Mas os olhos do povo estavam fixos em outro ponto.
O homem de capuz atravessava a poeira, passos firmes, a brasa nos olhos ainda reluzindo.
— Um Psycher… — murmurou alguém atrás das barricadas, a palavra cuspida com veneno.
As pessoas se encolheram, mães puxando filhos para dentro das casas feitas de concreto rachado e madeira podre. Os mais velhos ergueram suas armas improvisadas: lanças de ferro enferrujado, rifles que já haviam disparado tiros melhores em dias distantes.
Kael Draven parou diante do portão. O calor de sua presença ainda distorcia o ar ao redor, como se uma fogueira invisível o envolvesse. A guarda hesitou em deixá-lo entrar. Ninguém queria dever nada a um Psycher, nem mesmo a própria vida.
— Ele salvou o viajante — disse uma voz, fraca, quase um sussurro.
Mas outra, mais alta, respondeu de imediato:
— E amanhã pode nos queimar vivos enquanto dormimos!
O burburinho cresceu, a tensão se acumulava como faíscas em um barril de pólvora.
Kael não disse nada. Apenas ergueu o capuz, revelando o rosto marcado pelo tempo e pela radiação. A pele era pálida, os olhos cor de brasa se fixaram na multidão como se pudessem enxergar cada pensamento, cada medo.
O líder do vilarejo, um homem chamado Harven, avançou entre os guardas. Trazia um braço mecânico — tecnologia remendada, provavelmente saqueada de algum androide quebrado. Seus olhos eram duros, mas havia desconfiança escondida neles.
— Não temos lugar para a sua gente aqui. — A voz era firme, cortante. — Psychers trazem destruição, sempre.
Kael inclinou a cabeça, estudando-o.
— Não quero seu lugar — disse, a voz baixa, rouca como pedra arranhada. — Quero apenas água.
Silêncio. A palavra “água” caiu como um peso entre todos. A substância mais rara, mais preciosa. Ninguém cedia água sem algo em troca.
Harven estreitou os olhos.
— E o que nos dá em troca, Psycher?
Kael olhou para o viajante ainda desacordado no chão, depois para o horizonte além das dunas, onde a poeira se movia de forma estranha, como se algo rastejasse sob a areia.
— Posso manter Torghan viva. — Seus olhos arderam em vermelho intenso. — Ou posso deixá-la queimar como tantas outras.
Um calafrio percorreu a multidão.
Não era uma ameaça direta. Era a verdade nua do mundo em que viviam.
E naquele instante, todos perceberam que Kael Draven não era apenas mais um sobrevivente.
Ele era uma força da própria ruína que restava do planeta — e Torghan teria que decidir se o abraçaria… ou se o destruiria antes que fosse tarde.
O silêncio de Torghan parecia prestes a se romper em violência, até que o viajante, o mesmo que Kael salvara, abriu os olhos. Tossiu, cuspindo sangue e poeira, e com esforço se ergueu.
— Parem… — sua voz era fraca, mas cortou a tensão como uma lâmina. — Ele me salvou.
Cambaleando, apoiou-se em uma das estacas de ferro da muralha. Os moradores se entreolharam, murmurando em desconforto. Ninguém queria dever a própria vida a um Psycher.
— Se não fosse por ele, eu seria apenas mais um cadáver na estrada — continuou o homem, a respiração entrecortada. — E vocês sabem que falo a verdade.
Harven franziu o cenho, prestes a retrucar, mas o viajante ergueu a mão com firmeza.
— Ouçam. Se ninguém aqui quer a presença dele, eu quero. Ofereço abrigo na minha casa e parte da minha reserva de água. — Ele encarou Kael com seriedade. — É o mínimo que posso fazer.
O murmúrio da multidão cresceu, cheio de repulsa. Uma mulher gritou:
— Vai gastar água num monstro?
— Melhor do que gastar em um covarde que não sabe lutar — retrucou o homem, cuspindo areia ao chão. A resposta calou boa parte dos resmungos.
Kael observava tudo em silêncio, a brasa em seus olhos agora mais branda, quase oculta. Não estava acostumado com gratidão. O mundo ensinara que salvar uma vida raramente resultava em algo além de medo ou traição.
Harven respirou fundo, os dedos mecânicos do braço rangendo como engrenagens cansadas. Por fim, apontou para Kael.
— Muito bem, Psycher. Se quer se enterrar neste fim de mundo, que seja. Mas saiba disso: qualquer passo em falso… qualquer sinal de que vai nos trazer problemas…
As palavras pairaram pesadas no ar.
Kael não respondeu. Apenas puxou o capuz de volta sobre a cabeça e seguiu o viajante para dentro das ruas estreitas de Torghan, sob o olhar de dezenas de olhos hostis.
Os habitantes o acompanhavam em silêncio, como se uma sombra tivesse entrado no vilarejo junto com ele. Crianças espiavam das janelas rachadas, velhos cerravam os dentes, guerreiros mantinham as mãos nas armas.
O viajante que agora era seu anfitrião parou diante de uma construção precária, feita de blocos de concreto rachado e placas metálicas presas com cabos.
— Aqui. — Disse ofegante, abrindo a porta enferrujada. — Não é muito, mas é o que tenho.
No interior, o ar era mais fresco, abafado pelo improviso de tecidos grossos tapando as frestas. Havia um reservatório pequeno de água limpa — cristalina como uma joia em meio à miséria. O viajante serviu um copo de metal, estendendo-o para Kael.
— Beba. Você vai precisar de forças.
Kael pegou o recipiente com as mãos firmes. O líquido refletia seu olhar incandescente. Ele hesitou por um instante, depois bebeu em silêncio. A água escorrendo por sua garganta era um lembrete cruel do que o mundo havia perdido — e do que valia a pena lutar.
— Meu nome é Efram — disse o homem, quebrando o silêncio. — E não me importo com o que os outros dizem. Para mim, você não é um monstro.
Kael ergueu o olhar, surpreso com a sinceridade.
Pela primeira vez em muito tempo, havia algo no ar que não era apenas medo.
Efram ajeitou os tecidos que serviam de cortina na entrada e deixou Kael à vontade. Havia algo de estranho em dividir sua casa com um Psycher, mas uma voz insistente dentro dele repetia: ele salvou sua vida. Isso já era mais do que qualquer um no vilarejo faria.
— Vou pegar algumas coisas — disse, antes de se afastar para um cômodo nos fundos.
O som de passos se perdeu atrás das paredes de metal. O silêncio que se seguiu era pesado, quebrado apenas pelo sussurro distante do vento arranhando as frestas.
Kael permaneceu sentado, o corpo relaxando aos poucos. Pela primeira vez em dias, não havia algo à espreita atrás dele. Não havia olhos famintos na escuridão ou garras prontas para rasgar sua carne. Apenas um abrigo precário… mas abrigo ainda assim.
Quando Efram voltou, trazendo um cobertor gasto e um pedaço de carne seca para oferecer, parou na soleira da porta.
Kael estava adormecido.
O capuz caído revelava um rosto marcado, traços duros como pedra, mas agora suavizados pelo sono profundo. As chamas em seus olhos haviam se apagado, deixando apenas pálpebras cerradas e uma respiração pesada. Ele parecia exausto, como alguém que carregava o peso de quilômetros de deserto, batalhas e noites em claro.
Efram ficou parado por alguns instantes, observando. Aquele homem, que momentos antes havia transformado uma criatura radioativa em cinzas com um gesto, agora parecia tão humano quanto qualquer outro sobrevivente. Vulnerável. Cansado.
Suspirou, deixou o cobertor sobre Kael e apagou a lamparina de óleo no canto da sala.
— Durma… — murmurou baixinho. — Pelo menos por uma noite.
Lá fora, o vilarejo permanecia inquieto. Sussurros se espalhavam como praga pelas ruas escuras: o Psycher está entre nós. Havia medo, raiva e desconfiança.
E no deserto além das muralhas, sob a areia revolvida pelo vento, algo se movia. Algo grande. Algo faminto.
Kael dormia profundamente, sem saber que o amanhecer em Torghan não traria paz… mas fogo e sangue.
O sono de Kael, no início, foi profundo como pedra. Mas logo as sombras começaram a se mexer.
Ele estava de volta às ruínas fumegantes de uma cidade que não reconhecia mais. Sirenes ecoavam em algum lugar distante, abafadas por explosões. O ar cheirava a ferro queimado e carne carbonizada. Entre as cinzas, vozes chamavam seu nome. Vozes de soldados que um dia lutaram ao seu lado. Vozes de inocentes que gritaram quando o céu se partiu em fogo.
Kael corria, mas o chão rachava sob seus pés. A terra se desfazia em um deserto infinito, e mãos esqueléticas, derretidas pela radiação, surgiam da areia para agarrá-lo pelos tornozelos. Ele tentava se libertar, mas quanto mais lutava, mais fundo afundava.
Do horizonte, erguiam-se figuras deformadas, híbridos de soldados e monstros. Alguns usavam fardas queimadas, outros tinham rostos que ele reconhecia — rostos que ele próprio havia matado. Seus olhos ardiam em vermelho, como o dele.
E então, a visão mudou. Uma chama colossal se ergueu no céu, consumindo tudo. Era o mesmo fogo que ele carregava nas veias, só que multiplicado até a loucura. O grito que ecoou não era humano. Era o dele.
Kael acordou com um sobressalto, o corpo coberto de suor frio. O ar rarefeito de Torghan encheu seus pulmões como uma lufada de vidro. Seus olhos brilharam em vermelho intenso por um instante, iluminando a sala escura.
— Kael! — A voz de Efram cortou o silêncio.
Ele estava parado ao lado da cama improvisada, os olhos arregalados de medo. Segurava uma lamparina, que tremia em sua mão.
— Você estava… — Efram engoliu seco, a voz falhando. — Você estava queimando.
Kael olhou para o próprio corpo. As palmas de suas mãos ainda soltavam um calor estranho, como se chamas invisíveis tivessem se formado ali durante o sono. O lençol sob ele estava chamuscado, os tecidos escuros espalhados em manchas de cinza.
Inspirou fundo, fechou os punhos, forçando o fogo a se apagar. A respiração voltou aos poucos, pesada.
A noite havia passado sem que ele percebesse. O sol da manhã vazava pelas frestas da casa, iluminando o rosto tenso de Efram.
— Eu ia te acordar — disse o homem, ainda ofegante. — Achei que você ia… se destruir. Ou destruir tudo ao redor.
Kael passou a mão pelo rosto, o olhar cansado, mas firme.
— Não foi nada — murmurou, a voz rouca. — Só… fantasmas.
Efram não respondeu. Apenas ficou ali, estudando aquele estranho hóspede, dividido entre gratidão e medo.
Do lado de fora, o vilarejo começava a despertar. Vozes se erguiam nas ruas, passos ressoavam nas pedras rachadas. Mas, dentro daquela casa precária, o silêncio era pesado.
Kael sabia: sua presença em Torghan já era uma ameaça. E os sonhos — aqueles pesadelos inflamados — eram o lembrete de que talvez os outros não estivessem errados em temê-lo.
6 Comentários
E lá vamos nós chover no molhado outra vez, mas não tem como fugir disso
ResponderExcluirSua capacidade criativa para descrições é fenomenal, se por atrás dos olhos você leva os leitores para uma viagem pelo inferno e em Horizonte de Estrelas a gente se vê no espaço e dentro das naves, aqui você construiu um cenário apocalíptico a lá Mad Max perfeito.
Quando vi o filme "livro de Eli" lembro de ter terminado cheio de sede, por causa da fotografia e como a película mostra as cores amareladas, ou os personagens, com lábios rachados e com poeira e areia cobrindo praticamente tudo.
Esse seu texto me causou o mesmo "desconforto". tô batendo palmas aqui. Mandou bem demais.
E conseguiu também, com cenas cirúrgicas, curtas e muito bem narradas, já criar personagens que a gente acaba se importando de cara e que prometem ser realmente memoráveis.
Uma nova estréia excelente cara. Meus parabéns.
Vindo de um monstro como tu, só posso ficar feliz pelo objetivo ter sido cumprido.
ExcluirGrande Marcelo!
ResponderExcluirVenho aqui te parabenizar por mais esse projeto que inicias no blog.
Como sempre, cenários muito bem descritos, dando-nos a sensação de estarmos assistindo.
O título ( Psichers) já dá a noção da trama pesada,,consolidando um estilo de escrita muito pessoal e autêntico, já deixando a sua marca no blog.
Parabéns pela iniciativa!
Salve Jay que bom que gostou cara vlw pelo apoio
ExcluirOlá, Marcelo. Ainda não li Horizonte de Estrelas, mas corrigirei meu erro em breve. Vamos falar sobre Psychers.
ResponderExcluirComo os demais bem pontuaram, sua capacidade de descrição é fenomenal, você nos transporta para a cena junto com Kael e Efram, dá todo o peso das escolhas realizadas pela humanidade depois da catástrofe.
As cenas são muito bem delimitadas e definidas, me fez lembrar de uma mesa que joguei com o cenário de Numenéra, além do cenário mágico de Dragon Age - provavelmente você conhece a franquia de dark fantasy.
Sendo apenas o primeiro capítulo, esperarei para entender mais sobre a história.
Seu texto me trouxe para uma fantasia sombria, e eu vou adorar saber mais sobre.
Até.
opa conheço sim e gosto muito de ambos os cenários que mencionaste. Não sei se tu chegou a ler mas te recomendo a minha primeira obra aqui no blog Por Trás Dos Olhos acho que vai gostar também já que prefere esses cenários mais sombrios
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